Enquanto
assistia aos julgamentos de Nuremberga, Rebecca West procurava sinais de uma
paz e de uma justiça que o fim da guerra ainda não fizera chegar. A História ao
vivo nunca é como a que ficará escrita nos livros.
O
ano de 1945, a hora zero (Stunde nul)
como lhe chamaram os alemães, havia sido celebrado em todos os jornais como o
do fim da guerra, mas, na verdade, seria em Nuremberga, no ano seguinte, que as
forças ocupantes procurariam julgar e enterrar os demónios, à vista de todos e
de vez. Cerca de 325 correspondentes de órgãos de informação de 23 países
diferentes acotovelaram-se desde o primeiro minuto para acompanhar as sessões
hora a hora, dia a dia, até que, dado o carácter percursor daquele tribunal
internacional e as decorrentes disciplina de ferro, complexidade e morosidade
dos trabalhos em curso, todos haviam sido abatidos pelo tédio. Rebecca West
(1892-1983), famosa repórter e ficcionista inglesa, havia sido enviada a
Nuremberga pela revista norte-americana The
New Yorker e, no décimo mês do julgamento, era já peremptória: «A sala de
audiências era a cidadela do aborrecimento. Todos os que se encontravam na sua
esfera de ação eram presa do mais extremo tédio. […] O símbolo de Nuremberga
era o bocejo. […] Para todos os que ali estavam, sem exceção, aquele era um
lugar de sacrifício, de aborrecimento, de dores de cabeça, de saudades de
casa.» O desmantelamento da máquina da guerra acompanhava aos poucos os
esforços da máquina da paz e da justiça, mas no epicentro da transição,
revelavam-se particularidades que a História apagaria e que só um olhar
presente, mais atento e mais crítico, conseguiria registar; um olhar
suficientemente estático mas desperto para verificar a verdadeira velocidade e
intensidade das mudanças. Foi o caso do olhar de Rebecca West, plasmado em três
textos escritos entre 1946 e 1954 sobre o mais famoso julgamento de todos os
tempos e agora publicados pela Relógio d’Água, com o título Estufa com Ciclâmenes. A par, por
exemplo, de registos de Alfred Döblin ou W. G. Sebald,
trata-se de um retrato raríssimo da Alemanha no imediato pós-guerra.
Rebecca
West, como quase todos os outros correspondentes estrangeiros, estava alojada
num palacete nos arredores de Nuremberga, ex-propriedade de uma família de
industriais bávaros «com um belo historial de distinção académica e de serviço
público» depois manchado pela ligação às elites nazis. Numa estufa escondida nos
jardins desse «conto de fadas alemão», um jardineiro perneta (Rebecca acentua
que o governo nazi não se esforçou por enterrar os seus mortos nas cidades
bombardeadas ou por providenciar próteses aos seus soldados mutilados na frente
de combate), e apenas ajudado por uma rapariguinha, cultivava ciclâmenes que,
apesar da rígida proibição vigente, comercializava com grande sucesso. Tal como
neste exemplo, a repórter inglesa acentua características típicas dos civis
alemães: o espírito industrioso, a confiança no poder do trabalho, um estoico
sentido do dever, a paixão pela produtividade. Encontra-as patentes na margem
de um riacho, onde um citadino pratica exercício apaixonadamente («ainda tinha
o seu corpo, ainda tinha aquele músculo estomacal decerto notável, ainda
mantinha o seu eu único») ou em Berlim, onde os escombros dos prédios incendiados
ou recém-demovidos são removidos por mulheres de idade: «os cabelos grisalhos
caindo hirtos como cordões de botas emoldurando os seus rostos curtidos, os
corpos uma mescla de ossos e coisas amarrotadas como um guarda-chuva mal
enrolado, as mãos quase tão ossudas como as suas ferramentas de trabalho.»
Interpreta-as em Nuremberga, em 1946, ou na Berlim dividida dos anos 50, onde,
diz-se, muitos berlinenses compreenderão
por fim o que é o totalitarismo.
Na
sala do tribunal, em Nuremberga, ao tédio juntava-se a excentricidade de
algumas regras e normas de segurança (incapazes, ainda assim, de impedir o
suicídio de Göring na véspera da execução), «a doença da uniformidade que
atacara os acusados durante o julgamento» e os havia vencido, a evidência da
excessiva delicadeza e postura de nostra
culpa dos conquistadores (uma armadilha que «pode bem ser considerad[a] a
coisa mais importante que aconteceu em Nuremberga») e das diferenças de
comportamento entre as forças ocupantes (evidenciando-se, por exemplo, a sovinice
dos ingleses, a generosidade dos americanos, a alienação dos franceses e a
ferocidade gélida dos russos). Atenta a cada detalhe, exímia na recriação de
ambientes e posturas, acutilante, West é peremptória: «O problema de Nuremberga
era ser tão manifestamente parte da vida tal como esta é vivida. O tribunal era
parte integrante das estranhas coisas que aconteceram na sua periferia; e estas
já eram suficientemente estranhas.»
O
maior feito de Nuremberga é termos todos ficado a saber, «sem a menor dúvida»,
o que fizeram aqueles dezoito homens que ali foram julgados: «Nenhuma pessoa
letrada pode agora alegar que aqueles indivíduos fossem outra coisa que não
abcessos de crueldade.» E, no entanto, o legado de Nuremberga é muito mais
complexo do que isto («Na verdade, a sala de audiências era um tanque atulhado
de equívocos até à borda») e a repórter deixa-o bem claro quando se refere, por
exemplo, à satisfação com que muitos recebem a notícia do suicídio de Göring ou
à iniquidade do sistema de execução da pena de morte («nunca houve
acontecimento legal que fedesse tanto a ilegalidade» e Nuremberga não foi
exceção). Profundamente político, o legado do testemunho de Rebecca West é, por
sua vez, único e denso, uma janela aberta no muro da perspectiva convencional e
uniformizada sobre a época em questão. A dado ponto, salientando a capacidade
da Alemanha para reerguer a sua indústria no pós-guerra, ela escreve: «Os
alemães prestaram-nos um serviço ao livrarem-nos da culpa do nosso pecado
contra os refugiados.» E, mais uma vez, a sua clarividência dá que pensar,
apontando para que «o argumento político mais decisivo do nosso tempo não será
lido em livros, será vivido».
Estufa com Ciclâmenes, Rebecca West, Relógio d'Água, 162 págs., 15 euros
Jornal «i» 03-10-2016
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)