Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

sábado, novembro 06, 2010

Jonathan Franzen - Um Livro Por Dia


A liberdade segundo Jonathan

Jonathan Franzen, o novo grande romancista americano, é reeditado em Portugal

Espécies ameaçadas. É o que a Time chamou, no dia 12 de Agosto último, às aves e aos grandes romancistas. Após dez anos de secura, a revista norte-americana, com 20 milhões de leitores nacionais e 25 milhões no estrangeiro, encontrou por fim um escritor digno de figurar na sua capa, desta vez com o título gigante «The Great American Novelist» (Virginia Woolf foi o primeiro, em 1937; o último foi Stephen King; da lista, constam Faulkner, Joyce, Nabokov, Updike, Mailer e Le Carré). Chama-se Jonathan Franzen. Acabara de lançar o seu quinto romance, Freedom, e, cinco dias após aquela edição da Time, completou 51 anos. Romancista, ensaísta e observador de aves nas horas vagas, desde 2001 e a publicação do terceiro romance, Correcções (National Book Award e finalista do Pulitzer e do PEN/Faulkner), é levado em ombros pela crítica anglosaxónica. Correcções acaba de ser reeditado em Portugal. Representa bem o que a Time chama «o mais ambicioso» autor americano vivo, enquanto Freedom não chega às livrarias portuguesas (em Março, também pela Dom Quixote).
A vida privada de Jonathan Franzen é pouco sumarenta: dois divórcios, sem filhos, namora com uma escritora e divide-se entre um apartamento e um escritório alugado em NY e uma casa em Santa Cruz, Califórnia. Com ar de miúdo, o escritor, mais do que tímido, surge nas entrevistas como um sujeito muito cauteloso, que chega a pedir para corrigir as longas frases antes proferidas. Ele pensa muito e preocupa-se... por ele e por nós, garante a Time. Até pode ser este trunfo do rapaz certinho, antiquado e nada auto-centrado o que o habilita a ser o relator mais privilegiado e crítico da cultura americana actual, pronto a produzir o mítico grande romance americano. Correcções demorou sete anos a escrever; Freedom, oito, ensombrados pelo suicídio de dois grandes amigos, um deles o escritor David Foster Wallace. Longe dos ruídos, mas com ouvidos e olhar bem documentados (abundam informação especializada e oralidade actual), procede a uma observação mais detalhada e acutilante.
Franzen é um autor e estilista meticuloso e disciplinado (trabalha num computador velho, sem ligação à net), picuinhas mesmo, até com a promoção dos livros: a fama e o topo das tabelas chegaram quando desdenhou do selo do clube de leitura de Oprah Winfrey na capa de Correcções, porque este afastaria o público masculino (Oprah retirou o convite para entrevista e Franzen foi soterrado com críticas por elitismo). O escritor tem uma missão a cumprir: retratar a sua época e fazê-lo em obras-primas atraentes para todo o tipo de público. Romances muito ambiciosos, mas acessíveis. Ao ponto de conseguirem passar mensagens tão inesperadas como a da história dos Berglunds, a família nuclear de Freedom: afinal, as liberdades individuais não trazem felicidade comparável à que retiramos dos compromissos assumidos com o mundo à nossa volta.
Jonathan Franzen nasceu no Illinois e cresceu num subúrbio da cidade de St. Louis, no Missouri, cenário do primeiro romance (The Twenty-Seventh City, 1988) e próxima da arquetípica St. Jude de Correcções. Num famoso e desiludido ensaio de 1996 sobre o estado da literatura («Perchance to Dream», publicado na revista Harper), o autor esclareceu: «Quando saí do liceu, em 1981, não fazia a mínima ideia de que o romance social tinha morrido.» Desactualizado, portanto? Nada. Franzen tornou-se, isso sim, um revivalista concentrado no enredo e nas personagens e, nisto, aparentado com Foster Wallace, John Irving ou Don deLillo. A ignorância inicial tornou-o imune ao pós-modernismo e fê-lo juntar a escrita modernista não muito experimentalista à missão dos grandes romances vitorianos (Dickens anda por aqui), com enredos altamente estruturados e de grandes fôlego e incidência moral. Franzen focou-se na crónica familiar, simultaneamente satírica e realista, para retratar as grandes transformações sociais. Correcções (como Freedom) é um destes tijolos de imaginação e estrutura rendilhada, centrado nos Lambert, uma família quase como as outras. Um microcosmo expandido para criticar a América pré-novo-milénio e abordar temas como o consumismo, a infidelidade, a cultura terapêutica ou o oportunismo nos países ex-soviéticos.
EUA, final dos anos 90. O pai, Alfred Lambert, engenheiro reformado, 70 anos, só se sente seguro quando se enterra no cadeirão de estimação que a mulher, Enid (controladora, neurótica, perita em coerção emocional), exportou sem piedade da sala de estar para a cave-laboratório. Alfred sofre de Parkinson, mas criou algo importante para a cura desta doença. Enquanto perde lucidez e capacidades, afundam-se também os seus três filhos em vidas dificilmente corrigíveis («Oh, os mitos, o optimismo infantil do consertar!»). Chip dormiu com uma aluna e arruinou a carreira como professor. Guionista falhado, parte para a  Lituânia, a convite do marido de uma ex-amante, para participar numa fraude. Denise, chef de cozinha, «uma pessoa fria», envolve-se sexualmente com o patrão e a mulher dele. E Gary, um yuppie pedante e moralista, afunda-se num casamento com extrema violência latente. Para cúmulo, Enid, como Chip, experimenta uns certos comprimidos, dourados e euforizantes. Todos exibem fragilidades com redenção limitada, numa complexa rede de peripécias e coincidências.
Enid «ama o Natal como outras pessoas amam o sexo» e quer reunir a família numa «última consoada». Consegue-o lá para o final do livro, embora esta «época da alegria e dos milagres» se torne o fim das ilusões. Em 500 páginas, Franzen retrata uma família «de Outros», atolada em erros, culpa e amor, ao fundo a tela da sociedade americana. No romance familiar e social Correcções, a grandeza advém da inteligência moral e da coragem de um autor do século XXI em se ocupar da escala individual e familiar do ser humano. Também da liberdade, até agora ameaçada, de o fazer sem ser acusado de sentimentalismo.

SOL/29-10-2010

© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)