Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

domingo, outubro 24, 2010

Robert Musil - Um Livro Por Dia

As possibilidades de Musil

Estamos nesse «limiar de um tempo novo» que foi o início do século XX, e no seu epicentro europeu: Viena, capital do Império Austro-Húngaro. Ulrich, um matemático sem sentido prático, pretende renovar o encantador palacete que o seu pai acabou de alugar. O problema é que as ideias sobre o assunto lhe surgem desconexas, marcadas por uma «dispersão sem centro, característica do momento presente e dessa sua estranha aritmética que quer abarcar tudo de fio a pavio sem encontrar uma unidade».
Estamos no início do primeiro dos dois volumes da narrativa inconclusa «O Homem Sem Qualidades», trabalhada pelo alemão Robert Musil até à sua morte, em 1942, exilado na Suíça. Ao longo das mais de 1200 páginas seguintes, Ulrich tirará férias da vida para circular pelos salões, pesquisar um assassino de prostitutas, descobrir uma irmã esquecida... Sobre tudo, ele será um protagonista destituído de qualidades. Porque, afinal, aqui não há verdade nem fim. Tudo é aleatório e diverso. Como podem existir certezas, exactidão e alma? Para mais, a História provará que o «tempo novo» é afinal o da loucura da guerra e do nazismo.
Trata-se «da» novidade do ano editorial. Publicados nos anos 70 a partir de uma tradução francesa, os dois primeiros volumes de «O Homem Sem Qualidades» (revistos e finalizados pelo autor) acabam de regressar às livrarias pela Dom Quixote, traduzidos do original alemão. Entretanto, o tradutor João Barrento (filósofo, ensaísta, crítico literário e professor de Literatura Alemã na Universidade Nova de Lisboa) finaliza a edição de um terceiro volume. Inédito em Portugal, este será composto por todo o material de continuação da narrativa deixado incompleto por Musil, a base para os complexos estudos e organização póstumos da sua obra.
«O Homem Sem Qualidades» é um anti-romance, uma obra aberta como o exigiam as ambiciosas, experimentais e cépticas pesquisas do autor (formado em Engenharia e Matemática, Psicologia e Filosofia). Um monumento à literatura como «cristalização de possibilidades», porque a possibilidade é antes de mais a «capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é».

O Homem Sem Qualidades(vols. I e II), Robert Musil, João Barrento (tradução), Publicações Dom Quixote, Vol I: 847 págs., Vol. II: 455 págs.

SOL – Que qualidades particulares deve ter o leitor de «O Homem Sem Qualidades»?
JOÃO BARRENTO – Como algumas outras grandes obras modernistas, esta é uma epopeia experimental que exige resistência e persistência. É uma leitura para corredores de fundo. Não porque se trate de um romance dificil ao nível da linguagem (como o são, por exemplo, «Ulisses» e «Finnegans Wake», de James Joyce), mas porque é extremamente rico enquanto romance-ensaio ou de pensamento, alimentado pela informação muito sólida e vasta que Musil possuía.

S- Como é que a singular visão do mundo de Musil se revela na estrutura do romance?
JB – É uma visão que se enquadra no espírito das primeiras décadas do século XX. Antes de mais, no interesse contemporâneo pelo ponto de vista científico e na avidez de Musil por tudo o que se está a passar. O seu interesse pela Matemática projecta-se na intenção de fazer funcionar a personagem com uma exactidão matemática. Esse é um dos dois pólos mais importantes da construção do romance. O outro, ao qual Musil chama «a alma», é a tentativa de perceber os estados anímicos das personagens, enquadrável num interesse pelas então novas concepções da mente humana. A fusão destes dois pólos na experiência de vida é aquilo que se torna mais interessante.

S - O que é que o terceiro volume lhe acrescenta?
JB – No segundo e terceiro volumes, surge um terceiro pólo, que Musil identifica como o «outro estado». Manifesta-se numa espécie de horizonte utópico - e nunca resolvido - que o protagonista tenta encontrar através da relação incestuosa com a meia-irmã Agathe.

S – Qual é o papel da ironia em Musil?
JB – É uma das marcas principais e aparece como instrumento narrativo na acção política e na acção amoroso-erótica (aqui, uma ironia mais fina). A ironia, tal como a clareza e o rigor, podem funcionar como apoio para o leitor. Porque este é um romance complexo, mas oferece, ao longo do texto e sobretudo nos diálogos, muitas pistas explicativas que permitem perceber melhor as personagens.

S – Como é que acha que Musil gostaria que se lesse «O Homem Sem Qualidades»?
JB – Ele dizia que se podia «lê-lo» ou «ler nele». Ou seja, defendia que o romance pode ser lido em fragmentos, numa ordem aleatória, ou na íntegra. Mas dizia também que devíamos lê-lo das duas maneiras para o conseguirmos apreender em pleno... Creio que o regime de hipertexto da obra, que permite ler excertos sem que se perca muito da sua grandeza, é um dos motivos por que ela é hoje tão citada, por exemplo, nos blogues. No meu caso, li pela primeira vez o romance no final dos anos 70, bastante depois da universidade (de onde ele está bastante arredado provavelmente porque se trata de uma tarefa difícil). Depois, fui-o lendo para o ir dando nas aulas e, há cerca de quatro anos, fiz por fim uma leitura mais activa, para reactivar o texto. Ler Musil é uma engrenagem que vai acontecendo, uma experiência de contacto também com a formação obsessiva, impressionante, do autor. (que podes cortar se não houver espaço)


SOL/12-04-2008
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)