O Amor de Uma Boa Mulher
Primeira advertência: para quem gosta de contos a leitura da obra de Alice Munro será um prazer raro. Segunda advertência, e um lamento: foram precisas quase quatro décadas para que a edição portuguesa a descobrisse. Seis meses depois da primeira tradução de Munro, com a antologia Fugas (primeiro publicada em 2004), a Relógio d’Água reincide e propõe os oito contos de O Amor de Uma Boa Mulher (uma recolha original de 1998). A descoberta da autora canadiana nesta dose dupla permite entrar a fundo na sua máquina de conversão de material autobiográfico em histórias que, com a paisagem de fundo do seu Ontario natal, são exímias na descrição da evolução temporal dos sentimentos e laços afectivos das personagens.
Tal como aconteceu com a canadiana Margaret Atwood no romance, nos anos 70 Munro foi adoptada pelos norte-americanos como um dos «seus» melhores contistas – no seu caso graças à publicação regular de contos na revista «The New Yorker». Com doze antologias e um romance publicados, Munro (hoje com 76 anos) é conhecida pela sua capacidade de conferir um movimento elástico à narrativa. Num estilo aparentemente económico e directo, ela penetra na psicologia das personagens através da acção e dos diálogos, rejeitando as descrições estáticas. Para o leitor, esta forma de contacto com as realidades quotidianas das personagens resulta numa experiência dinâmica e comovedora.
Nos contos de Munro, os catalisadores da acção podem ser movimentos de fuga a um matrimónio, a um passado, aos laços familiares ou às limitações provocadas pela doença ou pelo envelhecimento (como em «Fugas»). Por vezes, resultam de impulsos de identificação, concretização ou repulsa de fantasias (todas elas femininas, em O Amor de Uma Boa Mulher). Mas o que marca a originalidade destas histórias é a extrema atenção dada a pequenos pormenores (lembranças, palavras ou factos) que desencadeiam e iluminam a compreensão do universo de cada personagem.
Tal como diz Robin, a protagonista de «Truques» (Fugas), «basta movermo-nos um centímetro para aqui ou para ali e estamos perdidos». A intuição de Alice Munro permite-lhe determinar e descrever esses epicentros de crise. No brilhante «Podre de Rica» (O Amor de Uma Boa Mulher), a personagem Karin descreve-se como «algo de imenso, de tremeluzente e autónomo, com picos de dor em certos sítios, e no restante uma extensa e monótona planície». São assim as personagens de Munro: imensamente iguais a nós e dramaticamente diferentes.
O Amor de Uma Boa Mulher, Alice Munro, Relógio D’Água, 265 págs.
LER/Maio de 2008
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)