Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quinta-feira, agosto 19, 2021

Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini





Khaled Hosseini retratou o amor filial e o Afeganistão 
e arrasou as tabelas.

Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, Saboor conta ao filho Abdullah (dez anos e meio) e à filha Pari (três anos e meio) a história de um dev (demónio) que obrigou um pobre homem a entregar-lhe o filho mais novo e lhe roubou a memória. No dia seguinte, partem os três pela montanha em direcção a Cabul, onde Pari é vendida a um casal rico. Na aldeia, ninguém mais falará deste «dedo cortado para salvar a mão», mas Pari persiste no coração de Abdullah «como a poeira que se lhe colava à camisa». Mais de seis décadas e quase 400 páginas depois, os dois irmãos irão reencontrar-se. E as Montanhas Ecoaram é o terceiro romance do ex-médico internista afegão Khaled Hosseini (n. 1965), autor dos best sellers O Menino de Cabul e Mil Sóis Resplandecentes; 50 milhões de livros vendidos em 70 países e 57 línguas. 

No topo das tabelas de venda e em algumas destronando Inferno de Dan Brown, E as Montanhas Ecoaram prova que a arte de contar histórias unida a uma qualidade literária superior também cria fenómenos comerciais. A raiz deste sucesso é a aura mítica evocada em cada narrativa através dos saltos no tempo, das mudanças de registo da enunciação e da intensidade emocional com que Hosseini desenha, entrelaça e multiplica os retratos de uma dúzia de personagens.

O escritor diz admirar As Vinhas da Ira de Steinbeck e, na verdade, os seus painéis narrativos devem muito ao tema do deslocado. «Como um comboio em movimento», a rede de histórias de vida em E as Montanhas Ecoaram abre-nos janelas inesperadas sobre o passado e o presente do Afeganistão, a relação do país com o exterior e a saga épica daqueles que o trocam pelo Ocidente ou que, mais tarde, pretendem resgatá-lo (Timur e Idris, vindos da Califórnia). Personagens como Adel (filho de um comandante terrorista), Markos (cirurgião plástico), Nila Wahdati (mãe adoptiva de Pari), Parwana (segunda mulher de Saboor, irmã gémea de Massoma), o seu irmão Nabi (cozinheiro e motorista em Cabul) ou Pari (filha de Abdullah, herdeira do nome e da memória da irmã perdida) são construções delicadas que revelam o interior do mundo afegão: «as esperanças e mágoas e sonhos que jaziam disfarçados por pele e osso».


E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini, Editorial Presença, 392 págs.


SOL/19-07-2013

© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

sexta-feira, julho 26, 2019

José Riço Direitinho | O sexo que nos ilumina




Em Portugal, temos o hábito muito entranhado de, em público, não chamarmos as coisas pelos seus nomes, não darmos os nomes devidos às coisas. Não darmos nome às queixas, às zangas, às conquistas, às dores, às derrotas, aos sentimentos, e sobretudo, sobretudo, não darmos a palavra ao sexo. Salvo raríssimas exceções, não a demos durante séculos na literatura. Até que chega o dia. Ou, como diria Bocage, um desses poucos que honrosamente quebraram a regra. Chegou por fim “o fornicário dia”.

Chegou com O Escuro Que te Ilumina, o regresso de José Riço à ficção, após 13 anos de silêncio.
Perfila-se pois, riço e bem direitinho, o autor. Ele é um homem – evidência – corajoso, um escritor que os tem no sítio – uma evidência para quem acabar de ler estas 142 páginas.

Este é um romance pequeno, mais novela, talvez. É a fala confessional de um homem, sem nome, professor catedrático, que, à noite, espreita os vizinhos e se apaixona platonicamente por uma mulher, cujos gestos observa minuciosa e enlevadamente através de um telescópio apontado ao prédio da frente. Diz: “O trágico da paixão, a minha, é ter de a viver sozinho.”

Há quem assegure que as pessoas mais tristes e solitárias na intimidade são aquelas que mais fazem rir os outros em público. São o palhaço triste, mascarado, disfarçado de entertainer. Neste livro, solidão acaba por rimar com muita tesão. Exibicionismo também. Mas, sobretudo, com uma tesão melancólica, passada ao acto no bas-fond de Lisboa e arredores, em bares ou em terrenos baldios, onde se pratica glory holes e happy ends, chuvas douradas e butt plugsfiggingdogging ou carparking — se não sabem o que nada disto é, leiam o livro – rituais plurais, yoyeuristas, sadomasoquistas, o que se quiser como expressão sexual livre.

O protagonista apresenta-se de batina preta, “desabotoada de alto a baixo: o hissope levantado na mão quando me aproximava dos grupos, dando-lhes uma mãozinha no que fosse preciso: fé, esperança e caridade:”, aspergindo-os por fim com um muito pós-moderno amor líquido.
Faz sexo com desconhecidos, serve-lhe “para tornar a realidade irreal: é esse o jogo, estar e não estar. O outro não existe como alguém, ainda não teve tempo para ser outro para quem o olha: é uma coisa, menos  do que um corpo, é um sex toy que se mexe por si, sem precisar de pilhas.”

Sim, neste livro há carne, muita carne, senhores, e é servida crua. Nome a nome, gesto a gesto, está aqui o que (quase?) nunca esteve assim num romance português: sexo a nu, mostrado de forma amoral.

É verdade que Riço Direitinho o  temperou com suficiente meta-ficção. O protagonista ensina literatura, é culto, cita Nietzsche, Al Berto, Klaus Knausgard — a quem, suspeito, se deve muito do impulso de auto-ficção deste livro —, Ângelo de Lima, Borges, Vergílio Ferreira, Kavafis, Rubem Fonseca ou Agustina Bessa Luís.
Mas diz, por exemplo: “Estou cada vez mais convencido de que uma das coisas que falta aos corpos docentes é foder.” E, depois, com a inteligência em riste, profusamente excitada por uma aluna, declama Bocage ou adapta Florbela Espanca:

“Foder, foder perdidamente!
Foder só por foder: aqui, além,
mais este e aquele e aquela,
o outro e a outra e toda a gente.

Foder, foder. E não foder ninguém!
É preciso cantar a Primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu caralho e cona foi para foder!

E se um dia teremos de ser pó, cinza e nada,
que sejam as nossas noites uma longa alvorada,
que nos saibamos perder para nos encontrarmos.

Depois, há uma colega que ensina Filosofia Medieval e que ele encontra no Mise-em-Scène, um bar liberal e kinky ali para os lados do Parque Eduardo VIII. Também há uma juíza, torturada com sádica privação, e uma inspectora da PJ... Há naufrágios, inundações, fornicações e divagações várias.

Sim, neste livro há sexo, muito sexo. Todavia, o que motiva as incursões noturnas do protagonista é um caso de amor platónico. E repete, vezes e vezes: Escrevo como se me lesses... Diz que torna a sua vida mais devassa para não sentir tanto a falta dela, a vizinha da frente, tão distante e inacessível. É uma desculpa para não pôr o protagonista só a ter sexo. Mas nós aceitamo-la como engenho literário, não se pode querer ter tudo, assim, do dia para a noite. No final, foi tudo um sonho. Petrarca e Laura andam por aqui, e o primeiro diz: Por vós convém que eu arda e em vós respire, que fui só vosso; e se de vós me privo, nenhuma outra desgraça é tal tormento.”

O sexo deve integrar a História, com H grande, e também a que o traz pequeno. O sexo deve integrar a Literatura. Sexo aberto e gráfico, mais ou menos literário. Mas: sexo. Porque muitos dos momentos mais intensos e felizes das nossas vidas estão ligados ao sexo. E já é hora da literatura portuguesa falar de nós e das nossas vidas.

Escrever sobre sexo implica tacto, muito tacto – não se riam, é verdade. É preciso medir o poder das palavras. Deixar entrar o material natural, sem filtros, direitinho, inteirinho, trabalhá-lo de uma forma nem decorosa, nem indecorosa.

A história não acaba nem bem nem mal, que é como acabam todas as histórias verdadeiras: há o amor consumado, um piercing no prepúcio, a inscrição definitiva da amada no corpo do protagonista, um dióspiro erótico e uma janela vazia.
“O sexo é a narrativa”, lê-se a poucas páginas do fim. Alguns dirão: Não havia necessidade. Mas havia, sim, e muita. Ora, ora, aqui o têm.

Apresentação de "O Escuro Que Te Ilumina", 2018
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quinta-feira, julho 18, 2019

Entrevista | António Mega Ferreira



A propósito do lançamento do conjunto de ensaios bio-bibliográficos O Essencial sobre Dante, o escritor António Mega Ferreira fala sobre a sua paixão pelo poeta italiano e pela Divina Comédia, e, inevitavelmente, sobre a sua atração fervorosa por Itália. O que colhemos ainda como herança daquele país? Como caracterizá-lo? Segue-se uma longa conversa, em resposta a estas e outras questões sobre a realidade passada e atual de Itália, a cultura italiana, Dante à cabeça, e os exercícios de reconhecimento necessários para delas nos aproximarmos, com um outro olhar.

Quando visitou a Itália pela primeira vez?
Em 1978, com 28 anos. Aterrei em Roma e fui diretamente para a Via dei Portoghesi, onde fiquei alojado, em casa de um amigo então em missão diplomática, José Sasportes. A primeira impressão da cidade foi muito forte. Desde então, viajei por várias vezes, pelas várias Itálias, mas sempre com especial enfoque em Roma, que é uma cidade completamente prodigiosa; em 2002, fiquei lá durante um mês [estadia que deu origem a Roma: exercícios de reconhecimento, espécie de guia intelectual e artístico para uma visita à cidade].

O que mais o impressionou nesse primeiro contacto com Roma?
Um certo caos urbano, com uma sedução irresistível. Havia uma certa desordem organizada na vida daquela cidade e dos romanos que me fascinou de imediato. E, depois, ao virar de cada esquina, havia sempre qualquer coisa de extraordinário para ver, e isso em camadas sobrepostas de estratos deixados por diversas épocas históricas e culturais. Antes de mais, os vestígios do Império Romano, no que podemos imaginar ter sido o seu apogeu. Depois, a Roma cristã, sede da consagração de um culto hoje duplamente milenar. Enfim, o enorme espectáculo de Roma barroca, que vai desde os sinais deixados por Bernini um pouco por toda a parte, sobretudo no centro, até um barroquismo da encenação, muito marcado pelo chamado barroco romano, com o seu auge no séc. XVII.

Em Lisboa, essa sobreposição é feita de volumes arquitectónicos, em perspectiva. Em Roma, é uma sobreposição de raízes...
Sim, é uma sobreposição diferente, porque é orgânica. O paradigma disso é o Teatro di Marcello, que me impressionou logo na primeira viagem: um anfiteatro romano, construído no tempo de Augusto (séc. I a. C.), que foi sendo organicamente reutilizado ao longo das épocas, de tal forma que, hoje em dia, alberga apartamentos de habitação e espaços para escritórios. De facto, a cidade foi-se construindo organicamente, desentranhando-se das formas passadas, reutilizando o antigo, acumulando e sobrepondo. Outra ruína marcante é o Mercado de Trajano, que nos diz mais sobre a maneira de viver dos romanos do que muitos livros de história; é só saber ler o que lá está, saber visitá-lo. No apogeu do Império, o Mercado de Trajano era um verdadeiro shopping center, um símbolo do cosmopolitismo de Roma.

Roma, a cosmopolita. Roma, a decadente. É muito misteriosa essa conjugação de opostos que ainda hoje caracteriza também a realidade e a cultura italianas. Na primeira vez que conduzi em Itália, dei logo de caras com um carro em contramão. [risos] E o mais espantoso é que os italianos são capazes de andar em sentido contrário, não respeitam os sinais ou os peões, mas raramente buzinam em protesto pela condução dos outros.
Há uma organização no caos, uma convenção tácita que permite que as coisas fluam. Esse aspecto impressionou-me muito desde o início e é muito sedutor. Gosto muito pouco das coisas assépticas.

Embora, em Itália, o ideal da harmonia esteja sempre presente.
É verdade. Mas a suprema harmonia pode ser encontrada através das dissonâncias, como sabemos desde Mozart, com o seu célebre quarteto nº 19 em Dó maior.


O visitante que chega a Florença de carro pode comprová-lo quando, após quilómetros e quilómetros de paisagem suburbana feíssima, estaciona, caminha até ao centro histórico e chega, por fim, à apoteótica Piazza della Signoria.
Circundando Florença, perdemo-nos de viaduto para viaduto e vamos parar ao meio de coisa nenhuma, onde, apesar de tudo, surgem uns ciprestes de vez em quando, a lembrar-nos de que estamos na Toscana. Mas, é verdade, o que nós conhecemos das grandes cidades é sempre o centro histórico e monumental, o seu verdadeiro cartão de visita.

No centro de Florença, ainda é possível sofrermos do síndroma de Stendhal [desordem psicossomática provocada pelo contacto com uma obra artística; Stendhal sentiu-a quando visitou pela primeira vez a Galeria degli Uffizi]?
É possível senti-lo, tão esmagadora é a presença de obras de arte únicas. Mas há que fazer um exercício prévio de purificação. Há que colocar um filtro: não olhar para os turistas, não ver as mulheres gordas, os homens barrigudos, as crianças malcriadas... Não ver! E seguir diretamente para os Uffizi. Depois, ninguém pode ir lá pela primeira vez e pôr-se na fila para ir ver toda as salas do museu, não faz sentido; há que escolher o que se quer ver, como intróito a visitas futuras. Da última vez que lá estive, fui direto aos quadros de Fra Filippo Lippi e do filho, Filippino Lippi, que pude apreciar com tempo, até porque estava pouca gente naquelas salas. A incomparável Madonna de Lippi pai dá vertigens… Mas esta é a única possibilidade hoje em dia de ainda se ‘desmaiar esteticamente’ numa cidade como Florença, que, entretanto, foi invadida pelos turistas. Por exemplo, quase ninguém vai ver a prodigiosa basílica de San Miniato al Monte, situada lá no topo, visível da margem do Arno... Já Stendhal o dizia: há coisas que estão reservadas para uns happy few.

Para a elite italiana, a herança cultural é mais forte do que o dinheiro ou o apelo da moda?
Por ser imemorialmente mais rica, a elite italiana é mais culta e estilizada. Quando se chega ao palácio de uma principessa qualquer, no norte, que tem vinte e tal quadros de um mesmo pintor e vive no meio deles, percebe-se que, inevitavelmente, isso é gerador de cultura.

E de diferença social.
Claro. A Itália é um país ferozmente desigual; onde a igualdade será sempre aparente e não mais do que aparente. Há que admitir que, ali, ao longo dos séculos, a riqueza, o património, a arte, a cultura, a arquitectura, geraram produtos de beleza absolutamente incomparáveis. Conto-lhe uma história curiosa. Há muitos anos, uns vinte, houve uma discussão extraordinária, durante a Feira do Livro de Frankfurt, entre um deputado social-democrata alemão e José Saramago. A certa altura, o deputado começou a falar contra os Papas, os papistas e a ostentação do poder do Vaticano. Saramago ergueu-se...

... e imagino que do alto do seu realismo-socialista... [risos]
... apostrofou o deputado luterano: que ele não percebia nada, que, se não tivesse havido os papas, não teríamos tido o Renascimento, não teríamos as obras de arte barrocas, não teríamos isto e aquilo, e que, apesar de tudo, o cristianismo legou à Humanidade coisas que o luteranismo não foi capaz de legar. Chapeau! Porque há que reconhecer que o facto de a Itália ser extraordinária é fruto da enorme desigualdade que sempre marcou a sua história.



A Itália, na verdade, é um país muito recente: data do século XIX.  Durante grande parte da sua história pós-romana, foi um espaço fragmentado em vários reinos e cidades-Estado.
A partir do final do séc. X, a Itália sofreu a enorme influência do movimento comunal, o que não foi fenómeno único na Europa, mas que, ali, foi vivido com especial intensidade, alastrando-se como mancha de óleo e arrastando-se por séculos. Na realidade, quando chegamos ao século XII, a Itália do centro e do norte é uma miríade de cidades-Estado. A cidade era o que estava intra-muros, dentro das fortificações próprias das cidades medievais, e o seu ‘contado’ eram os campos que pertenciam à administração da cidade e de onde lhe vinham as vitualhas. Muitas vezes, o contado não era mais do que meia dúzia de quilómetros em redor da cidade. Assim florescem, ao mesmo tempo, na Idade Média, Florença, Siena, a 50 quilómetros, ou Prato, a apenas 19 quilómetros. Havia muitas micro-cidades-Estado, que eram autónomas, soberanas, e que, na maior parte dos casos, cunharam moeda própria, até à invenção do florim. Por exemplo, durante um curto período no séc. XIII, Mântua teve uma moeda própria, com a efígie do poeta latino Virgílio, natural da cidade. Outro dado importantíssimo: cada cidade-Estado falava o seu dialecto próprio. Dante analisou esses dialectos, sobretudo os do norte, e escreveu o tratado De vulgari eloquentia, onde questionava o porquê de cidades completamente contíguas terem dialectos diferentes. Aí nasceu o projecto que ele, modestamente, se propôs construir e que o levou a escrever a Divina Comédia em vernáculo: criar uma língua literária a partir do vulgar, compreensível por aquela gente toda e que, sobretudo, servisse uma expressão literária uniformizada.

Dante conseguiu-o, mas os dialectos persistem e, genericamente, os italianos são bilingues. Essa composição medieval pulverizada explica a rivalidade que persiste ainda hoje entre várias cidades italianas?
Sim, esse ADN mantém-se até à actualidade. Os regionalismos, os particularismos de cidade contra cidade — Lucca contra Pistoia, Florença contra Siena... — mantêm-se no norte e, com particular fulgurância, no centro de Itália. Porque, atenção, não existe uma identidade italiana, existem identidades italianas.

Aliás, o António defende, em Itália, Práticas de Viagem (2017, Sextante), que Dante foi apanhado no auge do embate entre a Igreja e o Império, com Florença por epicentro, e que é por isso que ele jamais teria entendido a paixão unificadora e centralizadora que levou à criação do Reino de Itália, em 1861.
A paisagem política italiana era atomizada. Mas Dante achava que Florença era o centro do universo italiano. Daí que existam diversas passagens na Divina Comédia em que ele diz pessimamente de outras cidades, sobretudo de Siena. A ideia de nação, propriamente dita, não existe no final do séc. XIII, início do séc. XIV, o tempo de Dante. Ele nunca teria entendido a paixão do Risorgimento, impulsionada pelas elites e depois adoptada pelo povo, através de alguns meios de unificação, como o orgulho pela ancestralidade imperial (segundo Dante, a Itália era “o jardim do Império”), a reivindicação dessa herança imperial, o poema de Dante e a língua italiana (surgida a partir do dialecto toscano) ou a música de Verdi.

Num referendo recente sobre a autonomia das regiões italianas, 95% dos votantes na Lombardia e em Veneto votaram a favor. É compreensível, porque são as duas regiões mais ricas do país: Milão contribui anualmente com 20% do PIB italiano, Veneza com 10%. A desigualdade norte-sul continua a ser gritante e justifica os desejos de autonomia e, até, nalguns casos, de independência de algumas regiões.
É simples: as regiões mais ricas e mais estruturadas, a norte, não querem participar no esforço económico do resto da Itália. O Mezzogiorno [sul] é paupérrimo. A Sicília poderia ser rica, mas não é. Nápoles é a segunda maior cidade italiana, mas, aí, o caos é menos organizado ou, melhor, é organizado por redes subterrâneas. Veja-se a célebre tentativa abortada de racionalização da gestão dos lixos de Nápoles, de que se falou tanto há cerca de dez anos.

O poder da Camorra e dos reis do lixo na Campânia ficou bem claro nessa altura e é uma excelente metáfora dos meandros sujos da governação de Itália.
Escrevi então uma crónica exactamente nesse sentido. O caso tornou-se ainda mais espantoso quando a Suíça se ofereceu para receber os lixos de Nápoles, o que achei de extraordinária ironia: o norte acabar por acolher os lixos do sul...

Um dos momentos altos de Il Divo, o filme de Paolo Sorrentino sobre a arte da política italiana, personificada na figura de Giulio Andreotti [sete vezes primeiro-ministro, oito vezes ministro da Defesa, cinco vezes ministro dos Negócios Estrangeiros e, por fim, senador vitalício] é quando este abraça e beija Toto Riina, a «Fera», o «chefe dos chefes» da Cosa Nostra. Riina, preso em 1993, mandante de, pelo menos, 150 assassinatos e condenado com 26 penas de prisão perpétua, faleceu a 17 de novembro último, com 86 anos. Apesar da sua morte, não se espera que algo mude na Mafia italiana, pois não?
Jamais. São realidades historicamente enraizadas. Em Itália, são essas redes mais ou menos subterrâneas, que vão permitindo que aquilo vá andando... É isso: a Itália é um país que vai andando.

Houve 65 governos desde a implantação da República, em 1946. A política italiana é compreensível para quem não é italiano?
Dificilmente. É possível compreender-se as grandes linhas institucionais, as opções afetivo-partidárias de fundo, a estrutura dominante composta por essas redes subterrâneas, mas, por outro lado, nem os próprios italianos conhecem a sua verdadeira extensão. Creio que nem os próprios que estão dentro das redes conseguem vê-las com clareza. O caso da recolha do lixo de Nápoles demonstrou-o, revelando um negócio que se tornou uma arma poderosíssima, inteiramente nas mãos da Camorra. A imagem projectada pela Itália para o exterior é de estagnação; porém, a Itália vai andando, à custa desses braços ocultos que a vão suportando e empurrando e do dinamismo daquilo a que podemos chamar sociedade civil.


Matteo Renzi, o anterior primeiro-ministro, ex-presidente da Câmara de Florença, líder do Partido Democrático, propôs um referendo constitucional em 2016, e perdeu-o, o que o levou a demitir-se. Um dos lemas que defendia era: “A Itália não pode ser um país-museu, tem de ser um país-laboratório.” Quer comentar?
Para muitos, as mudanças na Constituição pretendidas por Renzi enquadravam-se na melhor tradição dos tiranos italianos. Através de uma mudança de estatuto do Senado, cuja composição seria decidida pelo PM (o que é impensável num sistema democrático electivo), ele tornar-se-ia um verdadeiro Signore, com todo o poder. Já havia o “prémio da maioria”, cuja ideia constitucional não é disparatada, no sentido de contrariar a instabilidade política [o partido que vencesse uma eleição com mais de 40%, teria automaticamente um prémio que lhe garantisse a maioria ou, então, ele seria disputado numa segunda volta entre as duas formações mais votadas], mas que, mesmo assim, não garantia a governabilidade.

O afastamento de Renzi permitiu, por exemplo, que o governo da região autónoma da Sícilia tenha sido recentemente conquistado por Nello Musumeci, o líder de um partido pós-fascista, apoiado por Berlusconi e a quem os próprios partidários chamam «fascista perbene» (um fascista como deve ser)...
Sempre que o Partido Democrático desce, a direita sobe e lá vem outra vez aquele indivíduo inenarrável, que parece ter sete vidas...

D.H. Lawrence, que conheceu muito bem o país, diz, em Crespúsculo em Itália: “[Ali], a mente subjuga-se aos sentidos. Como num gato, há subtileza e beleza e a dignidade das trevas. Mas o lume é frio, como nos olhos de um gato, é um lume verde. É fluido, eléctrico. […] Há o eu, sempre o eu. E a mente fica submersa, subjugada. Os sentidos, porém, mostram-se magnificamente arrogantes.”
Bom, o Lawrence escorrega sempre para o lirismo, por vezes despropositado… Mas essa metáfora do felino aplica-se bastante bem a Itália. Trata-se de uma nação felina, com imensa agilidade e uma enorme capacidade de cair de muito alto, em cima das patas.

Já falámos da língua, do pasticcio [imbróglio] político e das redes subterrâneas. Para além disso, o que é que unifica a Itália? O sentido canónico da beleza ocidental?
Não. O mais forte elemento da identidade nacional italiana é a consciência de que eles são melhores do que os outros. É a auto-confiança italiana que torna a Itália italiana. Visto do exterior, isto redunda em arrogância, mas só isso explica que a eliminação da Itália do Campeonato do Mundo de Futebol seja vivida como uma tragédia nacional.

E perder logo para a Suécia!
 [risos]
Com a Espanha e a Alemanha, eles já estão habituados a perder. Agora, perderem com a Suécia é verdadeiramente terrível e fere a identidade nacional. Porque os italianos são os melhores do mundo! Há uma anedota que explica isto. Em 1756, Casanova [a quem António Mega Ferreira dedicou a ficção Cartas de Casanova, Sextante, 2013] evade-se da prisão dos Piombi, em Veneza, e desagua em Paris. Uma noite, é levado à Opera e é apresentado a Madame Pompadour, que é a favorita do rei, Luís XV...

E que é uma boneca.
Sim, e a boneca pergunta-lhe: “E então, senhor Casanova, como é que estão as coisas lá-bas, em Veneza?” Ele responde: “Madame, Venise n’est pas là-bas, Venise est là-haut.” É isto: os italianos estão sempre por cima.

Daí que um dos conselhos que os próprios dão com frequência aos turistas seja: nunca seja simpático, não deixe passar ninguém à frente, se não vai ser tomado por parvo. Na verdade, a exuberância sonora dos italianos disfarça muito bem a sua pouquíssima abertura para os outros, certo?
Essa exuberância existe, mas é só entre eles. Aliás, admito que ela acaba por intimidar o visitante. Confesso que, hoje em dia, depois de ter estado tantas vezes em itália, já não sinto isso. Mas esse sentimento de soberba, de superioridade sobre os outros, acaba por ser também um cimento da identidade nacional.

Mais uma vez, isso não terá a ver com a ideia da posse de um sentido canónico da beleza e da cultura?
As elites têm isso. O povo limita-se a alimentar a sua soberba com o mito da Roma imperial, do Dante, do Petrarca, do Verdi, do Manzoni, da squadra azzurraet cetera. Mussolini bebeu nessa fonte de identificação popular. Essas heranças são como que commodities que os italianos usam para afirmar a sua superioridade, que é, historicamente, relativamente comprovável, porque, na realidade, mesmo em períodos em que não foram uma potência dominante na Europa (sobretudo porque não eram uma potência centralizada), eles eram o referente. Não por acaso, o Grand Tour era feito através dos Alpes, para ir a Itália, como bem sabemos pelo testemunho de numerosos e importantes viajantes.

Hoje em dia, a Itália tem uma das maiores taxas de desemprego jovem da Europa e a segunda maior dívida pública. A burocracia estatal é ineficiente, a tributação pesada, os gastos públicos comem metade do PIB nacional e existem altíssimos níveis de corrupção política. Orgulham-se de quê?
Orgulham-se da sua ideia de Itália, mais do que das realidades. Mas, apesar de tudo, a Itália é uma das seis maiores economias da União Europeia.

Porquê? Por causa do turismo?
Também. Mas não só por isso. A Itália foi, a partir do século XIX e ao longo de todo o séc. XX, uma grande potência industrial. Grande parte da indústria europeia do automóvel é de origem italiana. Ainda hoje viajamos com enorme conforto na excelente rede ferroviária italiana, em comboios de alta velocidade desenvolvidos por italianos. Eles não copiam; desenvolvem, acrescentam, inovam. Acrescentam sobretudo design; são dados a isso.

Devido a um especial sentido estético?
Os italianos têm séculos e séculos de uma cultura e de um olhar treinado para o belo e para o luxo. É uma questão de envolvência; saem à rua, nem dão por isso, mas estão permanentemente a ser impregnados pela herança cultural e pela beleza. Para mais, têm uma capacidade produtiva e inventiva extraordinária, que se estende a tudo. No campo do design, sobretudo, aquilo sai-lhes tudo melhor.

Tal qual o caffè espresso!
Ah, o café Illy! A propósito, aceita um?

[pausa curta para café bem escuro]

No documentário A Síndrome de Veneza (2013), do alemão Andreas Pichler, sobre a enorme pressão do turismo de massa sobre a cidade, há um veneziano que, ao ver as hordas de turistas a circularem numa rua, exclama: “Tanta gente! Onde é que eles vão todos fazer chichi?”
[gargalhadas]
Isso é genial! A perplexidade tem toda a razão!

O realizador fala de uma cidade “encurralada pela sua própria beleza”, abandonada pelos locais, deserta à noite, decadente, que deixou de existir como estrutura urbana. Em 2019, os grandes paquetes (com mais de 130 mil toneladas) vão ser interditados de circular no canal da Giudecca. Mas, ainda assim, não se prevê que diminua o número de visitantes por ano: cerca de 20 milhões (1,5 milhões chegam em cruzeiros), uma média de 60 mil por dia. A cidade já tem menos de 50 mil habitantes.
Quando comecei a ir a Veneza, no início dos anos 1980, havia 80 mil habitantes. Entretanto, a cidade transformou-se num parque temático cultural e monumental. Hoje, Veneza é o paroxismo do turismo de massas, o que a afecta exponencialmente porque se trata de uma cidade muito particular, inorgânica, cristalizada, sem meios de se renovar ou autoregenerar.

Em Itália, Práticas de Viagem, descreve-a, a propósito da Ponte de Rialto representada num quadro de Carpaccio, como «um organismo especular». É uma cidade prisioneira da sua própria imagem?
Efetivamente, o que mais me impressiona em Veneza é esse ambiente, essa atmosfera e essa natureza especular. Toda a cidade se olha a si própria...

Como Laudomia, d’As Cidades Invisíveis de Calvino, a cidade tripla, cujas facetas, dos mortos, dos vivos e dos não nascidos, se olham e reflectem constantemente umas às outras?
E não é por acaso que Calvino é italiano. Veneza vive constantemente nessa relação especular, sendo que a relação do visitante com a cidade acaba por ser, ela própria, especular. Viramos uma esquina e deparamo-nos com água. Estamos rodeados por espelhos, no chão, o que nos transmite uma grande insegurança. Aliás, Veneza é uma cidade profundamente inquietante, sobretudo à noite, quando fica deserta, completamente morta, e tudo, não só os sons, ecoa.  

Depois, há essa “estranha ambiência cromática”, a que se refere a propósito do Trafugamento del corpo di San Marco, de Tintoretto. Ainda a conseguimos encontrar em Veneza?
Sim, na Scuola Grande di San Rocco, que tem uma dimensão demencial porque é toda ela decorada com as telas gigantescas de Tintoretto. Tenho, aliás, um poema muito antigo, sobre esse outro mundo, que só existe ali.

A SOMBRA DE SAN ROCCO

                        Entre nós, haverá sempre
                        a sombra de San Rocco,
                        o mármore gasto das escadas,
                        o duplo olhar no espelho, a insólita heresia
daquela Adoração, em que tudo
se passa no andar de cima.
Porém, eu avisei-te.
Disse-te que havia em San Rocco
mais e menos que um estilo
de pintura. Que talvez a penumbra
do Albergo ganhasse outra cor,
se a desvendássemos de mão dada,
enquanto, lá fora, os pombos
se enroscavam na bruma da manhã.
Mas a hisória é outra: outra
seria a história de San Rocco,
ou a nossa história,
se não fosse o que me atrai a tua sombra.
Porque era ali, na sombra de San Rocco,
que o teu olhar se deveria iluminar
de cinza.
(É por dentro da cinza, sabes,
que a luz cintila, maior que a própria cor,
maior que a vida.)
Porque a luz pensa,
nestes quadros, pulsa na obscura
energia que toda a mão destila.
(Ah, mas tu da sombra nada sabes,
ou o que sabes não passa pela dor.)
Vê, então, na Última Ceia, como Cristo
se anuncia,
na impossível perspectiva
que faz caber no quadro tudo o que existe;
e como o movimento da tua mão desperta
outra perspectiva,
porque por ela é que se agita
a sombra de San Rocco
que entre nós persiste.

in Os princípios do fim, Lisboa, Quetzal, 1992.



 

Não por acaso, os italianos são provavelmente o único povo mediterrânico apaixonado pela leitura pública de poesia. Roberto Benigni fez uma tournée pelo país, com enorme sucesso, a dizer a Divina Comédia.
Eles gostam imemorialmente de ouvir dizer poesia. Repare que a primeira leitura pública da Divina Comédia de que se tem notícia é feita por Boccaccio, em 1373, na Badia Fiorentina, ao pé da casa onde terá nascido Dante, que morrera apenas 50 anos antes. Boccaccio, que faz essa leitura comentada, é o primeiro grande campeão da Divina Comédia e do Dante e passa a vida a fazer-lhe elogios junto de Petrarca, aos quais este torce um bocado o nariz. É Boccaccio quem atribui o adjectivo “divina” ao poema ao qual, nas primeiras edições manuscritas, se chamava apenas Commedia.

Comédia, porquê?
Porque, segundo a classificação de Aristóteles, o poema tinha um final feliz: a ascensão da alma de Dante até à luz divina.

Divina Comédia é um poema de ecos e de sombras de múltiplas influências, onde estão identificadas, por exemplo, 140 derivações da obra de Virgílio, que é referido pelo poeta como seu «mestre, senhor e guia». Contudo, Dante trata bastante mal Virgílio, despede-se dele à porta do Paraíso, e a segunda figura tutelar [existe uma terceira, Estácio] é Guido Cavalcanti, que, no poema, está já morto...
Há outra coisa extraordinária: logo no início do poema, no primeiro círculo do Inferno, que é uma espécie de limbo — uma inovação teológica por parte de Dante, na medida em que o limbo era para onde iam as crianças não batizadas e as almas penadas —, encontramos as cinco sombras gloriosas: Homero, Ovídio, Horácio, Lucano e Virgílio. Dante conta como, por gestos, estas glórias o convidam a juntar-se-lhes e, assim, ele se torna a sexta glória. Mas não creio que Dante trate mal Virgílio; este é que se despede dele, porque, tendo vivido antes de Cristo, não recebeu o sacramento do baptismo, não podendo, portanto, aceder ao céu.

O Essencial sobre Dante segue cronologicamente a bio-biliografia do poeta, tem nove capítulos e um anexo: a sua tradução da versão integral do Canto V. A segunda parte é inteiramente dedicada à Divina Comédia. O prólogo fala de uma ruptura. Porquê?
A ruptura dá-se quando Dante vai a Roma para o Jubileu decretado por Bonifácio VIII, na semana de Páscoa de 1300, e percebe que nada do que ali se faz tem a ver com o catolicismo ortodoxo, a remissão dos pecados ou o júbilo interior, e que o papa anda a vender indulgências para fazer dinheiro para a igreja. É então que ele rompe com Bonifácio VIII, o que é decisivo. Porquê? Porque quando, quatro ou cinco anos depois, já no exílio, Dante começa a escrever a Divina Comédia, situa a ação do poema precisamente nessa semana do Jubileu de 1300.
E aproveito para voltar um pouco atrás, à relação de Dante com Guido Cavalcanti. Eu penso que ele comete um assassínio ritual de Guido Cavalcanti, tido durante muito tempo por seu melhor amigo (é ele que o diz: “il primo dei miei amici”), o que é hoje bastante contestável. No Canto X do Inferno, o pai Cavalcante dei Cavalcanti pergunta-lhe por que não está o seu filho também ali, já que era inseparável de Dante. Dante não responde, precisamente porque a ação do poema se passa antes da morte de Cavalcanti, que ocorre três meses depois do Jubileu, de malária [a doença que também matará Dante, em 1321], a caminho de Florença, após um curto exílio em Sarzana. Quando este canto é escrito, já Guido morreu; mas Dante não responde ao pai Cavalcanti, porque não lhe pode dizer que ele está vivo ou que morreu. Mata-o ritualmente, porque não responde ao pai Cavalcanti. Encarrega outra figura de informar Cavalcanti que, da última vez que viu Guido, ele ainda estava vivo.

Esse tipo de retórica, que percorre todo o poema, não é prosaica, mas, antes, totalmente original, dantesca. Ela expressa-se sobretudo na criação do dispositivo do “eu” do narrador-viajante e do “ele” usado para o peregrino. Ambos são, afinal, Dante, cujo nome concreto surge uma única vez em todo o poema. Trata-se de mais uma expressão da modestia do poeta?
O peregrino é o perguntador, que está numa aventura pessoal, que é a da salvação da sua alma, à procura de encontrar Deus. O peregrino é o único que está vivo, ao longo de todo aquele percurso, durante o qual só encontra mortos — o que, convenhamos, significa que Dante se atribuiu uma função extraordinária. O narrador também é Dante, mas a sua função é dar respostas ao peregrino, através das falas das personagens. Esta dupla figura de que o poeta se arma é um artifício absolutamente genial para conseguir distanciar, constantemente, os argumentos e a narração. As opiniões propriamente ditas são do Dante narrador.

Podemos considerar que um representa o aristotélico e o outro o gnóstico?
É uma via possível. O narrador busca o conhecimento, dá as respostas racionais que explicam o sentido da curiosidade do peregrino. A Divina Comédia é, além de tudo o resto, uma história da curiosidade (Alberto Manguel escolhe Dante como guia para um ensaio muito interessante, chamado, exatamente, Uma História da Curiosidade). E note-se que, no tempo de Dante, a curiosidade é condenada e punida pela igreja, que determina que ninguém pode saber mais do que aquilo que pode saber. Mas, o que é que se pode saber, segundo a Divina Comédia? Na cabeça de Dante, a resposta é: o que Deus permite que saibamos. Mas esta é uma verdade tornada relativa pelo próprio poema: o que Dante procura é uma empresa de dimensão ulissiana, conhecer para lá dos limites consentidos.

No caso de Beatriz, a curiosidade satisfaz-se, o conhecimento alcança-se, através da revelação. Ela é, para Dante, “a luz entre a verdade e o intelecto”, a via para a ascensão, como o foi Laura, em Petrarca...
Elas são dois ideais instrumentais.

Nos Nove Ensaios Dantescos, Jorge Luis Borges diz: “Apaixonar-se é criar uma religião que tem um deus falível. Que Dante professou uma admiração idólatra por Beatriz é uma verdade que não sofre contestação; que ela o ridicularizou uma vez e que o desprezou uma outra são factos apresentados pela Vita nuova. Alguns defendem que esses factos são simbólicos de outros. A ser verdade, isso fortaleceria ainda mais a nossa certeza de um amor infeliz e supersticioso.” Podemos entender Beatriz como um veículo pela negação, no sentido em que ela representa a idealização de um amor nunca vivido, um objeto de desejo intocável?
Beatriz não poderia amar Dante. Ele vê-a aos nove anos de idade, revê-a nove anos depois, e nunca chegam a trocar uma única palavra. É um amor perdido porque, nessa vida real, Beatriz não só não lhe liga nenhuma, como se casa com outro. Quando ele escreve a Divina Comédia, ela já está morta há muito. Quatro séculos depois, Dom Quixote replica exatamente esse mito da adoração platónica pela mulher ideal, com Dulcineia del Toboso e Aldonza Lorenzo, enfatizando o pormenor quase picaresco da idealização de uma paixão extraordinária que nasce sem que exista qualquer contacto com a amada. Numa primeira fase, em 1293-94, essa paixão é coroada por Dante em Vita nuova, ainda ligada ao conceito de amor dos poetas do Dolce Stil Nuovo [o estilo poético novo, cuja criação, à chegada ao Purgatório, Bonagiunta Orbicciani, um poeta italiano do séc. XII, atribui a Dante, Guido Cavalcanti e Guido Guinizelli]. Nessa fase, a paixão ainda representa il disioo desejo. Contudo, já no final de Vita nuova, Dante diz qualquer coisa como: tenho de encontrar uma nova e mais elevada expressão para dizer a beleza desta mulher. Essa beleza aparecerá na Divina Comédia, já não na sua expressão física, mas numa dimensão espiritual.

É nesse sentido que Beatriz surge como uma emissária de Deus?
Sim, aliás, logo no início da Divina Comédia, ela vem ter com Virgílio e Dante e diz-lhes: eu venho de lá, do sítio de onde ninguém chega, e venho encaminhar-vos, para depois rapidamente voltar para lá, para Deus. Por isso, Virgilio conduz Dante até ao final do Purgatório e, às portas do Paraíso, diz-lhe que já não pode avançar mais (porque nasceu antes de Cristo, logo, não pode atingir a salvação) e passa-o para “outra mais digna do que eu”: Beatriz, que conduzirá Dante a partir dali.

O teólogo Charles Williams, um dos grandes teóricos da figura de Beatriz, defende que ela é a encarnação do divino, mas, também, “uma revelação pessoal”, que se dá através do confronto com o sexo oposto. Concorda?
Sim e não, porque a idealização só é efetivamente possível quando não há contacto. Veja-se que Dante não faz qualquer referência em todo o poema à sua mulher, Gemma Donati, mãe dos seus três filhos, que terão um papel importantíssimo na revelação post-mortem da sua obra – por exemplo, o mais velho, Pietro Alighieri, notário, é quem fixa o Paraíso e o divulga pela primeira vez em manuscritos completos. Gemma nunca é referida pelo poeta, porque é uma mulher real e não uma projeção, como Beatriz.

Mas, regressemos à ideia de que, para Dante, o conhecimento possível para no que Deus permite que saibamos. Logo, existem limites para a curiosidade?
No canto XXVI do Inferno, um canto absolutamente extraordinário, dos mais belos da Comédia, Dante e Virgílio encontram Ulisses. Dante questiona a presença do herói homérico ali, entre os chamados consiglieri di frode, que se pode traduzir como “os ardilosos”. E Virgílio responde-lhe que Ulisses enganou este e aquele, enganou os troianos, com um cavalo de madeira, é um infame, tem de estar condenado às penas eternas. Então, Dante pede a Virgílio: Pergunta-lhe como é que ele morreu? Se está aqui, é porque está morto. Na realidade, nem na Odisseia, nem em nenhum dos outros poemas autênticos, se diz como morreu Ulisses. Na Divina Comédia, Ulisses explica como é que morreu. Um dia, estava ele em Ítaca, já apaziguado...

Já tinha feito o banho de sangue...
Já tinha dado cabo dos pretendentes todos, sim. Aliás, Dante podia tê-lo posto a morrer às mãos da vingança dos familiares dos pretendentes de Penélope, porque é assim que acaba a Odisseia. Mas, não, ele prefere o caminho mais difícil. Ulisses explica que, estando em Ítaca, se voltou para os seus companheiros e lhes disse: Vocês, que andaram para o Ocidente, estão agora aqui assim, amodorrados? E segue-se um terceto belíssimo: “Considerate la vostra semenza:/ fatti non foste a viver come bruti/ ma per seguir virtute e canoscenza.” Lembrai-vos da vossa origem, daquilo para que fostes criados: não para viver como brutos, mas para buscar virtude e sapiência. E, então, partiram todos para o mundo desconhecido, que estava para lá dos pilares de Hércules; para lá de Gibraltar, o limite que os deuses tinham estabelecido e que nenhum ser humano deveria ultrapassar. Ulisses e os companheiros internam-se pelo Oceano Atlântico fora, e vão parar aos pés de uma montanha que, no canto seguinte da Comédia, percebemos tratar-se da montanha do Purgatório. Ali chegados, os deuses desencadeiam uma enorme tempestade, e assim morreram todos, inclusivamente Ulisses.

 

A jornada deles para na base da montanha, nem chegam a subi-la. A de Dante irá mais longe.
Claro!
[risos]
A morte de Ulisses assim é uma invenção de Dante. Porquê? A interpretação mais corrente, das muitas que existem, é a de que, de alguma forma, Dante via na sua própria viagem uma viagem blasfema, sacrílega, em relação ao Deus cristão, tal como a de Ulisses o tinha sido em relação aos deuses pagãos. Ou seja, ele tem uma ambivalência enorme em relação à própria figura do Ulisses. Está a tentar fazer um poema onde se descreve o indescritível...

Mas para no limite da ortodoxia?
Dante, ele próprio, não para. Por um lado, fascina-o a coragem e a audácia de Ulisses, mas, por outro, ele não deixa de o castigar por causa de uma coisa que é “il trapassar del segno”, o ultrapassar o limite estabelecido, do sinal divino. Mas Dante não pode deixar de pensar que também ele, com a empresa que está a seguir, de alguma forma está a fazer um percurso semelhante ao que atribui a Ulisses e que é...

Humano?
Exatamente. A viagem de Ulisses é uma metáfora da própria viagem de Dante. E o poeta não tem ainda a certeza de que Deus lhe permitirá «il trapassar del segno”. O episódio do canto XXVI do Inferno torna a empresa de Dante ainda mais extraordinária, porque mostra que ele tinha dúvidas metafísicas quanto à sua legitimidade — não quanto à sua exequibilidade, porque ele escreve o poema até ao fim.

Dante pergunta-se se Deus lhe permitirá chegar ao conhecimento e a conhecê-lo. Ou seja, ele é determinado pela teologia, que não é um mero recurso entre outros usados no poema?
Harold Bloom, por exemplo, defende que a Divina Comédia não tem nada de teológico.

E que Dante é um super-naturalista, que transcende a natureza, porque o único teólogo que verdadeiramente contava para Dante era o próprio Dante. Isto, a si, deve irritá-lo imenso...
Sim, porque Bloom conclui isso, muito à sua maneira, excluindo tudo o resto. É uma leitura tão fundamentalista como as leituras “teológicas”. Não é esse o meu caminho: entendo que a Divina Comédia é um poema incomparável porque está lá tudo. Estão lá as dimensões todas, todos os conhecimentos da época, todas as filosofias, todos os saberes encontram ali um reflexo. A Divina Comédia é uma enorme enciclopédia; o escritor húngaro Miklós Szentkuthy diz mesmo que se trata do “único dicionário integral da Idade Média”.

A erudição gigantesca de Dante é ainda mais surpreendente por ele ter sido um autodidacta.
Ele foi um autodidacta com uma capacidade de absorção extraordinária. E, depois, tinha uma outra grande vantagem: nunca fez nada! Não se lhe conhece nenhuma ocupação regular ao longo da vida, à exceção de umas missões diplomáticas, e de ter sido, durante dois meses, um dos priori (governador) de Florença.

Pode entender-se a Divina Comédia  como um poema profético?
Não é um poema que antecipe, efetivamente, nada do que se vai passar no futuro. O tom profético é ali usado, normalmente, para relatar acontecimentos futuros que, ao tempo da escrita do poema (mas não da ação, que, recorde-se, tem lugar em 1300), já tinham acontecido. Contudo, tem pontos proféticos. Por exemplo, quando Beatriz diz a Dante, já no Paraíso, que há-de vir o DXV [500, 10, 5, na numeração romana], entendido como um anagrama de Dux [líder], que os dantólogos veem como uma profecia da vinda do imperador que há de salvar a Itália das garras do papado. Profecia falhada, no entanto. Porque Dante começa por ser guelfo, partidário do Papa e do poder temporal da igreja, mas depois rompe com Bonifácio VIII pelos motivos atrás referidos, mas também porque este queria conquistar a República Florentina para pôr lá um sobrinho dele. Já no exílio, Dante vai deslizando para posições próximas das dos gibelinos [apoiantes do Imperador Romano-Germânico]. E acaba a escrever a Monarquia, que é, sobretudo, um tratado de filosofia política, e a defender que a solução estava na vinda de um imperador, de um príncipe que congregasse o poder e a fé e mantivesse as duas esferas afastadas. Esta posição é defendida pelo narrador e pelas personagens da Divina Comédia a partir de metade do Purgatório e em todo o Paraíso.

Como é que um não-crente como o António pode gostar de um poema que apresenta como sendo “uma narrativa autobiográfica, uma peregrinação movida pelo desejo do saber e pela ânsia muito medieval da salvação da alma”, mas, acima de tudo, como «um poema sobre o Amor; e, em última (que é primeiríssima) instância, sobre o Amor divino que [para Dante] é, finalmente, o motor de todas as coisas”?
Porque, tal como diz Bloom, mas não exclusivamente como diz Bloom, a Divina Comédia é, para lá do teológico, um poema do conhecimento, um poema astrológico, um poema enciclopédico, mas é, convém não esquecê-lo, poesia. O que o torna espantoso não é a acumulação de saberes, nem a cosmologia da salvação que Dante inventa para o Paraíso; é tudo isso vertido num poema admirável, onde os recursos imagéticos e estilísticos de Dante erguem um edifício sem precedentes na tradição poética ocidental.

É a definição e o desdobramento, a reinterpração e reequação dos conceitos e dos métodos, através de uma paixão enorme pela ordem e pela precisão da poesia. Porque tudo aquilo é preciso...
Exactamente, mas o que torna isso extraordinário é o que resulta, aquilo a que poderíamos chamar, quase tautologicamente, a qualidade poética da poesia.

Uma qualidade de evocação?
Uma qualidade de criação de uma linguagem poética propriamente dantesca, completamente original, até na invenção da terza rima, que lhe confere um ritmo incomparável. Tudo é trinitário no poema, da terza rima à própria estrutura dos cantos. A célula significante do poema são as terzine dantescas, os tercetos. Mas cada terceto tem três versos, cada verso com onze sílabas [hendecassílabo], logo um total de 33 sílabas; o poema tem três partes (InfernoPurgatório e Paraíso), cada uma dividida em 33 cantos, com aproximadamente 40 a 50 tercetos, que terminam com um verso isolado no final. No total, são 100 cantos, porque existe um canto primeiro, proemial, que serve de introdução aos 99 seguintes. No Canto XIV do Paraíso, Dante refere “esse um e dois e três que é sempre e deve / sempre reinar em três e dois e num”. O poema é indissociável da concepção trinitária cristã, da Santíssima Trindade.

Poema alegórico, poema teológico, da redenção pela fé... Insisto: enquanto não-crente, vê-o sobretudo como redenção poética?
Não. Vejo-o como um enorme poema, sendo indiferente acreditar naquilo que é a sua direção. O que admiro no poema é...

A jornada poética?
Precisamente. O que me interessa é a jornada, porque o caminho faz-se caminhando, como dizia António Machado. Há uma dantóloga australiana, Prue Shaw, que tem uma frase muito bonita sobre isso: ela diz que à medida que vai caminhando, ele descobre-se poeta. Como? Escrevendo o poema que faz dele um poeta.


Se Dante escrevesse numa outra época, aquela poderia ser já uma jornada humanista?
Na Divina Comédia, dá-se a ascensão do Monte Purgatório, em cujo topo está o Paraíso. O Purgatório dantesco não é um lugar de punição ad eternum (como o Inferno), mas onde há ascensão até ao limiar da redenção. Em Dante, a ascensão do Monte Purgatório faz-se para atingir Deus. Em Petrarca, uma geração literária depois, a ascensão do Monte Ventoux (por ele localizada temporalmente em 1336) faz-se para quê?

Para se encontrar a si mesmo.
Voilá! Dante ascende para se dissolver na luz divina. Em Petrarca, apesar de ele ser cristianíssimo também, a ascensão é ainda pessoal, como em Dante, mas é feita para se conhecer a si próprio e, assim, aperfeiçoar-se e atingir Deus. É a mudança de perspectiva introduzida pelo primeiro humanismo.

Em A Voz do Silêncio, André Malraux escreve sobre Giotto, e poderia estar a escrever sobre Dante e o seu contributo para a poesia universal. Diz: “É o primeiro na pintura a descobrir o gesto largo sem dele fazer um gesto teatral. Substitui as pregas.”
Uma lenda muito difundida sustenta que Dante e Giotto ter-se-iam encontrado, quando este estava a pintar a Capela dos Scrovegni, em Pádua. Não se sabe ao certo se este encontro se deu ou não, porém, em O Essencial sobre Dante, defendo virtualmente que, se se tivessem encontrado, não seria de espantar. As imagens que estão na Capela dos Scrovegni, aquelas figurações do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, poderiam ter saído das páginas da Divina Comédia. A afirmação de Malraux é interessante, mas não toca no essencial em Giotto: o olhar. Todas as suas personagens olham umas para as outras, interagem, tal como na Divina Comédia Dante vê as coisas e reage e transmite aquilo que vê. Ambos compõem teatros do olhar. De um olhar novo, cuja modernidade, no entanto, pode ser discutida.


UM PONTO NÃO TEM SOMBRA

                  A menos que outro milagre
fizesse desabar a neve
em pleno verão
(mas não seria milagre,
apenas meteorologia),
nunca havemos de ver
o que os guias turísticos
nos descrevem: os flocos,
leves, de si imponderáveis,
que em lenta espiral morrente
descem da lucarna
do Panthéon
e vêm depositar-se, humilíssimos,
aos pés da urna de Rafael.
Restos junto a restos,
o frio do céu a prosternar-se
diante do indescritível frio
da terra, o génio,
a sua morte.
Curva-te para ver melhor: o epitáfio,
admirável sentença
(tudo soa melhor quando gravado sobre
o mármore).
De que nos vale, porém, imaginar
o que não é, se o sol, vertical,
Solene, se precipita no maior calor
do dia, desenhando a esquadro,
infalível geometria,
um círculo de luz
sobre o imediato centro
                  do lugar dos deuses,
ponto sem sombra
(um ponto não tem sombra)
onde convergem
as almas todas que ali
se juntam,
famintas de História,
ou do rasto dela,
ou do que leram dela
(discurso sobre discurso)
nos apressados roteiros
que distribuem maravilhas
às vezes, até, onde só existem
ruínas de ruínas,
vozes emudecidas
de calor.
É este raio de sol
o mesmo
que iluminou Agripa
e deixou Adriano de fora, na sombra
desse verão.

Inédito de 2014

Ler Inverno 2017
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)