Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

terça-feira, junho 15, 2010

Maria Helena da Rocha Pereira I (Ler, Maio 2010)



O dever dos clássicos (Parte I)


Aos 84 anos, mantém a excelência de um espírito erudito, arguto e ginasticado e um fino sentido de humor. Maria Helena da Rocha Pereira acaba de receber o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores. Primeira mulher a prestar provas para doutoramento na Universidade de Coimbra (em 1956), é a decana portuguesa dos Estudos Clássicos. Com um invulgar sentido de disciplina e rigor, dedicou a sua vida ao estudo, ensino e divulgação dos textos e da cultura greco-latina, bem como da língua, da literatura e da cultura portuguesas. Nas suas aulas e em mais de setecentos títulos de ensaio, tradução, monografia e antologia (Hélade e  Romana), abriu portas a alunos e estudiosos para um entendimento abrangente do legado da Antiguidade. São famosos em todo o mundo a sua edição crítica da obra de Pausânias e os seus estudos sobre o médico e filósofo português Pedro Hispano (Papa João XXI, autor das Súmulas de Lógica). Hoje, Maria Helena da Rocha Pereira defende que o Latim e o Grego deviam regressar em força ao ensino secundário e superior. Não vê vantagens na aplicação da TLBES, mas é um dos obreiros do novo Acordo Ortográfico. Ao referenciar várias viagens pelo mundo, relembra a primeira chegada «estonteante» à Acrópole de Atenas. Afinal, devemos mesmo quase tudo à civilização greco-latina.

Como foi a sua paidéia, a sua educação de menina?
A instrução primária foi feita em casa com uma professora particular. Depois, no (então) primeiro ano do liceu, fui para o Liceu feminino Carolina Michaëlis, no Porto, onde fiz os sete anos de curso, com professores particularmente bons. Tem de se sublinhar que, nessa altura, o ensino nos liceus era muito melhor do que o ensino particular, salvo raras excepções.

Começou a ler aos 4 anos, num livro para crianças baseado numa sátira de Horácio...
A história era a do «Rato do Campo e Rato da Cidade». Mas o mais importante é que a minha mãe só me tinha ensinado os caracteres e eu apareci a ler sem saber como. De maneira que julgaram que, por eu o ter ouvido tantas vezes, sabia o texto de cor. Então, um tio meu ofereceu-me um livro de leituras para verificar. Eu peguei nele, e li. Estava provado que realmente sabia ler.

Qual foi a sua primeira leitura mais marcante?
É difícil de dizer; naquele tempo lia-se muito. Os livros da Condessa de Ségur, por exemplo. Depois, mais tarde, o Júlio Verne. Aos 13 anos, a Oresteia [numa tradução francesa]. Devo dizer que o meu pai, como todos os alunos do curso do liceu da sua época, teve sete anos de Latim e quatro de Alemão. Ficara a gostar muito do Latim e, por vezes, até repetia um famoso verso da Eneida, que ele considerava o mais sonoro de toda a latinidade: e é, de facto. Dizia a primeira metade, eu a segunda: nimborumque facis tempestatumque potentem («Fazes-me rei das nuvens e das tempestades», Canto Primeiro) Tem um ritmo extraordinário... Cresci sempre nesta ideia de que o Latim era uma língua muito bela e que se devia aprender. Foi assim que o estudei logo no liceu [na altura, disciplina obrigatória por quatro anos]. Quanto ao Grego, só o aprendi já na Faculdade.

Na verdade, uma certa literacia clássica, hoje quase desaparecida, estava ligada a uma figura paternal de disciplina, de algum temor até, no sentido de autoridade. Herdou do seu pai a paixão pelo estudo?
A paixão, sim. Mas o meu pai [Professor Doutor Alfredo da Rocha Pereira, médico, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto] tinha uma vida extremamente ocupada. Quem convivia mais de perto e orientava os nossos estudos era a minha mãe.

Quando chegou ao quarto ano (actual 9º), escolheu aprender Alemão, em vez de Inglês. Porquê?
No primeiro ciclo, aprendia-se o Francês, tida por uma espécie de língua universal. E depois, no quarto ano, podia-se escolher entre Inglês e Alemão. Eu tencionava aprender as duas, portanto comecei pela mais difícil. [ri]  Éramos seis alunos num liceu com centenas de alunos. No final, ficámos só três. Nessa altura, claro, eu ainda não imaginava que havia de ir estudar para a Inglaterra. De maneira que aprendi o Inglês em aulas particulares, já depois do liceu.

Então, não se falava ainda em educação bilingue...
Felizmente. Esse é um erro que considero fatal. Primeiro deve-se saber bem a língua materna, muito bem aprendida com quem a escreve bem e não com textos de qualquer espécie. Num país como o nosso, que tem a sorte de ser monolingue, é um erro o que está a acontecer com o ensino do Inglês na instrução primária. Nos países bilingues, a questão pode pôr-se de outro modo.

George Steiner diz que «memorizar é dar uma primeira resposta» e acentua que os antigos pensadores e poetas elegeram Mnemósine (a Memória) como mãe das Musas. Que importância teve para si o aprender de cor?
Imensa. Muito ao contrário da ideia actual de que o memorizar é uma espécie de trabalho de segunda ordem, ou até talvez indigno, a memória está na base de tudo. É o primeiro plano que leva ao desenvolvimento da inteligência. Sem um certo número de conceitos e dados e palavras que têm que necessariamente passar pela memória, não se vai mais para diante. Memorizar não é um acto passivo: é colocar as bases de todo o edifício. Porque até a Filosofia começa por sabermos as respostas que vários pensadores deram a diversos problemas. A partir daí, talvez sejamos capazes de fazer alguma coisa. Talvez... Não é certo.

O que é que perdemos com a queda do uso e do ensino do Latim?
Em primeiro lugar, perdemos o ensino do Português. Em segundo, perdemos um caminho aberto para as outras línguas românicas. Acima de tudo, perdemos um treino da inteligência. O Latim ocupa, no domínio das ciências humanas, um lugar paralelo ao da Matemática no das ciências exactas. Parecendo que não, há muitas semelhanças entre o tipo de exercício mental a que ambos obrigam.

Uma ginástica...
... do espírito. O Latim obriga a uma ginástica, e o Grego também.

Também são uma porta aberta para noções fundamentais na formação do homem. Por exemplo, como actualizaria hoje o conceito de aretê?
O conceito de aretê em Grego recebeu em Latim o equivalente de virtus (virtude). Já se tem notado que a equivalência não é perfeita. São dois conceitos fundamentais, muito abrangentes e não rigorosamente paralelos. Conserva-se um fragmento extenso em que Lucílio [poeta romano, séc. II a.C.] define o que é virtus. Para os romanos, ela tem em grande parte uma componente de resistência, inclusivamente militar, no sentido da defesa de todos. Por sua vez, a aretê grega começa por ser essencialmente a aretê guerreira, no sentido de se mostrar o mais valente e de saber defender o que é o seu país (aqui, o ideal espartano), mas o conceito vai conhecendo diversos conteúdos nos diversos filósofos.

Onde é que, hoje, ainda vislumbra aretê?
A primeira resposta que me ocorre é pouco animadora: em lado nenhum. Mas a aretê pressupõe um conjunto de ideais, no qual tem um lugar muito importante a sociedade em que a pessoa se insere e a sua pertença a essa mesma sociedade. No caso da aretê estóica, podia significar suportar todas as dificuldades com um ânimo constante. Esse foi um ideal definido vezes sem conta, por oposição ao epicurista, que predomina na sociedade actual: gozar o momento que passa.

O exercício da resiliência em oposição ao exercício lúdico e à lalia (paleio excessivo)... Vê algum programa hoje para Humanidade em que se possa ainda concretizar alguma aretê?
A questão do aquecimento global, que teoricamente deve preocupar toda a humanidade porque ameaça a sua própria sobrevivência. A Natureza acaba de nos responder com um Inverno como já não havia há muito tempo: demorado, gelado, chuvoso. E é curioso que alguns especialistas achassem que esta questão era uma fantasia. Hoje, temos a noção, com provas geográficas, arqueológicas e outras, de que tem havido variadíssimas, em alguns casos grandes, variações climáticas. Até que ponto podem afectar a existência da Humanidade ou implicar uma outra ligação do homem à Natureza? Diria que uma reacção a tudo isto está ainda mais no campo da fantasia do que da realidade. Como na questão das migrações: tem havido muitas ao longo da história, algumas desastrosas, outras benéficas. Até que ponto serão admissíveis tantas mudanças à força de civilizações tão diversas? Tudo isto são mais interrogações do que certezas.

É católica. Como é que conjugou a sua fé com o amplo conhecimento da antiguidade greco-latina e, por exemplo, do paganismo helénico?
Não tive intenção sequer de conjugar. Acho que uma religião monoteísta é um fenómeno completamente à parte, muito elevado.
Porque não são religiões de livros (como a judaica ou a maometana), é difícil reconstituirmos a religião grega e a latina. Não há um texto escrito que nos diga exactamente o que é que pensavam. E, coisa interessante, em Atenas não havia casta sacerdotal; eram os chefes da cidade quem organizava e proferia as cerimónias religiosas, que não eram poucas. Comparando a religião grega, por exemplo, com o que sabemos das orientais (neste caso, pelos textos, embora nunca seja possível conhecer um fenómeno religioso na sua totalidade), vemos uma diferença muito grande. Os deuses gregos não são seres ocultos, estranhos e temíveis. São antropomórficos, e muito numerosos. Isto é um progresso extraordinário. E, como já tem sido notado, quando, na Teogonia, Hesíodo descreve a genealogia dos deuses e as suas lutas pelo poder até à supremacia de Zeus, verifica-se que esta é o triunfo da justiça. Não é apenas aquela noção de que o pai é destronado pelo filho, e esse por sua vez pelo seu filho. Não. Há um sentido, que é o da justiça. Depois, há um outro grande progresso. O mais espantoso na Antiguidade é o Deus dos hebreus: uno, sem forma, totalmente espiritual. Ao passo que os deuses dos gregos são imortais, mais novos, mais belos, mais fortes. Há um ideal de beleza que nunca os deixa.

Os gregos para si foram a Literatura...
E a Filosofia, a Arqueologia, a Arte. Ah, e a Ciência! É deles a formação, a descoberta sucessiva de todas as ciências, a noção de Ciência como valor universal.

Devemos tudo à civilização greco-latina?
Quase tudo.

Cioran escreveu que, enquanto preparavam a cicuta que ele iria beber, Sócrates ainda procurou aprender uma ária para flauta. Questionado sobre para que lhe serviria aprendê-la, Sócrates terá respondido: «Vai-me servir para a aprender antes de morrer.» Esta procura infinita de saber, tão diferente do que é a actualidade...
A actualidade só se preocupa com o saber aplicado. Sendo a nossa mente finita, chegamos a um ponto onde não vemos mais, mas sabemos que existe. Temos simplesmente que concluir que o saber do homem é finito. O que há para saber é que é infinito. Aliás, conceber a noção de infinito é difícil.

Foi árdua a sua procura de saber?
Muito, mesmo muito difícil. Aprendi o mais que pude na Universidade de Coimbra [na do Porto não existia Clássicas]. No fim da licenciatura, fiquei três anos em casa dos meus pais. Depois, a conselho do professor Carlos Ventura [que tinha sido seu professor de Grego em Coimbra], fui para a Universidade de Oxford estudar durante um ano. Aí, encontrei uma extraordinária amplidão do saber, como discípula de alguns dos mais notáveis professores. O meu orientador de estudos e de tese de doutoramento foi o professor Eric Robertson Dodds, que introduziu a Antropologia Cultural nos Estudos Clássicos. Outros dois professores extraordinários foram [Eduard] Fraenkel e [Rudolf] Pfeiffer, ambos alemães fugidos ao nazismo. A regra era frequentar quatro disciplinas por ano. Eu frequentei oito.

E teve tempo para frequentar a cadeira de Vasos Gregos [matéria em que se tornaria especialista] do prestigiado professor John Beazley...
... para além de muitas conferências, quer de professores, quer de estudantes. O professor Dodds ia-me sugerindo quem devia ouvir. Um dia, falou-me da cadeira de Vasos Gregos. Eu tinha pensado antes que gostava de a fazer, mas ficara calada porque, a certa altura, ele já me dizia: «Já chega!» Claro, quando me a sugeriu, aceitei logo frequentá-la também.

Tinha 25 anos e, com certeza, uma grande autoconfiança nas suas capacidades intelectuais. Qual era a sua maior ambição?
Eu queria era aprender.

Já tinha em mente uma carreira universitária?
Sim, embora isso fosse perfeitamente fantasioso na altura.

Porque não era certo que um dia as mulheres viessem a ser admitidas na universidade portuguesa?
Nem nada que parecesse. Regressei de Oxford para o Porto, sem perspectivas. Nessa altura, um professor catedrático da secção de Clássicas de Coimbra transferiu-se para Lisboa. O professor Carlos Ventura propôs-me ao Conselho e fui aceite como Assistente. Mas, curiosamente, quando no ano seguinte me propôs para a regência de uma cadeira, o Conselho disse que não. Só depois do doutoramento é que comecei a ser reconhecida.

Era muito ambicioso o tema da sua tese de doutoramento: «Concepções helénicas de felicidade no além: de Homero a Platão.»
O tema acompanhava-me desde os meus exames de licenciatura [em Filologia Clássica, concluída em 1947], de cuja lista de autores latinos constavam os novecentos e um versos do Canto Sexto da Eneida, precisamente o da descida ao além. Aliás, uma lista composta habitualmente por cinco ou sete autores e que, no meu ano, tinha quinze. Penso que foi de propósito.

Para a demover?
Penso que sim. Os meus colegas tinham desistido quase todos. Ora, a minha primeira intenção era fazer uma tese de doutoramento sobre toda a ideia do além. Tudo. Depois verifiquei que não podia manter-se aquela totalidade, e escolhi restringir-me à noção de felicidade no além (para uns autores, são os Campos Elíseos, para outros, as Ilhas dos Bem-Aventurados).

Entre tantos outros projectos de estudo que a ocuparam depois, qual é o que destaca?
A edição crítica da Pausaniae Graeciae Descriptio, de Pausânias [geógrafo e viajante, séc. II a.C.] que fiz para a biblioteca Teubneriana, a convite da Academia das Ciências de Berlim. Os manuscritos estavam espalhados por toda a Europa. Como, na altura, a saúde da minha mãe não me permitia sair do país, fizeram-me chegar por correio os microfilmes de todos os manuscritos. Ao todo, 26 microfilmes! Até aconteceu uma coisa muito engraçada. Era o tempo da Guerra Fria. Começaram a mandar-me manuscritos de Moscovo e eu fui chamada à Alfândega do Porto. O que era aquilo que eu estava a receber, ainda mais numa língua que ninguém percebia? Fui lá,  expliquei o que se passava e apresentei as cartas da Academia das Ciências de Berlim. Disse-lhes: «Estão escritas em Alemão. Se quiserem, eu traduzo.» De facto, aquilo parecia uma coisa de espionagem.

[risos]
Mas, qualquer dia, o estudo do Grego e do Latim é quase como isso... Espionagem.
Até certo ponto, sim. Mas eu espero que não.

A aprendizagem da cultura greco-latina está em queda na generalidade da Europa.
São tudo sintomas de ignorância. E, atenção, há países onde ainda se continua a estudar Grego e Latim nas escolas secundárias. A Itália é um deles; o que bem se compreende, de resto. E continuam a existir classes especiais e revistas e associações. Não se pode dizer que não haja grandes obras que saem continuamente sobre essas matérias. [salienta que, em Portugal, temos hoje boas traduções e bons professores universitários] E ainda há turmas de Latim no nosso país. Com muito poucos alunos, mas existem.

O que pensa do movimento pelo Latim vivo, pela reabilitação do Latim enquanto língua auxiliar internacional?
Não creio que seja essencial, nem produtivo. Penso que a alternativa é aprender a língua com aquela geometria que a caracteriza. E quem diz - e há quem diga - que isto é uma ideia ultrapassada, está muito enganado. Outro aspecto importante é a necessidade do Latim para se conhecer quase toda a História da Ciência. Espero também que algum dia os legisladores se lembrem de que o Latim está na base de todo o  Direito ocidental (com excepção do anglosaxónico) e da sua terminologia. E sabe que até ao século XIX, ou talvez mais, os estudantes de Medicina tinham de aprender Grego? O que não admira, porque noventa por cento do vocabulário médico é grego (ou directamente importado do antigo ou composto modernamente). Na verdade, para chegar à cultura greco-latina, é preciso começar pela língua. Mas, de modo nenhum restringindo-se a ela. O provérbio dizia: «Conjuga e declina, saberás a língua latina.» Essa é uma visão extremamente redutora, até asfixiante, porque mostrar a parte cultural também é fundamental. Mas que é necessário conhecer a língua, é, evidentemente.

(continua)