Compararam-no a obras de Tolstoi ou Dostoïevski, nomearam-no para o Man Booker Prize e, sobre ele, escreveram generosos elogios nas páginas de crítica literária. O Acto de Amor de um Povo, terceiro romance do inglês James Meek, traz na contracapa e nas badanas o peso (também comercial) desta aprovação quase unânime por parte do meio literário anglo-saxónico. Apesar de grande parte dela se dever à audácia do autor em forjar uma narrativa com sabor de épico russo do século XIX, a aclamação é inteiramente merecida. James Meek inova com especial talento mesmo quando faz glosa a fórmulas anacrónicas e resgata o que ainda pode ser entendido como moderno na herança da literatura russa.
Sibéria, 1919. Samarin é um terrorista evadido de um campo de prisioneiros no Árctico. Ou, pelo menos, é assim que se apresenta quando chega à isolada comunidade de eunucos cristãos de Yazyk, onde se encontra refugiada uma companhia de soldados checos. Surgido da paisagem gelada, inimigo do czar e da antiga Rússia, Samarin será “uma manifestação da raiva actual e do amor futuro”. Consigo trará a sombra da perseguição de um feroz canibal, que o autor transformou numa metáfora das várias formas do amor. Até à chegada do Exército Vermelho, com Samarin caminharão ao longo de cerca de 400 páginas, dezenas de outras personagens e outras tantas peripécias, o líder eunuco Balashov, a pragmática Anna Petrovna e o comandante checo Matula.
Entre o thriller, o romance de ideias e o romance histórico não convencionais, O Acto de Amor de um Povo condensa uma reflexão poderosa sobre os idealismos extremos do ser humano, focando-os na alma russa. Mas não se pense por isso que este é um livro pesadamente sério. Estão lá a submissão ao destino, ao sacrifício e à dor, mas também a revolta, a sensualidade ou a castidade vividas em excesso. Está lá o enigma da simultânea beleza atordoante e frieza agressiva da neve. E, no entanto, Meek consegue transmiti-los com grande vividez nas descrições e um uso inteligente do suspense, nesse tom elevado no qual a literatura russa tratou a grande História a partir de uma linguagem despretensiosa. Para tal terá contribuído a formação do autor como jornalista, correspondente na ex-União Soviética entre 1991 e 1999, actual colaborador do Guardian, da London Review of Books e da Granta. Escrito ao longo de dez anos, O Acto de Amor de um Povo é um romance notável, que cumpre a ambição de actualizar a denúncia dos mestres russos, representada pela citação do escritor Andrei Platonov escolhida para epígrafe: “Ocupado em refazer o mundo, o homem esqueceu-se de refazer-se a si mesmo.”
O Acto de Amor de um Povo, James Meek, Manuel Cintra (trad.), Publicações Dom Quixote, 432 págs.
SOL/ 23-09-2006
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