A música de Sacks
Quais os poderes e circuitos musicais nos territórios do cérebro e das emoções?
No livro-ensaio A Arte do Romance, o escritor checo Milan Kundera explica que, até aos 25 anos, se sentiu mais atraído pela música do que pela literatura. A vocação depressa se revelou falhada, e ele apenas conseguiu criar uma única composição. O curioso é que, três décadas mais tarde, Kundera se apercebeu de que esta composição «prefigurava, quase caricaturalmente, a arquitectura dos [seus] romances, de cuja existência futura, nessa altura, nem sequer suspeitava.» Tal como se manifestou em Kundera, ou no exemplo absoluto de Beethoven, capaz de compor anos depois de ter ficado surdo, a produção e fruição de música é um dos mais intrigantes mistérios e poderes do cérebro humano. Tida por Darwin como faculdade inútil ou por Schopenhauer como expressão da «quintessência da vida», a música ocupa a neurociência desde a década de 80. Em 2007, Oliver Sacks (n. 1933, Londres) dedicou-lhe Musicofilia.
Oliver Sacks iniciou a prática de neurologista em Nova Iorque, onde se tornou famoso, no final dos anos 70, pelos seus relatos de casos clínicos publicados na New York Review of Books. Na base desses artigos e, depois, de livros famosos em todo o mundo (Despertares, Um Antropólogo em Marte, A Ilha Sem Cor ou O Homem Que Confundiu a Mulher com um Chapéu, todos editados pela Relógio d'Água) estava um talento invulgar, e então quase inédito, para revelar a individualidade dos pacientes, ao mesmo tempo que popularizava descobertas científicas e apresentava o cérebro ao público comum.
No caso de «Musicofilia», Sacks está mais interessado em «humanizar» a música do que em fazer pedagogia. Os seus livros podem ter sido entretanto ultrapassados, em novidade, profundidade e cuidado científicos, por obras como as dos neurocientistas António Damásio ou Daniel Levitin (autor de This Is Your Brain on Music, de 2006). Mas Sacks continua a preferir exaltar «a simples arte da observação» e «a riqueza do contexto humano». Assim, neste que é o seu décimo ensaio, apresenta a música como manifestação profunda da alma e da vontade, do Self, e conjuga o relato de extraordinárias observações e experiências clínicas com informação científica, meditações filosóficas e, sobretudo, com um testemunho pessoal. Como o subtítulo indica, «Musicofilia» é um conjunto de «Histórias sobre a Música e o Cérebro». Escrito mais por um musicófilo e um humanista, do que por um cientista.
No prefácio, Sacks esclarece que tentou entrar nas experiências dos pacientes, «imagin[ando-as]». Em quatro Partes e 29 ensaios, de dimensões variáveis, dará múltiplos exemplos de como a música afecta o cérebro: de patologias da resposta à música (epilepsia, alucinações ou sinestesia musicais, amusia, desarmonia ou a extraordinária susceptibilidade aos sons dos «ouvidos absolutos» ou síndromes de Williams) de resiliência da mente humana através da música (nos sonhos e em casos de amnésia ou afasia) e do enorme potencial da musicoterapia em pacientes com doenças do foro neurológico, como Parkinson ou síndrome de Tourette. O centro são, afinal, as emoções suscitadas pela música, e, ao leitor, cada caso apresentado poderá parecer mais insólito e fascinante do que o anterior. A prosa é clara e com saborosa e criativa atenção aos detalhes, mas, nestas páginas, poderá não se colher nada de novo sobre o cérebro ou sobre música. Sentimental, o texto parece antes dizer ao leitor: «Imagina e espanta-te.» No limite, «emociona-te» com provas apaixonadas de que, apesar de se desconhecer ainda um «centro musical» no cérebro humano, a música é «tocada na nossa mente» e está ligada ao poder da imaginação. De uma forma vívida, Sacks esforça-se por dar como certa a afirmação de Novalis: «Toda a doença é um problema musical; toda a cura é uma solução musical.»
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)