Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

terça-feira, novembro 09, 2010

Nélida Piñon | Entrevista



Né­li­da Pi­ñon tem 60 anos [em 1997] e foi a pri­mei­ra mu­lher a subir à pre­si­dên­cia da Aca­de­mia de Le­tras Bra­si­lei­ra, em 1996. Ves­ti­da, pe­la pri­mei­ra vez, de ver­me­lho e assumindo uma he­ran­ça dei­xa­da por Ma­cha­do de As­sis. For­ma­da em Jor­na­lis­mo, es­treou­–se em 1965, com o ro­man­ce Guia­–Ma­pa de Ga­briel Ar­can­joA República do Sonhos, escrito em 1984, narra a saga daqueles que procuram o ouro dos sonhos e da memória, inaugurado nas narrações do avô Xan e resgatado por Madruga, o protagonista, quando se decide a contar as suas lendas.

O ros­to de Nélida Piñon é, ele pró­prio, uma en­cru­zi­lha­da de ca­mi­nhos e me­mó­rias. É ne­ta de ga­le­gos, ca­rio­ca de nas­ci­men­to, lu­ta­do­ra por con­vi­ção, uma mu­lher que faz trans­fu­sões de san­gue e de cul­tu­ra com as gentes e a vida. Em A República dos Sonhos, procura as suas raízes e cruza os continentes americano e europeu através de personagens em busca de sonhos. Aqui, fala na primeira pessoa da memória

A certa altura, Es­pe­ran­ça, fi­lha do ga­le­go Xã, diz: «Tu­do o que que­ro é uma ter­ra on­de se dê espaço às in­ven­ções e ao ima­gi­ná­rio.» É es­sa a re­pú­bli­ca dos so­nhos pro­cu­ra­da neste livro?
NÉLIDA PIÑON Ela re­pre­sen­ta al­guém que ti­nha es­pe­ran­ça nu­ma ter­ra on­de as suas ideias pu­des­sem vin­gar. Nas­ceu no iní­cio dos anos 20 e mor­reu ce­do. As suas ideias es­ta­vam fo­ra de épo­ca mas ela ti­nha so­nhos su­fi­cien­tes pa­ra bus­car uma uto­pia, pa­ra ima­gi­nar que era pos­sí­vel te­cer com os fios in­vi­sí­veis do des­ti­no uma vi­da me­lhor pa­ra si e pa­ra a sua es­pé­cie ra­ra, da­que­les que não se aco­mo­dam. A ideia cen­tral é a de que a  Amé­ri­ca, ter­ra pro­mis­so­ra, es­tá em nós. Nós é que lu­ta­mos por or­de­nar as traves mestras co­mo se es­ti­vés­se­mos lan­çan­do as pe­dras das gran­des fun­da­ções teo­ló­gi­cas.

De um no­vo so­nho...
Da ca­pa­ci­da­de de en­ten­der que ca­da so­nho traz in­cu­ti­do em si mes­mo um con­cei­to de fra­cas­so.

O que já foi su­fi­cien­te­men­te tes­ta­do na Eu­ro­pa...
Não lan­ço um ar­pão con­tra a Eu­ro­pa. Ape­nas mos­tro que a Amé­ri­ca é um pro­du­to das fa­bu­la­ções pos­sí­veis. Ne­la es­tão im­pli­ca­das to­das as cul­tu­ras, to­dos os de­ses­pe­ros e de­si­lu­sões mas tam­bém to­das as aven­tu­ras. O que nos le­va a pen­sar que não nos au­to­–inau­gu­ra­mos, so­mos um pro­du­to de múl­ti­plas inau­gu­ra­ções.

Es­te li­vro é tam­bém um ajus­te de con­tas com to­das as fu­sões que exis­tem na sua bio­gra­fia.
Sou uma mu­lher de múl­ti­plas cul­tu­ras. Sei que sou mui­to an­ti­ga na Eu­ro­pa e no­va na Amé­ri­ca. Cos­tu­mo di­zer que te­nho um olhar tão re­cen­te so­bre o Bra­sil que a mi­nha fa­mí­lia é mais jo­vem do que as pal­mei­ras im­pe­riais do Jar­dim Bo­tâ­ni­co, plan­ta­das por D. João quan­do lá che­gou, em 1808. Por­tan­to, olho o Bra­sil re­ver­be­ran­do o tem­po to­do. Is­so é­–me mui­to gra­to. Por­que es­sa com­po­si­ção de an­ti­gui­da­de po­de le­var­–me até à Gré­cia com ab­so­lu­ta na­tu­ra­li­da­de.

Sen­do apá­tri­da ou per­ten­cen­do a to­do o la­do?
Eu per­ten­ço pro­fun­da­men­te ao Bra­sil mas te­nho ou­tras per­ten­cên­cias. Es­te é um li­vro de bus­ca de raí­zes que co­nhe­ço mas que não acei­to co­mo cer­te­zas. Pro­cu­ro o epi­cen­tro, uma ori­gem mais pro­fun­da, não lo­ca­li­za­da ou re­gio­na­li­za­da: uma ori­gem da mi­nha al­ma. Sem­pre sen­ti que fui uma ae­do, aju­dan­do Ho­me­ro a fa­zer os seus tex­tos, ou uma amau­ta da Amé­ri­ca, no sen­ti­do dos In­cas, não dei­xan­do que a me­mó­ria pe­re­ça. Te­nho uma no­ção his­tó­ri­ca mui­to agu­da e uma no­ção cla­ra de que as cul­tu­ras nas­cem co­la­das umas às ou­tras. A  mi­nha bio­gra­fia é ab­so­lu­ta­men­te in­su­fi­cien­te. Só sou eu quan­do sou vi­zi­nha de to­do o mun­do. Nes­te sen­ti­do, sou uma pe­re­gri­na.

Usan­do a pa­la­vra co­mo meio de li­ga­ção en­tre mun­dos, tal co­mo faz nes­te li­vro?
As pa­la­vras têm uma ori­gem, fo­ram for­ja­das pe­lo de­ses­pe­ro, preen­chen­do par­te da so­li­dão do ho­mem. Eu uso­–as, so­bre­tu­do, com as suas su­ges­tões e alu­sões. Quan­do uma se co­la à ou­tra, po­de­mos agre­gar­–lhes a lu­mi­no­si­da­de do fil­tro poé­ti­co. É es­se o jo­go e a apren­di­za­gem do es­cri­tor. São pre­ci­sos pe­lo me­nos 20 anos pa­ra co­me­çar a es­cre­ver, per­ce­ber co­mo as palavras se mo­vem, co­mo são mean­dro­sas. É uma coi­sa ab­so­lu­ta­men­te má­gi­ca. A pa­la­vra es­tá ao ser­vi­ço da mi­nha bus­ca de luz e do que que que­ro con­cei­tuar. Mas, na fic­ção, não se con­cei­tua de for­ma pe­rem­ptó­ria: dis­far­çam­–se ideias atra­vés de fei­tos nar­ra­ti­vos. E as pa­la­vras são ar­queo­ló­gi­cas, in­te­gran­do, co­mo Tróia, vá­rias ci­da­des den­tro de­las. À me­di­da que o lei­tor vai en­ten­den­do o jo­go ver­bal do es­cri­tor, vai per­ce­ben­do que di­zem mil coi­sas, fa­lam de mil ra­ças.

Em A Re­pú­bli­ca dos So­nhos, usou­–as prio­ri­zan­do uma ideia?
Quis di­zer tan­tas coi­sas... Daí a ri­que­za do tex­to, fei­to pa­ra pro­li­fe­rar, co­mo a mul­ti­pli­ca­ção dos pães. As pa­la­vras ajus­tam­–se a um edi­fí­cio. A mi­nha pri­mei­ra preo­cu­pa­ção foi mon­tar tan­tas per­so­na­gens, em tan­tas épo­cas di­fe­ren­tes. Apre­sen­to 100 anos de his­tó­ria do Bra­sil mas, atra­vés de cer­tos re­cur­sos nar­ra­ti­vos de al­gumas per­so­na­gens, con­se­gui apreen­der mais 100 e atin­gir al­guns ins­tan­tes cons­ti­tu­ti­vos da na­ção bra­si­lei­ra.

Cru­za­dos com a Ga­li­za e a in­ven­ção da Amé­ri­ca...
Tra­ba­lhei com mui­to do sé­cu­lo XIX ga­le­go, mas as evo­ca­ções de Xan le­vam­–nos até ao séc. XII, o das pe­re­gri­na­ções, a época de ouro. Aliás, Xan é a mi­nha ho­me­na­gem aos con­ta­do­res de his­tó­rias, aos que nar­ram em se­gre­do...

Aque­les que or­ga­ni­zam a me­mó­ria mí­ti­ca e cons­troem os pi­la­res de vá­rias ge­ra­ções?
Cla­ro. Pa­ra mais, na sua mo­dés­tia, Xan ex­pli­ca a na­tu­re­za do tex­to. Por exem­plo, quan­do es­tá a con­tar uma his­tó­ria e as pes­soas se dis­traem, rea­ge e acres­cen­ta in­gre­dien­tes que as cap­tem de no­vo. E se al­guém lhe co­bra o fi­nal de um enredo lon­go, diz: «Quem não tem pa­ciên­cia não me­re­ce ou­vir his­tó­rias.»

Má­xi­ma apli­cá­vel a es­te li­vro com as suas 734 pá­gi­nas e uma es­tru­tu­ra ex­tre­ma­men­te com­ple­xa, com­pa­rá­vel à de Cem Anos de So­li­dão, de Ga­briel Gar­cía Már­quez...
Es­te é um li­vro enor­me, a des­co­brir. O Car­los Fuen­tes dis­se que faz o cor­te das Amé­ri­cas. Acho que foi por is­so que, em 1996, me de­ram o Pré­mio de carreira Juan Rul­fo [o maior e mais im­por­tan­te da li­te­ra­tu­ra la­ti­no­–ame­ri­ca­na, pela primeira vez atribuído a um autor de língua portuguesa e a uma mulher]. Xan ima­gi­na que o ne­to, Ma­dru­ga, se­rá o seu su­ces­sor, nun­ca que irá pa­ra a Amé­ri­ca. E diz­–lhe, da Galiza: «Hou­ve um mo­men­to, em que to­da a Eu­ro­pa so­nhou con­nos­co, em que fo­mos ob­jec­to do so­nho alheio. Traz­–nos de vol­ta as len­das que os cas­te­lha­nos nos rou­ba­ram.» Ele sabia que as len­das tam­bém se rou­bam.

Os mitos e a memória funcionam como formas de resgate?
O mi­to cer­ti­fi­ca­–nos, le­gi­ti­ma es­sa gran­de­za da me­mó­ria. Sou ca­da vez mais uma lei­to­ra do pas­sa­do. Pos­so ser mais com­pla­cen­te quan­do en­ten­do de on­de vie­mos. Sem a me­mó­ria, não pas­sa­mos de ba­lões à de­ri­va. Em da­da al­tu­ra, Ma­dru­ga sen­te que tem em si pró­prio mui­tos ges­tos rou­ba­dos. Nós to­dos pra­ti­ca­mos ges­tos que são in­cor­po­ra­dos não se sa­be de on­de. Eu, por exem­plo, des­co­bri que dou es­pe­cial aten­ção a quem tem olhos azuis por­que es­sa era a cor dos olhos do meu avô Da­niel, que per­di aos 14 anos. Bus­co-o des­se mo­do. To­dos nós cons­tan­te­men­te nos pro­cu­ra­mos. Se­ria uma des­fa­ça­tez ima­gi­nar­mo­–nos inau­gu­rais... Pro­cu­ra­mos afi­nal uma inau­gu­ra­ção co­lec­ti­va e pre­té­ri­ta. E é por is­so mes­mo que só os gran­des po­vos pra­ti­cam gran­des cor­te­jos fú­ne­bres, fa­zen­do a ca­tar­se dos seus mor­tos.

Pro­cu­ran­do uma es­pé­cie de Atlân­ti­da per­di­da, co­mo se faz nes­te li­vro?
Te­nho mui­ta des­con­fian­ça das gló­rias pas­sa­das a lim­po e as­si­na­das. A me­mó­ria e a bio­gra­fia or­ga­ni­za­–se pe­lo con­tac­to com os ou­tros. Co­mo se o continente ti­ves­se ido pa­ra o fun­do do mar e nos ca­bes­se a nós tra­zê­–lo pa­ra a su­per­fí­cie e des­co­brir o mun­do. Um li­vro ou uma fra­se são a bus­ca das se­te ci­da­des, que ali fi­cam em­bu­ti­das e que nós va­mos de­sen­ter­ran­do. É nes­se mo­vi­men­to geo­ló­gi­co que se des­co­bre a ci­da­de de um tex­to.
VISÃO/ Abril 1997
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)