Aprendi a dizer não
Jean-Louis Servan-Schreiber, presidente do grupo editorial Expansion, costumava dizer que para fundar um jornal bastava um homem e uma ideia. O homem foi Bernard Pivot. A ideia foi de Servan-Schreiber e nasceu em Outubro de 1975. Chama-se Lire e é, ainda hoje, a revista de actualidades literárias de referência em França. Pierre Assouline, sucessor de Pivot na direcção desde 1993, acaba de ser despedido pela administração do agora grupo Express-Expansion. Assouline veio a Portugal para uma conferência enquanto autor da biografia de referência de Georges Simenon (Simenon, Gallimard), por ocasião da edição da obra do escritor francês pela ASA e do ciclo de cinema que lhe é dedicado durante este mês no Instituto Franco-Português, em Lisboa. De regresso a Paris, prossegue as suas crónicas na revista Monde 2 e na rádio France Inter, a escrita de biografias (na sua longa lista de biografados contam-se Marcel Dassault, Gaston Gallimard ou Hergé) e de romances (entre eles, Vida Dupla, editado em Portugal pela Entre Letras). Eis uma conversa com um optimista pessimista.
Para que servem os intelectuais?
Em França, mais do que em qualquer outro país europeu, o intelectual é considerado como um rei. A França é, na verdade, o país ideal para os intelectuais: acarinha-os, dá-lhes voz e, na maioria dos casos, o que dizem tem influência. Desde o nascimento do intelectual moderno, aquando do “caso Dreyfus”, a principal função dos intelectuais é a de servirem como contrapoder. Exercerem em permanência e de forma construtiva a crítica ao poder político, compensarem os excessos e abusos do poder instalado, proporem outros caminhos, funcionarem como garantia de equilíbrio. Ao intelectual cabe, acima de tudo, a reflexão sobre a evolução das ideias e, por razões morais, éticas e políticas, o questionamento das certezas.
E a quem cabe a função de criticar os intelectuais?
Antes de mais, a eles mesmos, se querem ter algum crédito. Julgo que o fazem antes de quaisquer outros.
Durante onze anos foi director da Lire. No momento da sua saída, repensou o que é hoje o papel das publicações literárias?
Em França existem actualmente duas revistas literárias [Lire e Magazine Littéraire] e os suplementos literários dos jornais Le Figaro, Le Monde e Libération, que influenciam a venda dos livros e o curso das ideias. Têm uma função indispensável. Mas em França, e talvez ainda mais no estrangeiro, torna-se cada vez mais difícil exercerem-na. Eu quero acreditar que o difícil momento económico que a imprensa atravessa não é definitivo, contudo o facto de as novas gerações preferirem a Internet aos jornais obrigará a alterações a curto-prazo.
A sua saída da direcção da Lire coincidiu com as saídas conturbadas de Pierre-Louis Rozynès da Livres Hebdo e de Jean-Marie Rouart do Figaro Littéraire. Foi uma mera coincidência ou existe uma nova lógica comercial, editorial, que afecta a condução das publicações literárias francesas?
Foi uma coincidência, mas... Houve um tempo em que as grandes assinaturas, os grandes nomes na imprensa eram uma espécie de tabu; não se lhes tocava porque eram tidos como uma mais-valia. Hoje, isso não tem qualquer importância. Os grupos editoriais são geridos por empresários com uma visão estritamente financeira e que, sobretudo, suportam cada vez menos qualquer espécie de crítica. Se algum grande nome questiona as suas opções ou perspectivas, estes novos empresários não hesitam um segundo em fazê-lo dançar.
Os editoriais dedicados a Salman Rushdie durante os anos em que a fatwa vigorou sobre ele ou a denúncia dos bastidores dos prémios Goncourt, em 1991, são alguns dos muitos exemplos da intervenção cívica e crítica da Lire durante a sua direcção. A sua saída implicará também o fim deste tipo de opções editoriais?
É cedo para dizê-lo. Mas, na verdade, o meio literário, intelectual, é muito permeável à auto-censura, o que é pior do que a censura. Julgo que não sentirá a necessidade de um censor abaixo dele, já que se toma a si mesmo como auto-crítico. Resulta também daí a imprensa consensual, sem relevo e sem sabor que temos hoje.
O que é apenas um sinal dos tempos ou uma tendência para o futuro?
Não podemos desesperar; eu tento não o fazer. O principal problema no futuro será o da alteração dos suportes. A paisagem literária vai evoluir para a leitura no ecrã do computador – e vimos bem como foram apressados os vaticínios de há uns anos sobre a morte dos livros por causa do multimédia. Por outro lado, a edição e a imprensa francesas caminham para a concentração em grandes grupos, detentores também de cadeias de livrarias e que assegurarão uma divulgação muito particular dos livros que venham a editar. Outro dado a ter em conta é a permissão já assegurada para a publicidade aos livros na televisão, o que, ao mesmo tempo, agravará as dificuldades financeiras das revistas e suplementos literários.
E é possível contar com os leitores como contrapoder?
Não. Temos desde sempre uma enorme dificuldade em cativá-los e em mantê-los. Sabemos que são cada vez menos novos, que são sobretudo mulheres... Julgo que nunca agirão por civismo, comprando jornais para os salvarem.
Mas ler hoje em dia, em termos sociais, não é uma forma de resistência?
Perante o meio dominante, a televisão, sim, é um acto de resistência. E eu sou optimista, acredito que mesmo a adesão dos jovens aos computadores significa uma nova forma de leitura. Afinal, eles lêem, aliás de um modo mais interactivo do que o fazem nos livros. E escrevem. Mal, mas escrevem, inventando uma linguagem própria. O fenómeno da multiplicação dos blogues literários coloca também perspectivas interessantes.
Nos últimos anos, ouviu-se de novo falar em Portugal da literatura francesa contemporânea, a partir de nomes como Michel Houellebecq, Marie Darrieusecq ou Frédéric Beigbeder. Existe um novo fôlego literário em França ou trata-se apenas do impacto polémico de algumas obras?
Esses são, de facto, novos talentos, mas muito desiguais. Dos três, para mim, o mais original é Houellebecq [As Partículas Elementares, Temas e Debates; Plataforma, Bertrand] – não gosto particularmente do que escreve, mas reconheço-lhe força e actualidade. O primeiro livro de Darrieussecq [Estranhos Perfumes, ASA] era muito interessante, os seguintes desiludiram-me. Beigbeder [Windows on the World, Grasset] é um fenómeno social, mais do que literário. A recente abertura a leitores estrangeiros é difícil de explicar, o que é válido também para a recepção da literatura portuguesa no estrangeiro. No entanto, o domínio do mercado norte-americano permanece evidente. O escritor português mais conhecido em França é António Lobo Antunes. E quanto vende cada um dos seus livros? Dez mil exemplares, no melhor dos casos.
Existe também aí uma função da crítica. Como director da Lire, sempre defendeu que só como excepção se deve publicar críticas negativas...
Porque os leitores esperam ser aconselhados e não desaconselhados. Para o crítico, é fácil dizer mal de um livro, fazer-se valer do cadáver de um livro que acaba de assassinar. É brilhante! Mas não acrescenta rigorosamente nada e tira espaço a uma boa obra. Publicávamos recensões negativas apenas quando o livro em questão era um fenómeno de vendas e a discussão no meio literário nos obrigava a tomar posição.
Como geria a relação com as editoras?
É simples. Basta aprender-se a dizer uma palavra: não. A partir desse momento, pode-se dizer não dez vezes por dia e fazer-se respeitar. Foi o que fiz durante onze anos.
Por toda a Europa se discute hoje o esgotamento das fórmulas usadas para falar de livros na imprensa e na televisão. Acha que também a fórmula Lire, baseada nos extractos das obras, está ultrapassada?
Ela foi inventada pelo Bérnard Pivot e é indispensável. O extracto dá o tom, exemplifica o estilo, serve de contraprova à crítica.
Para si, passar da crítica à escrita de romances foi também uma contraprova?
Eu separo completamente a crítica e a escrita de ficção. Correspondem a duas profissões totalmente distintas. O único juiz de uma obra é o seu autor. Na maioria dos casos, quando escreve sobre uma obra, o crítico revela mais sobre si mesmo do que sobre ela – é fácil detectá-lo se lermos as entrelinhas. Aliás, eu sempre considerei que faço jornalismo e não crítica; informo, pesquiso sobre uma obra. E, no limite, o livro na livraria é o seu próprio advogado: não precisa da crítica para se defender. Também porque os verdadeiros leitores resistem ao marketing, informam-se, pesquisam e chegam até ao livro.
Mas o que é que o fez dar o primeiro passo das biografias para a escrita de ficção?
Nas biografias já não conseguia explicar o lado irracional dos meus heróis. A biografia é pesada, rígida, obriga à prova, à sustentação de tudo quanto se escreve. O romance permitiu-me exprimir o lado inefável, de loucura das personagens.
O que é um verdadeiro leitor?
O Philip Roth disse-me um dia que tinha apenas cinquenta mil leitores: aqueles que compram os romances de Philip Roth mesmo quando estes não têm muito sucesso. E cito-o: “Leitores são pessoas que estão dispostas a passar duas ou três horas a ler um livro.”
Expresso/ Março de 2004
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