As listas de Aleksandar
«Há algures uma Bósnia assim, perdoa-me, / uma terra fria e pobre, /Faminta e nua, / E, além disso, ainda, / Perdoa-me, / Casmurra / De sono.» A citação é do poeta bósnio Mak Dizdar (1917-1971). Aos 28 anos, em 2006, Saša Stanišić integrou-a no romance de estreia, Como o Soldado Conserta o Gramofone, e ela servir-lhe-ia bem de epígrafe. Sabemos que existe algures na Ilíria, a noroeste dos Balcãs, aquela Bósnia (e Herzegovina), antes parte do Reino da Hungria, dos impérios otomano ou austro-húngaro, do Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos ou da Jugoslávia de Tito, espaço real de uma espantosa, explosiva miscigenização de povos. Imaginamos essa Bósnia a despertar, por fim, dos traumas de séculos condensados em quatro anos de terrível guerra civil (1992-96: 100 mil mortos, dois milhões de deslocados), mas ela (como a maioria dos países de leste) é por natureza uma identidade com uma mecânica complexa, autónoma e ainda inatingível. Um teimoso «quebra-cabeças por acabar», marcado pela inocência e pela originalidade, como pela resistência e pela crueldade. Stanišić projecta-o no delirante emaranhado de histórias narradas por Aleksandar Krsmanović, «estudante, neto, refugiado, com o cabelo comprido, com orelhas grandes, em busca da sua memória», protagonista de Como o Soldado Conserta o Gramofone.
Como Stanišić, o adolescente Aleksandar é filho de uma bósnia e de um sérvio, neto de muçulmanos, e, em 1992, adolescente, assiste ao cerco da guerra à sua cidade, Višegrad - cenário de Uma Ponte sobre o Drina (1945), de Ivo Andrić. A fuga com os pais para o sul da Alemanha acompanha o desmoronar do mundo confortável e circular da infância. Pelo caminho, morto o avô Slavko contador de histórias, Aleksandar toma dele essa função, vive peripécias tragicómicas, busca o paradeiro do primeiro amor (Asija, a amiga de infância), escreve um livro (que será uma secção do romance), protagoniza um monólogo plástico que (re)cria o aburdo da catástrofe até ao confronto final com a História e com os mitos.
Aleksandar gosta de listas e este é o romance da (também estilisticamente) anárquica enumeração de vivências, aprendizagens e visões de um adolescente/criança encantador sujeito a um destino violento e confuso. A estratégia narrativa não é original e Stanišić, ainda inexperiente, por vezes não resiste a metáforas gratuitas ou demasiado rebuscadas, que, mascaradas como falsas inocência ou poesia espontânea, retiram consistência à personagem. Ainda assim, este é um excelente romance e mais um alerta para a urgente atenção para a fértil literatura hoje produzida no Leste Europeu.
Como o Soldado Conserta o Gramofone, Saša Stanišić, Quetzal, 381 págs.
LER/Fevereiro 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)