Despedida da ilha
Tantas vezes subestimada, a arte do conto, quando atinge o seu máximo, ilumina o leitor como um rasgo de poder de comunicação e condensação de atmosfera. A Ilha, do triestino Giani Stuparich (1891-1961), é uma dessas obras-primas, agora editada pela novíssima editora Ahab, com excelente tradução de Margarida Periquito. Em pouco mais de cinquenta páginas, Stuparich lapida um diamante sobre a aproximação entre um pai, velho marinheiro e doente terminal (com um cancro no esófago), e o filho que o acompanha na sua última viagem até à ilha onde nasceu. Um testemunho belo sobre a individualidade, a memória e a herança filial em confronto com a aproximação da morte.
No posfácio, Claudio Magris defende o «humanismo genuíno e equilibrado» de Stuparich como exemplo máximo de uma «triestinidade branca», moralmente implicada, mas positiva (ao contrário da do mestre e amigo Scipio Slataper, negra e «infernal»). Trieste, então o principal porto do Império Austro-Húngaro, ao mesmo tempo centro e periferia, é ela própria uma ilha que mantém uma personalidade altiva e sensível entre fronteiras incertas. É dessa condição fértil e metafórica que se alimentam as ficções de Stuparich, Magris ou Italo Svevo.
Em 1941, um ano antes da publicação de A Ilha, Stuparich terminara Ritorneranno, complexo romance sobre a Primeira Guerra. Entre os dois, defende o crítico Elvio Guagnini, podem estabelecer-se «articulações internas extraordinárias que se entrevêem sobre o fundo, através da limpidez absoluta da superfície». Na verdade, ao longo da narrativa, como o pequeno navio branco a vapor que se dirige à ilha, assistimos ao espectáculo da evolução dos pontos de vista internos das duas personagens, sustentado por descrições penetrantes da paisagem. Em crescendo, acompanhamos o prelúdio de uma derrota, até ao previsível agravamento do estado de saúde do pai e a urgência do regresso, a implacável perda da ilha.
Na ilha, é ilusória a paz do porto onde o filho mergulha e o pai pesca, em momentos raros de conquista intrépida e recuperação de laços e memórias felizes. Afinal, «a realidade estava ali fora, na luta aberta e contínua», nos engasgamentos do doente, nas noites de insónia, no sofrimento «com reprimido horror» do filho. A realidade está no balanço existencial e solitário a que os dois são forçados, até, por fim, caminharem lado a lado na parte descarnada da ilha, numa estrada ladeada pelo «pasmo monstruoso» das piteiras, e se olharem pela primeira vez no rosto.
A Ilha, Giani Stuparich, Edições Ahab, 79 págs.
LER/Janeiro de 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)