“Como o grã-cã conquistou o reino de Magi (do Mangi)
É verdade que na província de Eumagi (do Mangi) era senhor Fafur (Facfur), o qual era, depois do grã-cã, o maior senhor do mundo e o mais poderoso em riquezas e em gente. Mas não são pessoas de armas, porque se tivessem sido bons homens de guerra, nunca teriam perdido a sua terra: porque as suas terras estão todas rodeadas de águas muito profundas e não se entra lá através de pontes. De modo que o grã-cã mandou lá um barão que se chamava Baia Anasa (Baian Cincsan), o que quer dizer «Baia (Baian) cem olhos»; e isto aconteceu nos anos Domini MCCLXXIII. E o rei do Umagi (do Mangi) soube através da astrologia que a sua terra nunca se perderia, a não ser por um homem que tivesse cem olhos. E foi Baia (Baian) com muita gente e com muitos barcos, que lhe levaram homens a pé e a cavalo e chegou à primeira cidade de Lumagi (do Mangi) e os habitantes não se lhe quiseram render. Depois foi às outras até às seis cidades e deixava-as; porque o grã-cã mandava-lhe muita gente atrás; e é esse o grã-cã que hoje reina. Ora acontece que este tomou também essas seis cidades pela força e depois tomou tantas que ficou com doze; depois foi à cidade capital de Magi (Mangi) que se chama Quisai (Chinsai), onde se encontrava o rei e a rainha. Quando o rei viu tanta gente teve tanto medo que partiu da terra com muita gente e com mil embarcações e foi para o Mar Oceano e fugiu para as ilhas. E a rainha ficou defendendo-se o melhor que podia. E a rainha perguntou quem era o chefe do exército. Foi-lhe dito: «Chama-se Baia (Baian) cem olhos.» E a rainha recordou-se da profecia de que acima falámos: imediatamente se rendeu a terra e imediatamente se renderam a Baia (Baian) todas as cidades do Magi (Mangi).”
In “As Viagens de Marco Polo”
“As cidades e os olhos. 1 .
Os antigos construíram Valdrada nas margens de um lago com casas todas varandas umas em cima das outras e ruas altas que fazem assomar à água os parapeitos em balaustrada. Assim o viajante ao chegar vê duas cidades: uma direita sobre o lago e uma reflectida de pernas para o ar. Não existe nem acontece coisa numa Valdrada que a outra Valdrada não repita, porque a cidade foi construída de modo que todos os seus pontos fossem reflectidos pelo seu espelho, e a Valdrada na água contém não só todas as estrias e os remates das fachadas que se elevam por cima do lago, mas também o interior das casas com os tectos e pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários.
Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a a sua imagem especular, a que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento. Mesmo quando os amantes dão voltas aos corpos nus pele contra pele procurando a maneira de se colocarem para terem um do outro maior prazer, mesmo quando os assassinos empurram a faca para dentro das veias negras do pescoço e quanto mais sangue grumoso jorrar mais afundam a lâmina que desliza entre os tendões, não é tanto o seu unir-se ou trucidar-se que importa quanto o unir-se ou o trucidar-se das suas imagens límpidas e frias no espelho.
O espelho ora aumenta o valor às coisas, ora o nega. Nem tudo o que parece valer muito por cima do espelho consegue resistir quando espelhado. As duas cidades gémeas não são iguais, porque nada do que existe ou acontece em Valdrada é simétrico: a cada rosto e cada gesto respondem do espelho um rosto ou um gesto inverso ponto por ponto. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se continuamente nos olhos, mas não se amam.”
In “As Cidades Invisíveis”, Italo Calvino
“Por muitas vezes, nos dias, nos meses, nos anos que se seguiram, pensei que a única explicação possível para tão estranha ocorrência era a forte probabilidade de ter trazido dentro de mim o grande olho da casa da Ribeira Quente. Ou de ele ter vindo comigo, por iniciativa própria, para se abrir à noite, sempre que eu fechava os meus olhos. Tal como acontecera quando a minha mãe cerrara os dela e, nesse exacto momento, se abrira para me deixar sair. Do escuro para a luz. De dentro para fora.
Alinhadas e referidas as convicções anteriores, não sem uma nota suave de incredulidade, convém notar que foi por causa delas que me pareceu também evidente que era uma dádiva suprema poder sonhar todas as noites. Devia, pois, concentrar os meus esforços nessa vivência, fazendo-a preceder de incansáveis tarefas diurnas de preparação. Para que pudesse fruir mais e mais cada esboço de imagem, de luz e de cor, os meus sentidos deveriam estar em permanente estado de vigília, alerta e absorção.
A casa nova, com todos os seus recantos, contornos, volumes, saliências, cheiros e sons inexplorados, apresentava-se-me agora não como o inferno assustador das primeiras horas, mas antes como um paraíso transbordante de sensações virgens e por isso facilmente conversíveis em sonho. Como fruto das minhas explorações, rapidamente juntei à cartilha de sensações da casa velha, por esta ordem e nomenclatura, um Pan-Óptico de Cheiros, uma Galeria de Prismas Tácteis, um Esferímetro de Sons, uma Câmara de Sabores e um Refractómetro de Feixes Luminosos. Graças a eles, os meus sonhos foram-se gradualmente apurando, num atordoante desafio de esboços de imagens com cheiro, som, peso, tamanho, medida, variações de temperatura, sombras e, luxo dos luxos, inefáveis transparências.
Se hoje consigo contar tudo isto com uma ordem e uma lógica, se não fiéis, pelo menos verosímeis, já me é de todo impossível explicitar qual o momento em que o dia e a noite se fundiram num só e passei a sonhar acordada. Se me ficar pela solução mais fácil, posso situá-lo nessa primeira fracção de segundo em que adormeci na casa nova. De qualquer forma, trata-se de um pormenor de somenos importância. Tantas vezes cheguei à conclusão de que sonho porque vivo e vivo porque sonho, que já não faz qualquer sentido procurar conhecer a génese desta bifurcada evidência. Talvez o sonho seja hereditário e tenha a forma de um olho. Que nos olha de cima, apreendendo-nos como nessa ilusão óptica a que, aposto que inadvertidamente, demos o nome de irradiação: preto no branco, branco no preto. Hoje sei: só é cego quem não quer ver.”
© Filipa Melo