Saramago, de passagem
José & Pilar, dirigido e escrito por Miguel Gonçalves Mendes, apresenta-se não como um documentário, mas como um filme, ainda assim com inegável valor biográfico. Co-produção El Deseo e O2 Filmes, será exibido na abertura do DocLisboa, a 14 de Outubro próximo, e estreará nas salas de cinema a 16 de Novembro. São 120 minutos que resumem os quatro anos durante os quais o realizador acompanhou uma boa parte do quotidiano de José Saramago e da sua última mulher (casaram em 1988), a jornalista espanhola Pilar del Rio. Protagonizada e narrada essencialmente pelos dois, a acção divide-se em três «Actos» («A Preparação», «A Viagem», «O Regresso»). Estende-se desde o início da escrita de A Viagem do Elefante em Lanzarote, em 2006, até ao período de doença grave que incapacitou Saramago (final de 2007 até ao início de 2008) e à surpreendente recuperação que lhe permitiu regressar à escrita diária de duas páginas de ficção, culminando com o lançamento mundial do último romance, em Novembro de 2008, no Brasil.
Centrado na esfera privada da relação do casal, José & Pilar pretende retratar também a alucinante agenda pública do Prémio Nobel em contraste com a intimidade do ambiente de trabalho, em Lanzarote (não se reflecte, contudo, sobre a oficina do escritor e a sua obra, antes apenas sobre a sua recepção e sempre seguindo a perspectiva do autor). Acompanham-se múltiplas viagens e momentos-chave de reconhecimento público (entre eles, a apresentação de adaptações da obra, as inaugurações da Biblioteca José Saramago em Lanzarote, da Casa-Museu e da Rua Pilar del Rio, na Azinhaga, da Fundação José Saramago, em Lisboa, e da exposição «A Consistência dos Sonhos», em Madrid, Lisboa e São Paulo) e as celebrações privadas mais importantes (homenagem à mãe de Pilar e segundo casamento do casal, em Castril, nos arredores de Granada, aniversários e datas festivas), ao mesmo tempo que é evidenciado o papel de Pilar del Rio na gestão da agenda, da correspondência, de toda a vida pública do marido.
Em alguns momentos, Miguel Gonçalves Mendes parodia o intenso assédio sobre Saramago de instituições («O que me quer o Dalai Lama? O personagem não me é nada simpático»), dos meios de comunicação (é criticamente divertida a reprodução de algumas entrevistas) e dos admiradores («Eu te amo, viu?», diz-lhe uma fã brasileira; «Desenha um hipopótamo para mim, por favor», pede-lhe um outro). Em contraste, o realizador reforça as imagens da personalidade afirmativa e enérgica de Pilar («A palavra 'descanso' não faz parte do nosso dicionário vital», diz ela), da dedicação do escritor ao seu público («Como dizer que não?», afirma ele) e do cansaço extremo que atinge o escritor. Saramago e Pilar visionaram todo o material do filme antes da montagem e deram o seu aval. A história de José & Pilar inclui, assim, um sub-texto sobre a decisão de exposição tomada pelos próprios protagonistas.
As cenas da vida doméstica do casal são de grande privacidade e cumplicidade. Mas José & Pilar revela sobretudo um José Saramago nunca visto. O escritor ri e faz rir, descreve pesadelos, chora, mostra-se frágil e dependente, está feliz em quase todos os momentos. Pretendendo ser um filme e não um documentário (a sê-lo, seria um documento acrítico), José & Pilar é uma história de amor com drama, mas sem conflito. Não deixa de ser também um testemunho raro sobre um homem que sempre se definiu como «um senhor um pouco triste» e se mostrou avesso à exteriorização da alegria e das emoções, e que, todavia, terminou a sua vida com duas décadas de intensa e pública declaração de amor a uma mulher e à vida.
LER/ Julho de 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)