Numa noite, em Budapeste, um homem relata a um amigo como trocou a sua esposa por aquela que ele supôs ser «a mulher certa, como nos romances». E diz-lhe: «Receio que seja a má literatura a encher de sentimentos falsos a cabeça de homens e mulheres.» A personagem é Péter, um dos vértices do triângulo amoroso e narrativo de «A Mulher Certa», romance escrito pelo húngaro Sándor Márai entre 1941 e 1979. Uma obra-prima absoluta cuja tradução chega às livrarias no próximo dia 29 e que comprova que a grande literatura é mesmo capaz de ensinar a sentir.
Em 1990, quando a crítica europeia redescobriu a obra de Sándor Márai (nascido em 1900), ficou claro que o seu nome tinha de constar no cânone da melhor literatura europeia do século XX. Aclamado nos anos 30 no país natal, Márai, empenhado humanitarista e antifascista, sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, mas não à perseguição do regime comunista, que, em 1948, o levou ao exílio definitivo, primeiro em Itália, por fim nos Estados Unidos (onde se suicidou, em 1989). Durante décadas, a obra de Márai foi proibida na Hungria e caiu no total esquecimento, até que, nos últimos dezassete anos, renasceu e foi aclamada como uma dessas raras essências literárias impregnadas de elegância, profundidade e sabedoria.
Após «As Velas Ardem até ao Fim» e «A Herança de Eszter», a Dom Quixote edita «A Mulher Certa», numa excelente tradução do húngaro por Ernesto Rodrigues. Para muitos, trata-se do melhor Márai, com a sua versão final - quatro partes e um epílogo - lapidada como um diamante ao longo de 38 anos e três edições distintas. De novo o autor descreve a desintegração da burguesia húngara do início do século XX, tarefa que assumiu como «o único dever da [sua] vida». Mas esse é apenas o cenário para uma sucessão de monólogos sobre como «todo o amor é egoísmo cruel», vaidade, idealização e disfarce para a inevitável solidão humana.
Uma mulher (Marika) conta a uma amiga como uma paixão antiga do marido (Péter) por uma criada de servir (Juditka) arruinou o seu casamento. Por sua vez, Juditka conta a um amante (cuja narração surgirá mais tarde) como, manipulando o amor de Péter, se vingou da pobreza e da burguesia. «A Mulher Certa» é uma lição de técnica narrativa aliada a um conhecimento cirúrgico das várias faces do amor, da ambição e da solidão.
A Mulher Certa, Sándor Márai, Publicações Dom Quixote, 423 págs.
SOL/ 24-07-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)