A aldeia da culpa
«Imaginem a corda tensa de um arco, a cada hora que passa cada vez mais tensa.» Imaginem assim os três meses entre a chegada do 'Anderer' (o 'Outro', o 'Estrangeiro', o «homem vindo de nenhures») e o seu horrível assassinato, no qual participaram todos os homens da aldeia, excepto Brodeck. A ele, forçá-lo-iam à redacção de um Relatório dos acontecimentos, para que as pessoas os «compreendam e perdoem». O que leremos será antes o relato à margem que o narrador-protagonista decidiu escrever, o verdadeiro O Relatório Brodeck, um romance notável e perturbador assinado em 2007 pelo francês Philippe Claudel (47 anos, Prémio Goncourt 2003 com Les Petites Mécaniques, Prémio Renaudot 2005 com Almas Cinzentas).
A acção decorre pouco tempo após a Segunda Guerra e a ocupação nazi. A aldeia, cercada por montanhas, situa-se algures na fronteira com a Alemanha. Trinta anos antes, Brodeck, orfão ainda criança, instalara-se ali com a velha Fédorine, que o adoptara enquanto fugia «do ventre podre da Europa». Agora, é ali que ele regressa, como sobrevivente de um campo de concentração. Não se limitará à descrição do que sucedeu a 'Anderer', o excêntrico artista sem nome, capaz de retratar, como num espelho, a verdadeira alma dos homens e das paisagens. Brodeck, o suposto único inocente, ele, que aprendeu no campo que 'um homem é nada', vai contar a sua história e confessar-se.
O Relatório Brodeck contraria a ideia de que tudo já foi escrito e reescrito sobre o Holocausto e a Europa do século XX como sinónimos de horror, trauma e culpa. Numa cativante arquitectura romanesca, gerindo o suspense de um policial, a eficácia da descrição mais nua e a emoção do registo confessional, Philippe Claudel não hesita perante questões tão complexas como o síndrome do sobrevivente, a banalidade do mal, a psicologia de grupo ou a xenofobia.
O resultado é um incómodo romance de ideias, desses que obrigam mesmo a pensar. Quer se tome como conto de fadas ou de terror, obriga-nos a uma reflexão sobre a verdade do registo humano do amor, da guerra, da morte e, sobretudo, do medo e da culpa. Brodeck pergunta: «Será a História uma verdade capital feita de milhões de mentiras individuais cosidas uma às outras?» Responde-nos com um relatório terrível sobre a solidão de cada homem no confronto consigo mesmo.
O Relatório de Brodeck, Philippe Claudel, Asa, 256 págs.
SOL/ 25-09-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)