Desde há meio século que o crítico, ensaísta, filósofo e tradutor George Steiner (n. 1929, Paris) relaciona o poder da linguagem (e da literatura) e a sociedade. Poliglota, erudito de excepção, repete em todos os seus livros que «a árvore tem raízes, mas o homem pernas e que ter pernas é um progresso imenso» (em «Quatro Entrevistas com George Steiner», de Ramin Jahanbegloo, Fenda). De facto, é o permanente movimento de curiosidade intelectual, livre e independente e à margem de qualquer sistema, que lhe garante - e aos seus leitores - um contacto único com a complexidade do mundo e o «ilogismo da história». Prova disso é «Os Livros Que Não Escrevi», o ensaio mais recente, editado este ano nos Estados Unidos e em Portugal, pela Gradiva.
«Cada um dos sete presentes capítulos fala de um livro que eu esperava escrever, mas não escrevi. E tenta explicar por que razão o não fiz.» Steiner, numa curta introdução, destaca a «sombra activa, irónica e nostálgica» desses livros não escritos, demasiado polémicos, indiscretos ou dubitativos. Em 300 páginas, irá oferecê-los ao leitor como lições de inteligência e raciocínio.
Primeiro, parte das teses do bioquímico Joseph Needham sobre a ciência e a civilização na China para reflectir sobre as (im)possibilidades da objectividade científica e a fluidez das demarcações entre o facto e a ficção. Steiner é mestre na desconstrução de tabus e convenções, quer fale de literacia, dos absurdos em torno do amor pelos animais, da inveja (descubra-se Cecco D’Ascoli, desafortunado rival de Dante) ou da interacção entre sexualidade e enunciação (divertidas as abordagens ao donjuanismo do poliglota e ao poder libidinoso do calão).
Prato forte serão com certeza as considerações sobre política, intimidade, obsessão intelectual e teologia do vazio, no último ensaio, «Pôr a Questão». Em «Sião», o quarto, Steiner regressa à questão recorrente de uma identidade própria para os judeus. Como sempre, é marcante na teoria anti-sionista de que a «judeicidade» não sobrevive à ausência de banimento, exílio e diáspora, elementos centrais para as suas constitutivas e exclusivas «consciência de si» e propensão para o texto. «Os Livros Que Não Escrevi» é em si mesmo um testemunho único da errante ginástica mental de Steiner, um intelectual sofisticado e cosmopolita.
Os Livros Que Não Escrevi, George Steiner, Gradiva, 304 págs.
SOL/ 19-07-2008
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)