Poetas da edição
Militante, resistente, obstinada na defesa da poesia, a editora Assírio & Alvim comemorou 25 anos em 1997. Fica a memória de um grande editor e do seu relato de resistência, datado desse ano.
Começou pela mão de João Carlos Alvim que, aos 20 anos, queria mudar o mundo. Então redactor no Jornal do Comércio, decidiu trocar o serviço da pena e, com ajuda financeira da mãe, abrir uma editora que fizesse uma resistência intelectual ao regime. Com ele, embarcaram no projecto Assírio Bacelar (Vega), José Antunes Ribeiro (Ulmeiro) e Mário Reis (Arco–Íris). No dia 12 de Novembro de 1972, foi feita a escritura e escolhido o nome, ao acaso, entre os apelidos dos sócios. Sem olhar a meios, alheia a qualquer tipo de gestão comercial providente, a Assírio & Alvim abriu, seguindo os ventos que então corriam em França e Espanha. «Queríamos divulgar novos textos de sociologias empenhadas — não só académicos, mas com uma carga ideológica que, então, fazia sentido —, textos que companhassem as mudanças que se operavam.» A atenção à poesia e à literatura marca presença logo no início, com a edição de Antologia da Poesia Concreta em Portugal. Entre chamadas de atenção por parte do SNI e vários concílios entre os sócios, a editora entra rapidamente em processo de ruptura financeira e, em meados dos anos 70, é salva com a ajuda de Homero Cardoso e Conceição Teles. João Carlos Alvim é o único sócio que aguenta o barco até 1983. «A linha editorial chegou a ser alvo de plenário. As escolhas eram sempre assumidas colectivamente. Essa foi, ao mesmo tempo, a maior força e fraqueza da casa», explica hoje.
Manuel Hermínio Monteiro entra na editora, em 1974, como vendedor, conciliando essa actividade com o curso de História. Frequentando vários meios intelectuais, inicia uma série de amizades marcantes para o futuro da chancela — a que estabeleceu com Mário Cesariny resultou na sua colaboração em Poesia de António Maria Lisboa (1978), o livro que marca uma viragem decisiva na linha editorial. Recentrada numa atenção permanente à poesia, a casa encontra finalmente um rumo, assumido por Hermínio a partir de 1983. Diz João Carlos Alvim: «Tiro–lhe o chapéu por ter conseguido afirmar a Assírio como um exemplo único de reconversão de sucesso.» De então até hoje, a sua história escreve–se com relatos de cumplicidades e militâncias, onde participam alguns dos nomes mais marcantes da poesia das últimas duas décadas. Hoje, estende–se a uma livraria nos lisboetas cinemas King, outra, no Teatro Nacional Dona Maria II, e a inúmeros focos de uma actividade cultural que culmina no extenso programa de comemoração do seu aniversário. Como um caso de sucesso de uma lógica comercial aplicada a um nicho de mercado onde aflora o espaço marginal.
Nasceu em Novembro de 1972, como um projecto de luxo de algumas pessoas empenhadas em fazer, através dos livros, a resistência ao espírito vigente. Um ano depois, estava à beira da falência. Sobreviveu, abriu um novo espaço na edição de poesia portuguesa, cresceu graças à militância de todos aqueles que viram nela, e nos livros, um sinal de que os sonhos colectivos que fogem à lógica das massas são, afinal, possíveis. Quando comemora os seus 25 de anos de existência, a editora Assírio & Alvim celebra também uma existência expressa em alguns dos versos mais importantes das últimas décadas e uma forma singular de editar em Portugal. É disso que fala Manuel Hermínio Monteiro, 45 anos, director editorial da casa, esse rapaz da aldeia de Parada do Pinhão, Concelho de Sabrosa, que conquistou os leitores de poesia e os poetas portugueses sem nunca escrever um verso.
VISÃO: O que faz a diferença entre a Assírio & Alvim e as outras editoras portuguesas?
MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO: A seguir ao 25 de Abril, quase todas se voltaram para o livro político ou de ciências sociais. Depois, foram definindo espaços próprios. O maior mérito da Assírio & Alvim foi apostar num elevado grau de exigência na tradução e no aspecto gráfico dos livros [ver caixa] e privilegiar a poesia como nenhuma outra editora. Valorizámos a poesia portuguesa deste século, nomeadamente, trazendo à tona alguns poetas menos reconhecidos. Fizemo–lo num momento [os anos 80] em que se começou a identificar a literatura portuguesa apenas pela ficção, quando a própria Associação Portuguesa de Escritores só tinha um prémio de ficção, quando a poesia era recusada até pelos livreiros.
V: Porque o público não respondia?
M.H.M.: O 25 de Abril, apesar de ter trazido a poesia para a rua — como diz o poster de Vieira da Silva —, ao mesmo tempo, escondeu-a. A necessidade de pragmatismo e de um discurso social fizeram com que a poesia não militante se tornasse quase um discurso de ociosos. A seguir, as coisas mudaram. E nós tivemos uma grande cota parte nisso, não só ao nível da edição, mas também com iniciativas como os Anuários de Poesia de Autores Não Publicados [de 1984 a 1987], a revista Phala [editada desde 1986], ou a colaboração com a Rádio Comercial, que, durante o mês de lançamento do número especial A Phala/Um Século de Poesia [Abril de 1989], passou em todos os noticiários um poema declamado de um autor português...
V: Descobriram um público que não se suspeitava que pudesse suportar uma editora de poesia...
M.H.M.: Isso deve–se também a uma certa maneira de ser. Eu chego à Assírio com um grande conhecimento do país e dos seus pequenos nichos culturais. Vinha da província, ávido de conhecer e ver tudo. Circulava bastante, o que me dava para perceber o espírito do tempo. Isso acabou por se reflectir na editora, sempre muito descentralizada, voltada para o exterior, com prolongamentos e iniciativas um pouco por todo o lado. Ao longo dos anos, desenvolvemos um trabalho cultural que não se restringe a produzir um livro e pô–lo na rua.
V: Com que tipo de ginástica orçamental?
M.H.M.: Nenhuma. Nunca tivemos qualquer injecção de dinheiro. A Assírio fez–se graças ao capital humano de uma equipa com uma enorme disponibilidade, feita com gente escolhida apenas por intuição: pessoas que se habituaram a ver aqui, mais do que um emprego, um meio para fazerem um trabalho de intervenção cultural de que gostavam.
V: Uma militância cultural tão distante da lógica comercial que rege a maior parte das outras editoras...
M.H.M.: Acho que é isso mesmo que nos distingue delas. As melhores opiniões sobre nós vêm de colegas estrangeiros que admiram, sobretudo, a nossa capacidade de resistência. E que dizem que, nos seus países, uma editora com uma linha editorial exigente e incidindo na poesia teria sérias dificuldades de sobrevivência. Nós conseguimos manter uma certa marginalidade — no sentido dessa exigência e preciosismo que são apanágios das pequeníssimas e marginais editoras — e, ao mesmo tempo, uma presença e respeitabilidade que superam o estatuto marginal. Este equilíbrio é que me parece raro.
V: Uma militância em vias de extinção?
M.H.M.: Se, antes do 25 de Abril, havia uma resistência que era mais política, hoje em dia, ela deve ser mais cultural perante a mediania, a massificação, o desleixo cultural que se vai impondo na sociedade portuguesa. E os resistentes, infelizmente, sempre foram poucos. A nossa é uma militância pela poesia, pelas coisas de que gostamos, pelos autores que publicamos. E, obviamente, o papel do editor não é só fazer o livro: tem de o divulgar. A tarefa do editor desde o momento em que acredita num escritor e o põe na rua é defender e fazer o mais possível para o levar ao conhecimento das pessoas.
V: Mesmo quando fazem certas cedências a uma lógica mais comercial…
M.H.M.: Não fazemos cedências. Em Portugal, atendendo ao número de leitores e à população do país, era quase impossível existir uma editora, por exemplo, como a madrilena Hipérion, que só edita poesia. Temos de atingir diversos leques de público.
V: O que leva a propostas tão diversas como, por exemplo, Daqui Ninguém Sai Vivo [biografia de Jim Morrison, um dos seus maiores êxitos editoriais] ou Jardim de Poesias Eróticas do «Siglo de Oro»?
M.H.M.: Desde o início, a Assírio tem o lema de que os livros se fazem para ser discutidos, não são uma pastilha, um programa que se impinge. Podemos tratar qualquer proposta, desde que o façamos com qualidade. Não impomos um tipo de gosto, apenas vamos transmitindo os nossos gostos vários.
V: O programa de poesia reflecte escolhas muito específicas...
M.H.M.: Mas muito ecléticas também. Editámos poesias tão distintas como a de Teixeira de Pascoaes e a de Cummings, a de Robert Lowell e a de Gastão Cruz, a de José Agostinho Baptista e a de Sebastião Alba. No entanto, não tenho a mínima dúvida de que são poesias de grande qualidade. Esta diversidade permite–nos dar a ideia da pluralidade de dizeres. Podemos mesmo fazer uma pequena história da poesia portuguesa deste século: com Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá–Carneiro, Fernando Pessoa, António Patrício, Edmundo Bettencourt , depois, nos anos 40, com Ruy Cinatti, a poesia dos anos 50, Herberto Helder, a poesia de 61 — de Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz e Luiza Neto Jorge — e, depois, toda aquela poesia que vem por aí fora: João Miguel Fernandes Jorge, José Agostinho Baptista, Joaquim Manuel Magalhães, António Franco Alexandre, Al Berto, e casos isolados como o António Gancho. Quase toda a poesia que se foi produzindo nestes 25 anos acabou por passar por aqui, espontaneamente.
V: Espontaneamente, os poetas ficaram também a dever–vos muito.
M.H.M.: Nós é que somos sempre devedores a essa espécie de enorme via láctea que eles deixam e que é a poesia. Fui devedor deles mal os comecei a ler. Depois de os conhecer, fiquei em dívida pelas coisas íntimas, importantíssimas para a minha vida, que me proporcionaram. Fui crescendo aqui no interior da casa, aprendendo com esta gente toda um modelo de pensar, um modo anárquico em termos de conhecimento, em que se mistura muito a intuição com a sensibilidade, o ver poético das coisas. Os autores da Assírio é que a prestigiaram, lhe deram esta forte presença.
V: Conseguir a exclusividade de direitos da obra de Fernando Pessoa é uma espécie de medalha de ouro...
M.H.M.: É extraordinariamente importante. Por um lado, pela importância da sua obra e pelo facto de a podermos publicar correctamente. Por outro, porque Pessoa, sobretudo em termos internacionais, pode abrir–nos portas para a passagem de outros poetas portugueses de excelente qualidade, que, por uma série de circunstâncias, não estão suficientemente divulgados no estrangeiros: Herberto Helder, Cesariny, António Maria Lisboa...
V: A Assírio tem capacidade para suportar as necessárias edições críticas de Pessoa?
M.H.M.: Não vamos fazer edições críticas com o aparato de notas das que têm saído. É evidente que, em termos de investigação, estamos a contar com o apoio do Estado. É preciso fazer–se um trabalho de sapa de investigação, uma nova organização dos documentos, a leitura dos manuscritos... Tudo isto é um problema de investigação e não de edição. São questões culturais que ultrapassam a editora.
V: Qual é o programa de edição previsto?
M.H.M.: Já temos uma equipa a trabalhar [composta por pessoanos como Fernando Cabral Martins, Luísa Medeiros, Manuela Parreira da Silva ou Teresa Rita Lopes] e um programa de edição delineado. Paralelamente, queremos criar uma revista que divulgue todos os textos de investigação, portugueses e estrangeiros, sobre Fernando Pessoa. Sobretudo, vamos ter uma grande preocupação de rigor. Trata–se de uma reedição complexa porque é preciso conferir os textos no original. Tenho todas as edições portuguesas de Pessoa e constato que, em algumas delas, os organizadores alteraram linhas inteiras de texto, reescrevendo-o a seu bel prazer. A nossa maior preocupação é a de editar obras que sejam de referência, sem erros, rigorosas. Era muito fácil se assumíssemos Pessoa apenas numa perspectiva comercial: pegávamos nas edições da Ática, e era só imprimir papel e ganhar dinheiro. Queremos fazer um trabalho de fundo, de referência.
V: O que implica um crescimento da editora que pode comprometer o seu espírito familiar e militante...
M.H.M: Se isso acontecesse, deixava de ser editor.
* Design & letras *
A imagem gráfica foi sempre um dos maiores trunfos da Assírio & Alvim
Livros limpos, sóbrios, onde as páginas respiram ao sabor das letras. São assim os volumes da Assírio & Alvim, cujo design gráfico é, desde 1976, concebido por Manuel Rosa, 43 anos. A aventura começou com a amizade por Hermínio Monteiro e levou este escultor a uma área onde ainda hoje se move como um curioso visitante. «Porque não sinto que tenha a mesma preocupação dos designers gráficos com os aspectos mais técnicos. Para mim, acima de tudo, está o livro enquanto objecto que deve interessar aos leitores, ter uma leitura agradável e respeitar o espírito dos autores.» O mais despojados possível de artifícios, os livros da Assírio fogem a estéticas sujeitas a modas, procuram adequar o tipo de linguagem gráfica ao programa editorial em causa. «Procuramos que o grafismo esteja ao serviço do texto e que não seja rígido ao ponto de o espartilhar.» No início, não houve uma estratégia determinada, apenas um caminho que «aconteceu naturalmente» e que resultou numas das mais fortes imagens gráficas do mercado editorial português.
VISÃO Nº245/Novembro de 1997
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)