Nudez e sombras
Todos com óptimas traduções pela Relógio D'Água, o italiano Giorgio Agamben, o esloveno Slavoj Žižek, o norte-americano John Rajchman ou o alemão Peter Sloterdijk produzem parte da mais inovadora e estimulante análise crítica da cultura e da política actuais. Em todos, com maior ou menor esforço, se descobrem pistas para entendimento dos problemas e desconstrução das ilusões. No ensaio «Criação e Salvação», Giorgio Agamben (n. 1942) aponta a filosofia como «profecia crítica», ainda que alerte: «Nascida de uma criação que permanece não consumada, acaba numa salvação imprescrutável e já sem objecto.»
Recém-editado, Nudez, data de 2009 e reúne dez ensaios de Agamben, súmula da sua procura de uma ontologia alternativa e de uma genealogia da governação política. O filósofo pratica um método arqueológico e paradigmático («a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia», logo, de uma sombra, defende no ensaio «O Que É o Contemporâneo»). Investiga ligações entre estética, teologia, linguagem, literatura, ética e, fundamentalmente, teoria política. Herdeiro de Walter Benjamin, ex-aluno de Heidegger e co-autor, com Jacques Derrida, de obras sobre teoria literária e filosofia, actualmente ensina Filosofia em Veneza e em Paris. O tronco principal da sua investigação é a série Homo Sacer, iniciada em 1995 com Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua e centrada na redefinição do homónimo conceito jurídico romano (outros títulos: La Comunità che Viene (2001), Stato di Eccezione (2003) e Il Sacramento del Linguaggio (2008)).
«Nudez», que dá título ao livro, põe a nudez («inseparável de uma marca teológica») na base da reflexão sobre a «conexão essencial entre queda, nudez e perda da veste» (uma «teologia da veste»), a moda ou o «niilismo da beleza». Agamben, provocatório e diverso, trabalha a simbologia das tradições e mitologias, a natureza do indíviduo e das suas relações com o poder, a religião ou a arte, teoriza a biopolítica. No ensaio «Kalumniator», toma a «calúnia» para chave da obra de Kafka, explora ligações entre tortura e verdade, autocalúnia e confissão. Em «Uma Fome de Boi», parte da teologia talmúdica do Shabat para analisar práticas de ociosidade e festa. A originalidade do seu pensamento prende-se também com uma postura engajada e de intelectual público.
Em 2004, Agamben recusou o convite para proferir uma palestra nos EUA, por não se sujeitar à identificação biométrica (US-VISIT) praticada pelos serviços de fronteiras daquele país. Anos antes, abandonou o cargo de professor numa universidade de NY em protesto contra a «política de terror» praticada pelo governo George Bush ao abrigo da instrumentalização do atentado de 11 de Setembro (efeito do que o filósofo chama «Estado de Excepção»). Os fundamentos teóricos destas tomadas de posição estão no ensaio «Identidade Sem Pessoa».
Segundo o filósofo, centrar a identidade de cada cidadão na identificação biométrica e biológica irá reduzi-lo à «vida nua» (estritamente biológica): «qualquer coisa da qual [eu, sujeito] nada sei e com a qual de maneira nenhuma posso identificar-me ou distanciar-me.» Despidos da função e reconhecimento como «pessoa social», aproximamo-nos do deportado de Auschwitz, sem nome ou nacionalidade, reduzido a um número tatuado no braço. Uma hipótese assustadora se conjugada com a actual e «imparável deriva governamental do poder político, na qual convergem curiosamente tanto o paradigma liberal como o estadista».
Agamben clama por «uma ética no extremo limiar pós-histórico em que a humanidade ocidental parece ter-se afundado». Uma ética que unifica as propostas de «Nudez». Para aprofundar a aproximação às ideias do filósofo italiano, sugere-se Giorgio Agamben: A Critical Introduction, de Luland de la Durantaye (Stanford University Press, 2009).
Giorgio Agamben, Nudez. Tradução de Miguel Serras Pereira. Relógio D'Água, 137 págs.
LER/Outubro 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)