Feio, mas belo
Desde o lançamento, em 2004, o ensaio «História da Beleza», do filósofo, semiólogo e romancista Umberto Eco, atingiu o meio milhão de exemplares vendidos em todo o mundo. Nada a estranhar; aos 75 anos, Eco continua a ser um formidável pedagogo, generoso na partilha de uma vertiginosa erudição quer o tema seja a comunicação, a linguística, a filosofia ou, como neste caso, a estética e a história de arte. O conceito a explorar era, ele mesmo, cativante: quem não se interessa pelo que é belo? E, no entanto, três anos depois, chega a prova dos nove. Será capaz de cativar tantos leitores esta «História do Feio» que o autor italiano acaba de apresentar na Feira do Livro de Frankfurt e já se encontra em tradução para 27 línguas?
Umberto Eco já garantiu que se divertiu muito mais a escrever sobre a fealdade do que sobre a beleza. E voltou a advertir que, para ele, o feio não é o oposto do belo, mas antes um valor distinto, com distinta evolução histórica e canónica. «História da Beleza» partira de anotações esquecidas durante 40 anos nas gavetas do ensaísta e tinha por detrás uma história de amor (Eco casou-se com a colaboradora que o ajudou no arranque inicial do projecto). Escrito em parceria com Girolamo de Michele, resultara numa viagem intelectual, cronológica e restringida ao universo ocidental, desde o conceito grego de belo como uma proporção ou da beleza como verdadeira religião no século dezanove até à total democratização estética do século XX ou à esquizofrenia da procura e da perda do belo no século XXI. Para reconstituir esse percurso, fôra possível recorrer a uma vasta série de testemunhos teóricos, muitos deles possibilitando conferir se as noções e representações artísticas do belo correspondiam aos gostos das pessoas comuns da mesma época. Quando Eco decidiu escrever sobre o feio, o caso mudou de figura.
Manson ou Monroe?
Na introdução de «História do Feio», o autor esclarece: «[Ao feio] quase nunca se dedicaram tratados extensos, somente alusões parentéricas e marginais. Portanto (…) uma história da fealdade terá, na maioria dos casos, de ir procurar os seus documentos às representações visuais ou verbais de coisas ou pessoas, de algum modo, consideradas “feias”.» Ou seja: feio é a quem lho parece. O desafio revelou-se maior e ainda mais estimulante porque, desde sempre, a fealdade provoca movimentos passionais ligados mais a instintos biológicos do que a juízos estéticos. O feio está ligado ao medo e ao desconhecido, a «reacções de desagrado ou, até, de violenta repulsa, horror ou pavor». Por isso, embora tenha a mesma estrutura do ensaio antecessor (formato de álbum ilustrado, com reproduções de obras da arte e brilhantes excertos de textos de pensadores, poetas e romancistas), esta «História do Feio» contém muito mais elementos de surpresa.
No último dos 15 capítulos de texto inspirado deste livro, Eco procura definir as actuais noções de fealdade. Para confirmar que feio e belo convivem de forma neutra, faz a seguinte pergunta: como é possível que hoje os jovens admirem os rostos de Brad Pitt ou Nicole Kidman, belos como os retratados por um pintor renascentista, e, ao mesmo tempo, se maquilhem, tatuem e furem com alfinetes «de modo a assemelharem-se mais com Marilyn Manson do que com Marilyn Monroe?». Mais do que dar respostas originais ou definitivas, o ensaísta ilumina e cruza referências e pistas para reflexão.
O que este livro garante é que foi assim ao longo de mais de três mil anos. A fealdade sempre teve três manifestações diferentes: o que é «feio em si mesmo» (como um excremento), «feio formal» («um desequilíbrio na relação das partes com o todo», como uma pessoa desdentada) e a «representação artística dos dois». Eco segue estes três pontos de referência, da filosofia e mitologia gregas e dos pontos de vista teológico-metafísicos medievais à tradição antifeminina maneirista e barroca; das representações do Diabo, da bruxaria e do sadismo ao interesse por monstruosas «curiosidades científicas»; do grotesco como estética romântica à adesão à fealdade como afirmação de vanguarda ou fenómeno gregário. Ao longo de 454 páginas e milhares de imagens e pequenos enredos, o feio surgirá também como o desmedido, o demoníaco, o horripilante, o cómico, o obsceno e, até mesmo, o tecnológico. Na última página, ao terminar a aventura, provavelmente vamos até achá-lo belo.
História do Feio, Umberto Eco, Difel, 454 págs.
História da Beleza, Umberto Eco, Difel, 438 págs.
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)