O eu assassino
Num romance inédito, Nabokov oferece um jogo de crime e identidade
Não se deixem enganar pelo título. Desespero, do mestre Nabokov, não é um livro depressivo. É antes um romance regrado por uma ironia jocosa e assustadora, ou, como disse o romancista Martin Amis, «um trabalho arrebatador — trepidante, hilariante e incrivelmente espirituoso» (aliás, é evidente a inspiração aqui retirada por Amis para o romance Comboio da Noite). Nas suas Aulas de Literatura (Relógio D’Água), Vladimir Nabokov (1899-1977) insistia: «Os grandes romances são grandes contos de fadas.» Não foge à categoria esta história negra de Hermann Karlovitch, protagonista e narrador, 36 anos, «um homem de negócios de segunda categoria com ideias». Após o encontro em Praga com um vagabundo cujo rosto é perturbadoramente semelhante ao seu, nasce dentro de Hermann um plano de desagregação de personalidade que o tornará um assassino maravilhado consigo mesmo. Desespero, inédito em Portugal, sai pela Teorema, numa óptima tradução de Telma Costa.
«Vou obrigar-vos a todos, seus patifes, a acreditar...» Hermann grita-nos o que quer e Nabokov ajuda-o na manipulação narrativa, quase surreal. O original de Desespero foi escrito em russo, em Berlim, em 1932, quando o escritor tinha 33 anos. Dois anos depois, foi publicado em Paris numa revista de emigrados. Em 1937, foi traduzido pelo autor para o inglês e publicado em Londres, numa edição destruída por uma bomba alemã. Por fim, em 1965, Nabokov fez uma revisão integral deste texto de quando era um «aprendiz desastrado», com «palato virgem e uns olhos sem remela» (do prefácio pelo autor). Daí nasceu uma das lições do maduro autor russo-americano, mas com sinais do fulgor alegre de quando era um jovem impressionista.
Atenção aos detalhes descritivos. Atenção à gestão da expectativa. Atenção aos truques do estilista, disfarçados sob as especulações do narrador quanto à eficácia do seu relato (escrito em vinte e cinco caligrafias misturadas, garante ele!). Desespero é o «conto» que Hermann nos destina. Pede atenção e dá-nos o humor estranho de uma «memória impaciente», as impressões e o mundo anquilosado de um grande ego, sempre «a apertar a fivela da [sua] história um pouco mais». Através do fascínio de um homem pelo seu duplo, Nabokov apresenta-nos um «puro artista do romance».
Desespero, Vladimir Nabokov, Editorial Teorema, 232 págs.
SOL/24-09-2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)