Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

terça-feira, maio 18, 2010

Hélia Correia, Adoecer (Ler Abril 2010)




How They Met Themselves, Dante Gabriel Rossetti, 1851

Adoecer marca o regresso de Hélia Correia. Romance biográfico sensível, nasce da vibrante história de amor entre a modelo, pintora e poeta Elizabeth Siddal (Lizzie, 1829-1862) e o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti (1828-1882). Como pano de fundo muito detalhado e documentado, surge a Inglaterra do século XIX, época e lugar de eleição da escritora, e o grupo dos pré-rafaelitas, empenhados no regresso a uma certa pureza dos olhos e da arte. Mas o voo do romance é outro: o do destino, do amor e da doença como luz e danação.

No início do romance, escreve que vai «a um encontro pessoal, desses que não consentem testemunhas». Lillias (protagonista do último romance, Lillias Fraser, de 2001) surgira-lhe de uma visão. Lizzie Siddal, de onde veio?
Ela é um conhecimento de longa data, uma companheira de viagem. Entrou na minha vida aos 16 anos, com uma reprodução da Ophelia de John Everett Millais [quadro para o qual Lizzie serviu de modelo] no manual de Literatura Francesa, ao lado dos versos de Rimbaud sobre a personagem de Hamlet. Foi um coup de foudre; tornou-se uma imagem muito importante na minha vida. Depois, aos poucos, quanto mais conhecia da história de Lizzie, mais aumentava o fascínio, até que se tornou uma necessidade escrever sobre ela.

Essa primeira Lizzie era sobretudo mistério?
Era Ofélia, embora eu ainda não tivesse lido Hamlet. Mais tarde, quando li a tragédia de Shakespeare, foi Lizzie que vi. Não sei o que é Ofélia em primeira mão. Depois, com a minha fixação inglesa, quando comecei a descobrir a história de Lizzie, não houve uma deslocação ou uma traição: ela era muito coerente com o imaginário de Ofélia.

Adoecer é uma biografia ficcionada?
É um romance biográfico. O passo que dei para a escrita foi bastante arrogante. Existem muitas biografias e alguma obra de ficção sobre Lizzie Siddal. Li-as todas. E enervei-me com todas aquelas hipóteses porque ninguém entendera aquela pessoa e aquela relação que, para mim, eram tão claras e tão constantes na minha vida. Decidi escrever a minha história da Lizzie não num passo de biógrafo que se alimenta dos factos, mas num voo de literatura, para entender um ambiente e as almas.

No livro, diz que os escritores de biografias «redigem com os pulsos amarrados» e que «é necessário não acreditar no tempo». Como é que conciliou a investigação necessária com a procura dessa outra espécie de tempo, literário?
Neste livro, pela primeira vez [embora em Lillias já houvesse alguma exigência histórica factual], tive uma luta tremenda entre toda a documentação disponível para uma estrutura muito rigorosa e os meus pulsos, que não queriam estar amarrados aos factos. Onde existem factos documentados, obriguei-me a respeitá-os e fui fiel até aos textos das cartas e das críticas da época. Não quis fazer um romance livre e, por isso, baseei-me nesse sedimento de realidade. Mas também queria voar e, para o fazer, tive de lavar as asas daquele lodo todo e batê-las bem batidas para conseguir sair. Implicou também libertar-me do tempo, cujo grande contrariador, para mim, não é a memória, mas sim a imaginação. Eu, tal como não consigo viver no mundo adulto, também não consigo viver no mundo contemporâneo e, provavelmente, as personagens são contaminadas por esta indisciplina.

Uma indisciplina anti-realista, na linha dos pré-rafaelitas?
Não, em termos técnicos, porque na pintura eles faziam questão absoluta de copiarem directamente do real, sem intermediários. Sim, em termos de uma proposta de transformação e da procura de uma nova realidade como reprodução do imaginário e na qual pudessem viver. Aí eram anti-realistas, apesar, por exemplo, do caso de William Morris [que diverge para a arte utilitária]. Mas em todos eles existe uma nostalgia do belo, por exemplo do belo medieval. É uma época fabulosa que cai sobre todos os criadores do séc. XIX. Nós por cá, enfim, tivemos só o nosso Camilo com aquelas traulitadas.

É possível descobrir-se essa outra realidade no trabalho de pesquisa documental?
Para mim, a pesquisa é fascinante sobretudo nos documentos de época: diários de viagens, cartas, coisas que estão escondidas nos museus.  Eu precisava desse contacto directo...

... com a aura de uma época de grandes criadores e grandes ambições artísticas...
Também de grandes dores; o sublime também é feito delas. No caso dos pré-rafaelitas, toda essa grande exaltação do eu e da criação é apimentada pelo temperamento inglês. Há um riso especial, um poder de satirizar tudo e todos, inclusive os próprios ideais e as próprias convicções, que são puramente ingleses. Isso seduz-me muito. Não está no livro — porque não podia estar lá tudo e o que me interessava mesmo era a minha Lizzie —, mas é fascinante como, ao mesmo tempo, com uma mão pintavam e com a outra parodiavam, com uma mão faziam poemas e com a outra faziam limericks [forma fixa de verso de paródia, de sátira pessoal]. Esse lado da ironia e da distanciação pelo riso é também um caminho para o mal.

Como em Baudelaire?
Não, era um riso mais vistoso, mais atrevido.  Porque era feito como provocação à sociedade, para a afrontar, para a chocar, criar reacção e ridicularizar. A capacidade dos pré-rafaelitas de não se levarem a sério enquanto se levavam muito a sério e de troçarem de uma sociedade que também levavam a sério e que os alimentava dá uma complexidade muito maior àquele tempo inglês.

Escreve que Ophelia é o quadro de uma época: «por baixo da sua superfície, camadas e camadas de tragédia e de exaltação estética estariam comunicando a sua vibração como se nele pulsasse um mineral». A vibração é, na relação de oito anos entre Lizzie e Dante Gabriel Rossetti, uma energia negra. Esse é um mistério que conseguimos resolver no livro?
Para mim não é misterioso. Existe como enigma apenas em relação às coordenadas da existência vulgar humana. Sinto que aqueles dois seres estavam feitos para aquele encontro e, assim, o mistério desfaz-se porque se realiza. A outro nível, aquela não é uma relação normal homem-mulher inventada pela sociedade. Mas é muito límpida, no sentido em que não há cortinas de outras possibilidades por detrás. Desde o início que as moléculas de um e de outro caminhavam para aquilo. A vibração da Ophelia integra isso e é paralela como história que se vai separando da de Lizzie.

Outro quadro emblemático, How They Met Themselves, foi pintado por Rossetti quando conheceu Lizzie, em 1851, e na lua-de-mel, em 1864. Reproduz os dois amantes e, sobre ele, lemos: «Essa pesada narrativa sobre a vinda dos mortos que fomos e que querem ocupar novamente o nosso espaço gerou-se sobre o nada.» O horror daquela relação precedia-a? Era um horror do destino?
Sim. Enquanto todas as outras telas têm referentes literários, nesta não se consegue perceber qual é o referente extra-quadro. Relata uma lenda nórdica que nos diz que o encontro de uma pessoa com o seu duplo é um augúrio de morte. Aqui, Lizzie e Gabriel encontram-se na floresta com os seus duplos, o que quer dizer que vão morrer. Uma das coisas perturbantes é Gabriel ter pintado este quadro exactamente durante a lua-de-mel em Paris, o que é a coisa mais improvável que fizesse e representa um negror completo.

No entanto, também é luminoso, como uma coisa que se cumpre.
É, esta não é uma história de escolhas, mas antes de destino. E quando parece haver uma escolha, ela só aprofunda a maldição.

A história de Lizzie surge no livro também como narrativa de «uma barbárie e dos seus executores». Lizzie-vítima é compatível com essa ideia de destino que se cumpre? Porque ela cumpre um ideal de beleza através da doença, não?
Entre os biógrafos, existem de facto trocas encolerizadas sobre se ela foi uma vítima ou uma manipuladora psicótica que destruiu tudo à volta. Essa discussão não me interessa porque não toca no essencial. Para mim, ela faz um papel de vítima na barbárie que é a sociedade vitoriana para os pobres e, sobretudo, para as mulheres. O papel dela dentro do contexto de pobreza em que nasceu não pode ser outro. Ela  nasce amarrada e não tem possibilidade de romper com o cerco que lhe é feito. Ela é a vítima dilacerada quando a sua vida não se cola à que a sociedade lhe destinara.  

Adoecer exprime uma luta, na arte e na vida, entre o convencional e o anti-convencional. No fundo, se este amor se tornasse convencional, acabaria por morrer.
Esta história só é tão intensa, poderosa e bela porque acontece com dois seres que se sentem mal com o apreço social. A própria qualidade das suas personalidades e da sua relação empurra-os para a margem. Fazem uma tentativa desastrada quando casam, mas isso não significa satisfazerem a sociedade e serem aceites. Tudo corre mal, porque a carga de pensamento e de destino desta relação é incompatível com a vivência conjugal mediana.

Defende que havia em todos os pré-rafaelitas «um movimento para levantar uma mulher do chão». Uma elevação social ou para um estatuto etéreo?
O William Holman Hunt, por exemplo, tentou com toda a bondade da sua alma educar uma rapariga: Annie Miller. A coisa correu mal porque ela se revelou ininstruível. O Ford Madox Brown pôs a modelo Emma Hill a ser educada para ser a sua [segunda] esposa e casaram-se. E há o exemplo da modelo Jane Burden, Morris após casar com William Morris: uma rapariga de viela que se tornou uma senhora com todas as qualidades e sem falhas. Creio que tudo isto está ligado à fascinação cristã pela figura da prostituta e à rebelião anticristã do grupo, ligada à ideia de que o poder e a superioridade moral de um homem conseguiria inverter o destino de uma mulher da rua.

O romance dá-nos a conhecer essas e muitas outras personagens e histórias paralelas à de Lizzie e Gabriel. O relevo dado à proto-feministas foi intencional?
Escrevo sem nenhuma intenção, não faço escrita missionária. Há neste livro realmente muitas feministas avant la lettre porque esse é um universo que se cruzou, com bastante importância, com o da Lizzie. Mas foi uma belíssima surpresa e um conhecimento muito enriquecedor contactar com estas mulheres [entre elas, Barbara Bodichon] e descobrir, fascinada, o que algumas delas alcançaram tão antes das sufragistas eduardianas, muito mais referidas e reconhecidas. A dimensão da sua coragem, pensamento e acção é notável.

Esse contacto fê-la de algum modo repensar a condição femina hoje?
O movimento foi ao contrário: eu saí do nosso tempo, mergulhei naquele e por lá fiquei. Fui educada, por um milagre do acaso, num ambiente altamente anti-sexista. E tenho a impressão de que, hoje, o grande defeito do sexismo são as mulheres, com os seus comportamentos, resignações, aceitações, também as suas manipulações.

Porque, hoje, as mulheres optam por aceitar as convenções?
Acho que as aceitam por comodidade. A mulher já não é obrigada a nada em termos legais, económicos ou sociais. Pode viver como entender: sozinha, com ou sem relação com um homem, com ou sem filhos... Todas as opções estão despenalizadas. Portanto, se ela se submete, à violência, à vida doméstica, à infidelidade, a tudo, é porque o faz em nome da paz do lar ou de um estatuto ou de uma fórmula de conjugalidade. Nem se trata de uma opção: é mais uma preguiça. Que não tem nada a ver com as feministas do século XIX.

Gabriel e Lizzie procuravam «o encontro carnal de um sentimento para o qual nem o nome ainda existia». É suposto o leitor actual do romance já saber nomeá-lo?
Eu acho que ainda não tem nome. A palavra «amor» mudou entretanto de significados. Para mim, este sentimento será provavelmente o namoro eterno, perpétuo. No sentido em que ainda não vergou a cabeça perante nenhuma convenção social, que hoje já não é imposta.

Contudo, no romance as personagens vergam-se ao destino. Há um fatalismo...
Porque contra o destino não se pode lutar. Contra a sociedade, pode e deve. O esmagamento e grande parte da fatalidade daquela relação foi realmente a censura social e a ausência de uma fórmula social que a permitisse. Depois, há também dois temperamentos que não se vergam um ao outro. E, por fim, o destino. Uma noção de destino que não tem nada a ver com a actual, pós-moderna, ligada, por exemplo, ao ADN e às pré-determinações genéticas.

O deles é um destino com aura poética?
Será francamente uma noção romântica de destino. Mas a minha crença no destino vem-me dos gregos, não dos românticos. Tem um poder esmagador em mim e na minha vida pessoal. Por isso, foi muito fácil e natural perceber a história de Gabriel e Lizzie. Digo que a entendo como ninguém a entendeu porque ela faz parte do que eu acho natural também para mim.

Neste romance biográfico, e por isso ancorado num tempo preciso, a dimensão romanesca vem dessa ideia de destino como dimensão na qual a pessoa está fora e para lá do espaço e do tempo.  Gabriel não queria Lizzie entre os humanos. O narrador, identificável com Hélia Correia, fala de Lizzie como «uma cera onde pode inscrever-se quase tudo».  Foram ideias trabalhadas antes da escrita?
O meu destino foi encontrar essa mulher com quem sempre me identifiquei tanto a ponto de ter a arrogância de achar que sei o que ela sentiu, o que pensou, como foram as coisas. Essa mulher, essa figura social,  nasceu naquele tempo e naquele lugar, com aquele nome e aquela família. Por coincidência, esse é um tempo e lugar para onde vou quase todos os dias, um dos meus fascínios: a Inglaterra do século XIX. É o universo onde eu moro. Portanto, foi fácil voar até lá, sem qualquer atitude ou abordagem prévia ou especial. Grande parte da investigação para o livro foi feita antes, sem pensar que o escreveria.

Nasceu quando a necessidade de escrever este livro?
Durante a escrita da Lillias [Lillias Fraser], a presença da Lizzie começou a ser quase incomodativa. Então, dirigi as minhas idas-peregrinações a Inglaterra para os sítios e os documentos relacionados com ela. Mas essa pesquisa não é nada literária, porque ainda não há palavras. As frases ainda não estão nesta demanda, que é absolutamente sensorial.

No sentido de procura ou realização de um encontro?
Um encontro muito sensorial. É quase esquecer a circunstância do tempo e visionar as coisas como eram.

Como surge depois a escrita?
Quando me sento para escrever tudo isso já está incorporado, está no meu sangue, pronto para passar à pauta. Porque quando passo para a escrita o que domina é a palavra, o som, a música. A música é frase a frase. Tem aquelas sílabas, aqueles acentos tónicos precisos. Às vezes fico louca à espera que apareça a palavra que falta e que eu não faço ideia de qual seja, mas que sei que só pode ser aquela.  Por vezes, levo meses nisso, à espera da palavra, e da chuva.

A dado momento, lemos: «Nós, que somos íntimos de Lizzie […]» É para estender a nós a sua intimidade sensorial com a personagem que se assume como narradora do romance?
Não sei porque me coloco no livro. Não há um desígnio. O livro começou assim, exactamente com aquela primeira frase, depois da minha segunda visita ao High Gate Cemetery [onde está a cripta dos Rossetti, onde Lizzie foi enterrada em 1862, e onde, sete anos mais tarde, sob orientação do portugee Charles Augustus Howell, se procedeu à exumação do seu corpo em busca de um caderno de poemas que Gabriel colocara dentro do caixão]. E começou num hotelzinho da Gower Street, umas portinhas ao lado da casa onde John Millais habitava e onde Ophelia foi pintado. Dentro do hotel, um prédio com a mesma disposição do de Millais, podia imaginar tudo com pormenor. Depois da visita ao High Gate, comecei a escrever o livro. E ele apareceu-me assim, na primeira pessoa, a traduzir exactamente o sentimento que tive das duas vezes que fui ao cemitério: se sonham que sou portuguesa, os mortos que estão aqui vão ficar horrorizados. Portanto, o romance começou quase como um diário. Depois, há de vez em quando uma intimidade quando falo de mim. Uma intimidade nada usual da minha parte. Acho que fui arrastada para ela pelo meu caso muito forte com a Lizzie.

No final, como colocou este livro entre os seus outros romances?
Nunca penso no que já escrevi. Estou sempre a escrever o primeiro livro. Desde a primeira frase, com o mesmo entusiasmo e a mesma surpresa. Neste caso, houve uma componente afectiva muito intensa que vem da minha relação com a Lizzie, houve o prazer quase físico do encontro com a Inglaterra do século XIX e a experiência singular da pesquisa e da documentação.

Teve uma compensação mais luminosa?
Com este livro, sim.

O título já existia antes da escrita, iniciada há cinco anos?
Sim. Muito tempo antes.

Qual é, de facto, a doença de Lizzie, a «eterna moribunda»?
É esse sentimento não nomeável e a relação amorosa entre aqueles dois seres que não encaixava no conceito de relação amorosa vitoriana. Todo aquele adoecer de Lizzie [para o qual existem as mais variadas teorias de explicação clínica] é a somatização de um mal-estar e da paixão romântica, que também adoecia. É a doença do corpo que se sente mal, nega uma condição que não é física, mas somatiza. E isso eu conheço muito bem. Faz parte também da minha vida: a fragilidade física, as debilidades, as somatizações, as doenças que não se sabe de onde vêm...

Mal-estares físicos com uma expressão nefasta, mas que não deixam de ter asas. A presença de Lizzie, quase uma feiticeira, «descolava as coisas para um plano de vertigem». Ela tem essa dimensão negra de doença malévola que, no entanto, lhe dá a capacidade de ultrapassar o físico.
A própria forma romântica do adoecer dela é altamente encantatória, sobretudo naquele tempo. Ela tem esse poder e usa-o.

A partir de certa altura ele deixa de funcionar...
... e ela adoece mesmo. Nessa perspectiva do ser fora do corpo, parece-me muito claro que aquelas duas pessoas não tinham sido feitas para viverem naquele tempo, naquele lugar, em tempo nenhum ou em lugar nenhum, ou quase nenhum. Todas as sociedades são repressivas e organizam e desfeiam as coisas. Logo, a maneira de viver mais profundamente aquela vida é deixar o corpo físico, no sentido do corpo que é afectado pelas coisas sociais.

É também uma libertação erótica?
Há um grande erotismo entre Lizzie e Gabriel, mas ele é fechado.

Perverso?
Sim, e daí fascinar-me tanto. Não acho graça nenhuma ao erotismo normalizado e conjugalizado. Este erotismo é perverso, fatalmente corre mal, é intensíssimo porque alcança uma intensidade impossível numa relação saudável. É de tal modo esgotante que o Gabriel precisa de descansar em relações meramente físicas com outras mulheres, alegres, sem a dimensão trágica e única de Lizzie. O facto é que elas não lhe chegam. Há sempre uma falha que só Lizzie pode preencher e isso faz uma história de amor muito bonita.

Suponho que acha absurdas as teorias de que Lizzie se teria mantido virgem até ao casamento para prender Gabriel?
Totalmente absurdas. Há biógrafos que não entendem como é que ele se manteve preso a ela durante tanto tempo. Essa é a única hipótese que encontram para o explicar. É a perspectiva da manipulação, mas mais aos olhos do século XX, porque aquela relação parece realmente incompreensível. De facto, até mesmo os contemporâneos deles se perguntam por que é que não se casam. Existem, contudo, vários testemunhos de que viviam juntos como homem e mulher, com uma relação fortemente sexuada.

A frigidez inicial de Lizzie é uma defesa contra quê?
Contra os homens que assediavam as modelos, mas sobretudo contra a ideia que os homens tinham de elas serem mulheres fáceis. Lizzie tinha de emitir uma mensagem de ausência de sensualidade para poder sobreviver naquele mundo sórdido em que as modelos viviam.

A poeta Christina Rossetti, irmã de Dante Gabriel, é uma presença pouco desenvolvida. Porquê?
Primeiro, porque ela passa muito tempo sem ver o irmão e só se reencontram após a morte da Lizzie. Depois, porque eu tomo partido no livro. Toda a gente que está neste livro é gente que está viva para mim e contra a qual eu tenho ressentimentos ou agradecimentos ou contas a ajustar. É tudo muito vivo. A Christina, como grande criadora que era, teve o mérito de, através da poesia, compreender Lizzie. Mas nunca a compreendeu como cunhada. Havia nela uma dualidade por resolver entre o lado italiano muito forte, que reprimia e renegava com violência mas que passa por exemplo no ritmo dos poemas, e a adoração pelo irmão. Ela tem quase ciúmes de Lizzie e um instinto de repulsa por uma mulher que não segue a via respeitável da sociedade.

Compreende-a só sensorialmente?
De um modo do qual provavelmente nem sequer teve consciência.

Com o crítico John Ruskin, houve contas a ajustar?
A Lizzie nunca gostou dele e eu também não gosto. Ele é a figura da perfeição moral e essa figura é irritante.

Demasiado judicativa?
Porque ele quer intervir e lançar o paraíso sobre os ombros de Lizzie e Gabriel. Não percebe que eles não querem, nem foram feitos para o paraíso.

Como se procurasse uma medida humana que lhes fere as asas?
A medida humana não se ajusta a casos depudoradamente intensos.

© Filipa Melo/Ler (proibida reprodução integral sem autorização prévia)