Apertem o coração em punho
Svetlana Alexievich inaugurou um género novo, o
«romance de vozes», com uma história feminina do conflito russo-alemão de
1941-45, composta após sete anos de pesquisa e a colagem de testemunhos de mais
de 200 mulheres ex-combatentes. Este é um dos mais terríficos e sensíveis
registos de guerra, capaz de fazer chorar ou vomitar até os generais.
«Ai, meninas, a guerra é mesmo sórdida... Vista
com os nossos olhos. Olhos de mulher... É ainda mais horrenda. Por isso não nos
questionam...» Algumas tinham pouco mais de 15 anos («fui combater tão nova,
que durante a guerra até cresci»). Cortaram-lhes as tranças (ficava só um pequeno
topete), formaram-nas, deram-lhes fuzis, muitas vezes maiores do que elas, encaminharam-nas
para o combate, para os serviços e os hospitais militares. Elas partiram felizes
por irem defender a Pátria. Nas unidades do Exército Vermelho ou integradas nos
destacamentos partisans, mataram e
viram matar e morrer. «Amigas, sequem as lágrimas. Apertem o coração em punho.»
Presenciaram e viveram os mais cruéis, os mais desumanos atos de violência.
Endureceram.
Depois? A guerra acabou e mandaram-nas calarem-se.
Muitas regressaram às suas aldeias e as famílias enxotaram-nas; traziam
medalhas e honras, mas vinham desonradas por terem estado com os homens na
frente. Já não sabiam usar vestidos, andar de saltos, pintar os lábios, várias
delas haviam mesmo deixado de menstruar e outras, apesar de terem pouco mais de
20 anos, tinham o cabelo todo branco. Quatro décadas mais tarde, uma delas
disse: «Vou-te explicar: recordar é terrível, mas não recordar é mais terrível
ainda.» E outra: «Sim, vencemos, mas a que preço? A que terrível preço?»
Quase um milhão de mulheres soviéticas participaram
na Grande Guerra Patriótica, desempenhando todas as profissões militares, e foram
depois silenciadas sobre as suas experiências e o seu contributo para a gloriosa
Vitória. No final dos anos 1970, uma jovem jornalista, natural de Minsk,
capital da Bielorrússia, seguiu o rasto das ex-combatentes e registou mais de
500 encontros com elas. A seleção e súmula tratada do testemunho de cerca de
200 dessas vozes escutadas por Svetlana Alexievich chama-se A Guerra Não Tem Rosto de Mulher e é um
documento histórico e literário de importância maior. Acaba de chegar às
livrarias portuguesas, pela Elsinore (400 págs., 20.99 euros).
Rejeitada pelos editores soviéticos e só editada
aquando da perestroika, em 1985, a
primeira edição do livro teve uma tiragem de dois milhões de exemplares e inaugurou
o projeto literário Vozes da Utopia, que a autora dedicou à história moral do «homo sovieticus». Compõem-no: As
Últimas Testemunhas: cem histórias nada infantis (1985, memórias de quem era criança na
Segunda Guerra; a editar pela Elsinore em 2018), Rapazes de Zinco (1989, relatos de veteranos e mães de combatentes
soviéticos na Guerra do Afeganistão; a editar pela Elsinore em 2017), Encantados pela Morte (1993, sobre
suicídios motivados pela queda do regime soviético), Vozes de Chernobyl: história de um desastre nuclear (1997,
Elsinore) e O Fim do Homem Soviético: um
tempo de desencanto (2013, Porto Editora). Por estes cinco «romances de
vozes» e pela criação de um novo género literário de não-ficção, «feito de vozes reais e confissões, testemunhos e evidências
documentais», Svetlana
Alexievich ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 2015.
«A guerra é uma experiência demasiado íntima. E
tão infinita como uma vida humana..» Para Alexievich, que se intitula
«historiadora da alma», o desafio era dar voz ao protagonista concreto de um
tempo (passado) e de uma experiência concreta, mas captar nele os sentimentos e
o sofrimento (pedra-de-toque dos seus grandes mestres russos: Dostoiévski, Tolstoi e Tchékhov),
lapidar dele a «trepidação da eternidade» e assim «unir a fala da rua e a da
literatura». No primeiro prefácio de A
Guerra Não Tem Rosto de Mulher, explicou: «[Quis] escrever um livro sobre a
guerra de modo que a guerra provoque náuseas e que a própria ideia dela seja
repugnante. Demente. Que faça vomitar até os próprios generais».
Como inspiração, a escritora apoiou-se no livro
que mais a marcou após concluir a sua formação em Jornalismo: Sou
da Aldeia Incendiada (1977), assinado por
Janka Bryl, Vladzinik Kalesnik e Ales Adamovich (que se tornaria o seu principal
mentor). Nele, o relato dos incêndios das aldeias bielorussas pelos nazis (de
que há também registos impressionantes em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher) parte do discurso na primeira pessoa de múltiplas
testemunhas, que os autores editaram o mínimo possível e fundiram com elementos
esparsos da sua autoria. Svetlana interessou-se de imediato por esta técnica de
registo da história oral. Comprou um gravador, partiu à procura de depoimentos
sobre a migração do campo para a cidade (de que resultou um primeiro
manuscrito, não editado) e apurou lentamente a justaposição de testemunhos
transcritos e a sua seleção, edição e compilação final, sem apoio de cronologias
ou outros elementos contextuais. Nasceu assim o «romance de vozes» ou
«romance-oratório» (Ales Adamovich), um romance-painel de vozes anónimas,
reais, registo inédito do passado quotidiano na primeira pessoa vivida, sem
heróis, personagens ou esqueleto narrativo. A história do «pequeno grande
homem» apanhado nas malhas da grande História.
Perfeitamente adaptado ao tema da ascensão e queda
da utopia soviética, o novo género de gravação e registo literário de
testemunhos anónimos desenvolvido por Svetlana Alexievich afirma-se igualmente
como anti-ficção, porque valoriza a experiência individual em detrimento da
efabulação literária ou do mito coletivo. Neste registo, de livro para livro de
Vozes da Utopia, revela-se o complexo processo psicanalítico por que passaram
os habitantes da ex-URSS na conquista de uma identidade individual (e original,
nesse sentido), ao invés da crença cega no valor da Pátria e do sofrimento em
nome dela e de um destino épico.
Em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, este resgate de voz própria é uma missão
plenamente assumida pela autora. Tendo crescido na sombra da morte e da guerra,
entre vozes e choros das mulheres da aldeia, cujo sofrimento trágico e
enigmático a assustava e fascinava, Svetlana quis escrever a história feminina
da guerra. Uma guerra feminina, com
cores, cheiros, iluminação, espaço de sentimentos e palavras próprias, uma
guerra onde «não há heróis nem proezas incríveis, mas tão-só as pessoas
ocupadas na sua atividade humana e simultaneamente desumana». Quarenta anos
após regressar da frente, uma mulher diz: «Pergunte-me: o que é a felicidade?
Respondo: é encontrar alguém com vida entre os mortos.» Acrescentamos: e deixar
esse alguém falar.
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)