Entra-se pelo buraco do Coelho Branco e falante, um poço de fantasia. O tempo é de encanto e o reino o «da maravilha sem par», com «bestas e aves falando», também muito disparate, criaturas antropomórficas, coisas, palavras e gestos sem sentido. Assim nasceu a história do País das Maravilhas, originalmente As Aventuras de Alice Debaixo da Terra. Durante um passeio de barco no Tamisa, Alice, uma das três irmãs Liddel (as outras, Lorina e Edith), pediu ao matemático e cónego anglicano Charles Lutwidge Dogson (1832-1898) que passasse a escrito o que lhes contara nesse dia 4 de Julho de 1862. Sob o pseudónimo de Lewis Carroll, o amigo fez a vontade à menina de dez anos e o primeiro livro da série, Alice no País das Maravilhas, foi editado em 1865, o segundo, Alice Através do Espelho, em 1872, ambos ilustrados por John Tenniel. Mais de 120 anos depois, um exemplar da primeira edição seria vendido em leilão por 1.54 milhões de dólares. A história contida nos dois livros, muitas vezes confundidos como sendo um só, havia-se tornado um clássico insuperável, um marco do género literário 'nonsense', por isso capaz de cativar tanto os adultos como as crianças.
As âncoras do texto original firmam-se na era vitoriana e no contexto central do autor: Oxford, a Igreja de Cristo e a paixão pela infância (Carroll nunca casou e ficou famoso também pelas suas fotografias de crianças). As referências são directas ou paródias a poemas, rimas infantis e canções de ninar, expressões idiomáticas, provérbios, receitas, danças, trocadilhos e piadas locais. Mas Carroll, matemático, leva ainda mais longe esta fantasiosa viagem à procura de um jardim. Alice é desafiada com enigmas de matemática e lógica, brincadeiras, autocontradições e subversões de significados, num exemplo percursor das potencialidades da poesia concreta ou do surrealismo. Alice, apesar de tantas vezes mudar de tamanho, mantém intacta a postura de bem educada e disciplinada rapariguinha vitoriana, resistente a «tanto disparate e parvoíce!», ao desfile de personagens esquisitas, ao absurdo e cómico, até ao perigo da situação, incluída a prisão por um baralho de cartas, enquanto a Rainha de Copas grita: «Cortem-lhe a cabeça!»
O texto, extraordinário, resiste também às mais rebuscadas interpretações, no topo as psicanalíticas. Por isso mesmo, objecto de incontáveis adaptações, a história de Alice no País das Maravilhas obriga o leitor adulto a optar mal cai naquele buraco. Aceitará o curso delirante e 'sem sentido' do texto, como o fazem as crianças, ou tentará dissecá-lo? Para plena fruição, aconselha-se a primeira opção, defendida com unhas e dentes, por exemplo, por G.K. Chesterton. Para os fanáticos da segunda, indica-se a leitura de The Annotated Alice: The Definitive Edition (W.W. Norton & Company, 1999), de Martin Gardner. A todos, Carroll concedeu o prazer de provarem, com Alice, transformações como as dadas por um certa garrafinha, a saber a «tarte de cerejas, leite-creme, ananás, peru assado, caramelo, e torradinhas quentes com manteiga».