Quando eu morrer voltarei para buscar / os instantes que não vivi junto ao mar. Sophia de Mello Breyner Andresen
Havia um gesto largo como a quilha de um barco. E uma luz de oiro que o guiava entre o azul. Trazia-me dentro dele, entre os seus braços. Embalava-me a voz, transportando o mundo como uma revelação. E só em mim concentrava todas as paragens, os vários portos que, passando, descobríamos.
Consigo sem esforço imaginar-me nos braços da minha mãe. Faço-o muitas vezes. Acolhe-me um som distante de risos, mas provavelmente tudo acontecia em silêncio. Imagino a voz rompendo-o, e era a nossa. Impossível distingui-la. Continuo hoje à procura desse silêncio feito de vogais abertas e vocábulos curtos. Um som límpido como um espelho, aberto como a casa sobre o mar. Um som que era a aragem doce que lhe despenteava os cabelos, deixando-os cobrir o meu rosto e resguardá-lo da violência da luz do dia.
Tinha mãos de areia a minha mãe. Sentia-as quentes e suaves deslizando sobre mim. Contornavam-me, separavam-me do mundo onde, aí sim, o vento já rangia, abrindo as portas, espalhando as cinzas e as sombras sobre os retratos, esvaziando os armários. Nada disso eu sabia ainda, suspenso da queda. Suportado por gestos de espanto, em segredo.
Com mãos de areia, construíamos castelos. E, das ameias, espreitávamos tudo, guiados pela espuma das ondas e pelo brilho das estrelas. Límpido, quase branco, e esguio, o nosso caminho estava lá ao longe recortado. Sabíamos. Conhecíamos juntos a espessura das coisas e, no entanto, os nossos dedos não as tocavam, ocupados a tocar-nos um ao outro. Não tenho explicações, ainda hoje. Quero desconhecer uma verdade que não seja essa, e era a nossa.
Por muito tempo o rosto dela foi só um sol que fugia de repente, uma alvorada que eu descobria todos os dias. E, nele, os olhos limpos eram como os meus, faróis a evitar as fúrias, soberanos sobre a calmaria. Lembro bem o olhar da minha mãe, azul como essa calma lenta e profunda que amaciava as rochas. Sentados nelas, descobríamos navios sobre a seda de água dos nossos olhos, embarcávamos e partíamos. Em tantas paragens encontrámos ouro, as pedras mais preciosas que havia, e tesouros maiores: flores, mel e fruta. Nunca mais recolhi com as minhas mãos tanta riqueza, nem os meus olhos as viram em parte alguma. Estão todas guardadas na casa à beira-mar, encerradas em baús onde o vento não entra e que hoje já não sei abrir. Perdi as chaves, à proa dos navios. Deitei-as ao mar e, sem saber, a minha mãe recolheu-as todas lá no fundo, onde faz frio e os olhos estão fechados.
Mas, então, o tempo era ainda um infinito. De tantas viagens regressámos no mesmo instante, a casa à nossa espera, sobre as rochas. Desenhámos juntos nas paredes as palavras. Aprendi-as de cor no seu silêncio, na melodia suave com que me embalava. E nos sonhos estava ela, branca e linda, num rumor de tempo antigo e mundo novo.
Tudo estava algures ancorado dentro de mim. A minha mãe soltava amarras como sílabas, navegando pela casa adormecida. E era como um vento que corria, unindo-as e desfazendo-as, espantadas, atirando-as contra os móveis que assistiam, impávidos, à luta desenfreada. A casa era agora o sono e o palco aberto, eu dormia como quem assiste à tempestade, nos braços de uma mãe aconchegado. Tomara eu saber hoje com que fórmulas secretas eu aprendi as palavras que já antes conhecia. Treinei-as uma a uma, em redor dela. E a casa éramos nós que a construímos. De mim já não me separava nada.
Tem uma luz febril esta memória. E logo se enche de reflexos e me traz de volta à praia onde num tempo nos inventámos assim, a casa atravessada pelas marés.
Vem comigo a minha mãe. Caminhamos com passos curtos como as pegadas das gaivotas.
Publicado na Egoísta em 2004