Pascal Quignard enaltece a tortura virulenta que é sentir-se atraído pela prosa fragmentária. Num ensaio sobre La Bruyère, o pai do fragmento literário.
Jean de la Bruyère (1627-1704), mestre em macacadas despropositadas, tinha «a alma cravejada de desprezos», carunchosa, repugnante à amizade e pródiga em ferroadas, uma alma «esfarrapada pelo sentimento da inveja». É assim que o escritor francês Pascal Quignard (n. 1948) o apresenta no curto ensaio Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos, recém-editado pela Deriva, com tradução de Pedro Eiras e na colecção Pulsar, dirigida pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Os anos eram os da glória solar de Luís XIV, um rei de teatro (como o apontou o barão de Bezenval); artes, subtilezas e frivolidades todas ao serviço do efectivo e simbólico esplendor real. Poucos períodos foram tão pródigos em fulgurantes escritores e pregadores: Molière, Racine, Corneille, La Fontaine, Perrault, Boileau, Fontenelle, Fénelon ou Bossuet. Entres eles, o sátiro moralista Jean de la Bruyère, suposto pai da prosa em fragmentos, numa das obras-primas de literatura francesa, Les Caractères ou les moeurs de ce siècle: 418 fragmentos separados por pés-de-mosca, na primeira edição, de 1688; 1120 na segunda, de 1696 (a única edição portuguesa data de 1941, pela Sá da Costa, com tradução, selecção e prefácio de João de Barros).
Em 1984, Pascal Quignard tomou em mãos a dissecação da figura e obra de La Bruyère motivado por um incómodo relativo ao «uso reiterado de uma forma tão indigente, que [lhe] parecia tão cómoda, tão prática e tão espectacular, tão fácil». O seu fascínio «extremo e quase automático» pelos fragmentos tornara-se uma «pequena tortura virulenta». O ensaio, com pouco mais de sessenta páginas, não lhe resolverá o problema. Pelo contrário, adensá-lo-à, para grande prazer dos leitores. Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos é uma criativa e actual reflexão sobre a mecânica do texto literário.
Quignard, sobretudo conhecido pela adaptação ao cinema do romance Todas as Manhãs do Mundo (1991), é um prosador admirável e, por isso, vale já esta leitura. Não transcende na apologia de Caracteres como primeiríssimo livro composto de maneira sistemática sob a forma fragmentária. Eleva o fragmento a forma «anti-pedante, anti-sistemática, anti-filosófica e anti-teológica» que rejeita qualquer ordem ou género. Porque, sustenta, ele nasce, com La Bruyère, como uma espécie de espasmo, convulsão, rasgão ou fractura não originários num qualquer todo, mas em nada, justificando-se por si mesmos. Os fragmentos, tal como Quignard os concebe, afirmam-se como partículas negativas sem filiação: é esse o seu carácter revolucionário e anárquico. A originalidade de La Bruyère prova-se com a hesitação de dez anos em publicar a obra e a desesperada procura de um apadrinhamento clássico nos Provérbios de Teofrasto ou de Salomão. Querendo escondê-lo, La Bruyère é original por ter-se limitado a reunir sem ordem e entre «nada, brancos, pés-de-mosca» um amontado de papelinhos de anotações e comentários a obras de outros, «os efeitos das suas leituras». Supondo-se e acusado pelos pares como imitador, preguiçoso ou incapaz, o escritor procurou branquear. Abriu caminho para o que virá a ser moderno.
Quignard não o diz, mas estes desapaziguadores «farrapos» ou «aparas» de texto podem resultar da atracção neo-clássica do século XVII francês pelas imagens, símbolos e insígnias, em detrimento das palavras e para privilégio do patrocínio às perenes criações da arquitectura e escultura. Tudo é contraditório nesta história, ofuscada pela força e pelo brilho de cada fragmento por si mesmo, na sua variedade e singularidade absolutas face a outros. Reconhecer o fragmentário, sustenta Quignard, «talvez seja uma lucidez, mas é também uma derrota»: aceitar o silêncio e o branco como pontuações mais fortes implica aceitar a ineficácia do texto contra a morte. Seja. Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos é também uma espécie de resposta ética ao facto de que «na arte moderna o efeito de descontínuo substituiu o efeito de ligação», sem muitos exemplos bem conseguidos de desligamentos no texto literário. Sem o querer, defende Quignard, o ainda inultrapassado La Bruyère fez nascer a forma literária do fragmento, fascinante ou repugnante nos seus efeitos, paradoxal, mas não contrária, ao desejo universal e intemporal de unidade e simetria. Uma «forma em primeiro lugar embriagada de autarcia absoluta». Fragmento: incómodo motor de uma renovação sem fim da «postura do narrador» e do «brilho desconcertante do estilo». A usar com parcimónia, como um grito que nada prepara e nada repete.
LER/ Janeiro 2011
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)