E se alguém lhe propuser ler um texto em círculos? Aceitar a sua estrutura circular - que afinal se revelará elíptica - e rodar dentro dela como um cão preso a uma estaca. Talvez como esse cão, a sua leitura enlouqueça, ou seja, perca o sentido, por não poder desviar-se; ou talvez se fortaleça, concentrando-se no centro, a estaca, e nas possibilidades de todas as pequenas variações de movimentos e ritmos à volta dela. Matteo Perdeu o Emprego, novo título da série «Os Cadernos de Gonçalo M. Tavares» (Porto Editora) é uma narrativa-rotunda. Ao contrário dos senhores da série «O Bairro», as vinte e quatro personagens deste livro (é referido que a inspiração para os nomes partiu de um trabalho do fotógrafo Daniel Blaufuks, sem se esclarecer a ligação) não incitam a um exercício lúdico. Apresentadas numa série de pequenas histórias ligadas entre si, move-as uma lógica ilógica que nunca termina bem, e jamais termina, desdobrando-se na narrativa seguinte. No pósfácio intitulado «Notas sobre Matteo perdeu o emprego», Gonçalo M. Tavares regista uma muito livre abordagem filosófico-especulativa às histórias antes narradas.
Nabokov defendeu que todas as grandes narrativas são contos de fadas. Gonçalo M. Tavares, na sua dinâmica infiliável em qualquer corrente da literatura portuguesa (antes no expressionismo alemão), nega em absoluto a afirmação. Numa recente e muito esclarecedora entrevista a Pedro Mexia (no Ípsilon, a propósito de Uma Viagem à Índia) afirma: «O espaço da literatura pode ser tudo e mais alguma coisa, mas antes de mais é um espaço de vigilância à distância, de uma atenção constante. É um pouco como estar a repetir constantemente: atenção!, não te esqueças do século XX, não te esqueças do século XX.»
Desinteressado do amor romântico, empenhado numa epopeia mental (quase nada física) assente num pessimismo mais ontológico que antropológico, o escritor explora o acidente da personagem através de um olhar epistemológico. Numa «escrita instintiva» e com «frases exactas e ambíguas, ao mesmo tempo, o que é um pouco paradoxal». Rejeitando a fantasia, M. Tavares elabora no paradoxo, na própria mecânica de uma ginástica mental cujo objectivo, coerência e perdurabilidade (28 títulos publicados desde 2001) só serão correctamente apreendidos daqui a algumas décadas. Até lá, cabe a cada leitor julgar lúdica, críptica ou intelectualmente estimulante cada proposta de M. Tavares.
Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavares (texto), Diogo Castro Guimarães e Luís Maria Baptista (ilustração fotográfica). Porto Editora, 213 págs.
LER/ Dezembro 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)