«Vi, nos anos 60, na Beira Alta, uma casa de banho onde os livros serviam de papel higiénico», diz Tavares de Carvalho, livreiro–antiquário. Em Portugal, o carinho pelo livro quase não tem tradição. Apesar disso, há 200 anos que se procuram e comercializam obras antigas. Bibliofilia e alfarrabismo mantêm o seu espaço. Secreto e mágico.
Os livros parecem não ansiar pela nossa consulta como se aristocraticamente se bastassem a si próprios. Nunca se esgotam. O prazer de ler conhece nos bibliófilos um apuramento especial. «Tento fixar o bom e o belo. Avalio um livro pela forma como foi impresso e encadernado, pela qualidade da tipografia e das gravuras...», explica Sérgio Moreno, 22 anos, bibliófilo.
Para eles, não se trata de revisitar uma escrita familiar ou utilizar um instrumento de consulta mas de procurar raridades. Não se satisfazem com as actuais edições de autores de outras épocas. Querem ter e ler as primeiras.
Anseiam pelas anotações do autor na margem do texto, por um rabisco seu. Querem ter um exemplar que pertenceu a alguém ilustre, a dedicatória de um poeta... Começam por escolher um escritor, tema, época ou impressor. Lêem tudo o que foi escrito sobre o assunto, investigam, queimam pestanas. Ajoelhados ou empoleirados, com horas perdidas nas livrarias alfarrabistas, caçam objectos preciosos.
RESOLVER PAIXÕES
Monsieur de la Bédoyère possuia uma magnífica biblioteca, resultado de uma vida inteira. Em 1847, por razão desconhecida, propôs–se vendê–la. O leilão foi marcado e o dia chegou. Anunciado o primeiro volume, não resistiu a ver o seu «filho» passar para mãos desconhecidas. Debateu–se com todos os interessados e readquiriu tudo. Tornou–se símbolo da bibliomania.
«O amor aos livros é um vício que só termina com a morte». Lourenço Lancastre de Sousa, 28 anos, pertence à nova geração de bibliófilos portugueses. Trabalha na Sociedade Comercial dos Leiloeiros, como assessor de Isabel Maiorca. Aqueles que, como ele, são conotados com os ratos de biblioteca, contam com os livreiros para o «reencontro» esperado.
Os alfarrabistas enveredaram pela profissão porque receberam o testemunho ou, simplesmente, acharam que era um bom ganha–pão. «Foi o acaso que me guiou», afirma João Pires, septuagenário, há quase 50 anos dono de O Mundo do Livro. «Herdei esta paixão», contrapõe Tavares de Carvalho.
Em 1948, Nuno Canavez, 58 anos, chegou à Livraria Académica, no Porto, «desconhecendo a actividade». O seu mestre, Guedes da Silva, ensinou–lhe segredos e responsabilidades. «Nunca pegues num exemplar indiferentemente. Familiariza–te com ele». Hoje, tem «milhares de títulos e capas» arquivados na memória e conta com o Presidente da República entre os seus clientes. «Quando me passa pela mão um livro que nunca vi, sei logo que é raro», diz orgulhoso.
Até se estabelecerem, os comerciantes de livros antigos envolvem–se numa espiral de exigências e estudo. «Lemos muitos catálogos e bibliografias», justifica João Lopes Holtreman, da Livraria Camões. Depois, conhecem o toque e o cheiro das preciosidades. Dispensam utensílios. Basta–lhes a experiência de contacto com o passado. Não se especializam, como é hábito no estrangeiro, porque não há procura suficiente. Não falam dos lucros ou fundos de maneio. Rodeiam–se de um mistério semelhante ao dos livros antes de serem abertos e lidos. Para lá das estantes visíveis, existem armazéns recheados de títulos. «Vivemos num mundo escondido do comum dos mortais», confidencia Tavares de Carvalho.
PATOS BRAVOS
«Não é um negócio para se fazer fortuna», diz António Silva, 70 anos, da Livraria Santo António, espaço pequeno numa rua afastada do centro lisboeta deste comércio, o Bairro Alto. «Sou um alfarrabista. Vendo livros com um ano ou 200. É uma vaidade intitularmo–nos livreiros–antiquários». O certo é que insistem na diferença. «Nas nossas relações, cada um puxa a brasa à sua sardinha», resume Tavares de Carvalho.
Profissionais como António Silva ou Tarcísio Trindade, 61 anos, alfarrabista na Rua do Alecrim, negoceiam de porta aberta. Recebem todos os clientes. Têm o nome na lista telefónica. Um livreiro de luxo como Tavares de Carvalho trabalha «por contacto». Além do armazém que possui, recebe «os conhecidos e as pessoas amigas» num requintado terceiro andar, labirinto de antiguidades — a sua casa. Contacta mais com o estrangeiro e defende esse «alargar de horizontes».
Em Portugal, este ofício, tido no passado como trabalho de usurários e charlatões, deixou de ter aficcionados apenas entre os que se interessam pela cultura. De repente, os investidores aperceberam–se de que esta aplicação de capital lhes pode proporcionar um estatuto que se conquista com dinheiro e sem estudo. «Os clientes que me dão mais lucro têm gosto pelas primeiras edições e tiragens especiais. Não as lêem e só pensam na valorização. São os amontoadores», explica Nuno Canavez.
«Os novos–ricos compram grandes bibliotecas em pouco tempo e não as conseguem digerir», diz Herculano Ferreira, 35 anos. Assim como o irmão, ajuda o pai, Manuel Ferreira, alfarrabista e leiloeiro portuense. Enquanto estes «clientes passageiros» não se apercebem de que para investir é preciso saber, vão desregulando os preços. «Há livros incompletos que se vendem mais caros do que os inteiros», afirma João Pires, indignado. Luís Gomes, 23 anos, proprietário da mais jovem casa alfarrabista portuguesa, a Livraria Artes e Letras, é mordaz: «Os tecnocratas apenas amam os livros de cheques.»
Os verdadeiros clientes são os que mantêm as tertúlias. Passam as manhãs de sábado na Livraria Histórica e Ultramarina.. J. C. Silva, conhecido como Almarjão, recebe–os numa das suas inúmeras salas. Proporciona conversas com fundo de jardim, perfume e histórias de livros. A apoiá–lo está a sua filha Margarida, 37 anos, sua sucessora.
ESTÁ EM PRAÇA
«Temas como armaria, genealogia, caça, culinária, vinhos e Descobrimentos Portugueses são clássicos», clarifica Isabel Maiorca. A primeira edição d' Os Lusíadas (Luís de Camões), da Mensagem (Fernando Pessoa) ou da Peregrinação (Fernão Mendes Pinto) nunca desvalorizarão. São o contributo português para o património bibliográfico universal. Além destes valores seguros, a compra do livro antigo sofre a influência de modas. «As peças jornalísticas, recensões literárias e teses de doutoramentos ditam a flutuação da procura», explica Sérgio Moreno.
«O que está a dar» é Camilo Pessanha, a Geração de 70, modernistas e livros sobre arte e mobiliário. Longe destas oscilações de temperamentos estão os livros portugueses quinhentistas, os mais cotados.
«Um livro do Padre António Vieira, século XVII, é raro mas não atinge os preços dos de Miguel Torga, José Régio ou António Ramos Rosa. Feliciano de Castilho ou Guerra Junqueiro, célebres há cem anos, caíram no esquecimento», afirma Nuno Canavez. Em tempos, Miguel Torga contou–lhe que quando oferecia as suas primeiras edições poucos as aceitavam. Hoje, Ansiedade, que considera «o menor» da sua obra, chega a atingir os 700 contos.
Os alfarrabistas culpam também os leilões pela inconstância das suas receitas. Em Portugal, o crescimento desta prática, corrente no estrangeiro, deve–se ao interesse pelas antiguidades no pós-25 de Abril. Assistir a uma sessão é uma experiência de contacto com um mundo onde siglas, subentendidos e psicologia de grupo imperam. Há pessoas que só compram em leilão, inebriadas pela pressão do «picar dos livros». Com uma base de licitação definida, um bom volume pode atingir um valor cem vezes superior ao real. Cada licitador tem um código preciso, que o pregoeiro conhece de antemão — torcer o nariz, levantar o dedo ou o sobrolho significam adesão ao despique. «Um bom comprador sabe quando deve parar. Um investidor apressado exibe a força do dinheiro e aumenta o valor da peça», comenta Tavares de Carvalho. Luís Gomes contraria a opinião geral: «Os leilões, com uma comissão fixa de 25%, não nos retiram poder de compra. Venderem–nos bibliotecas é mais rápido e menos trabalhoso.»
PECHINCHAS
«Houve tempos em que as grandes bibliotecas, transportadas em mudanças por carros de bois, serviam de lenha», diz Isabel Maiorca. Foi esse o tempo das pechinchas - lotes de livros comprados por tuta e meia e recheados de preciosidades. Alfarrabistas estrangeiros e grandes universidades mundiais, conscientes da importância das edições portuguesas, aproveitaram os baixos preços. O Estado Novo ainda poupou alguns exemplares, em rompantes de preservação dos valores nacionais.
Hoje em dia, e os alfarrabistas são unânimes em afirmá–lo, ainda existem boas bibliotecas. Mas a situação inverteu–se. «Que não se pense, como é comum, que qualquer livro com 200 anos vale uma fortuna», adverte Tarcísio Trindade. Quem possui as raridades sabe disso e fá–las valer. Acabaram–se os tolos, ficaram os preços gordos. Para salvar a situação, os coleccionadores, eternos insatisfeitos, estão permanentemente a comprar e vender exemplares. As actuais edições, mal impressas e coladas, não alimentarão o mercado. «Os livros de hoje vão–se desfazer», explica o senhor Pires. A solução está nas tiragens especiais ou fac–similadas, raras, e na contínua exploração dos clássicos de há 200, 100 ou 50 anos.
«Sempre foram poucos os que amaram os livros», lamenta Luís Gomes. Esta dedicação vive também de pessoas como aquele senhor que Guedes da Silva viu, todos os dias, durante 10 anos, observar a montra da sua livraria, sem nunca entrar.
VISÃO Nº17/ 1993
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)