Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

segunda-feira, janeiro 31, 2011

O Nosso Século é Fascista | Neutrais, nós? Não!


Nos finais de 1941, para Salazar, era certo que o III Reich sairia vencedor do conflito mundial iniciado em 1939. Portugal tinha de se preparar, com rapidez, para alinhar com esse pós-guerra. Aos olhos do ditador português, jurista e catedrático universitário, o sonho hitleriano de uma Confederação Europeia podia resumir-se num novo conceito de «organização social e política». Aquele que a potência vencedora, e os seus aliados, expurgadas as nefastas influências dos judeus, do comunismo e da América, imporiam a todos os Estados europeus: uma, muito desejada, «Nova Ordem».
Tome-se este ponto de partida para uma audaz viagem de re-análise das políticas externas e do quadro geral das ditaduras portuguesa e espanhola durante o período mais intenso da chamada «época do fascismo» (1918-1945). Tem por título «“O Nosso Século É Fascista!”: O Mundo Visto por Salazar e Franco (1936-1945)» e saiu pela Campo das Letras. É a edição comercial da tese de doutoramento desenvolvida pelo historiador Manuel Loff durante dez anos e discutida, em 2004, no Instituto Universitário Europeu, em Florença. De leitura imprescindível para quem entenda a urgência de re-arrumar o retrato corrente do Portugal salazarista.
Loff propôs-se uma «interpretação complexa, e não apenas oportunista, do carácter adaptável, camaleónico até» da imagem histórica das duas ditaduras e das suas identidades nacionais. Como o historiador António Louçã o fez com a  polémica questão do ouro nazi, o objectivo é romper com a abordagem historiográfica tradicional e com visões preconcebidas. 
Em cerca de 900 páginas densas, mas acessíveis, repletas de provas documentais, sustenta-se uma tese central. Não, Salazar não dirigiu uma «autocracia benigna» cromaticamente suave. Não, a ditadura fascista portuguesa não foi estrutural e essencialmente «neutral» ou «atlântica». A partir de um binóculo chamado «Nova Ordem», revêem-se antes as «auto-definições» políticas e ideológicas de um «Portugal oficial, salazarista, mais europeísta» (logo, menos colonialista), comprometido com o regime franquista. Um Portugal que se imaginou na vanguarda de uma nova identidade internacional, de apoteose fascista e europeísmo nazi, e que, perante a realidade  contrária, procurou, com sucesso, reescrever a sua memória histórica.

O Nosso Século é Fascista!, Manuel Loff, Campo das Letras, 954 págs.

SOL/ 20-06-2088
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

domingo, janeiro 30, 2011

Woody Allen | Pura Anarquia



 
Aos 71 anos, Allen Stewart Königsberg, o magricela judeu ruivo de Brooklyn que espantava os colegas de escola com truques de cartas e de magia, continua em forma. «Pura Anarquia», agora lançado em Portugal e nos Estados Unidos, é o novo livro de Woody Allen, após mais de 20 anos de silêncio enquanto autor de contos e ensaios de humor. Oito histórias inéditas e 10 antes publicadas na revista «The New Yorker» provam que no centro da sua carreira está a capacidade de produzir textos com indiscutíveis marcas de autor.
Mas de que se compõe o inimitável universo Woody Allen? Antes de mais, é feito de uma curiosíssima conjugação entre uma imaginação e um raciocínio flamejantes, a prática de psicanálise (deitou-se durante 30 anos no divã) e um particular questionamento crítico do mundo enraizado no judaísmo hassídico (os avós eram judeus emigrados da Europa Central). Desde o início, Woody virou tudo do avesso a partir da palavra. Através do uso musculado da linguagem, explorou o choque entre características e realidades opostas ou discrepantes. Fê-lo também consigo mesmo, forjando-se como personagem: fisicamente franzino e socialmente inapto, neurótico, fóbico, mergulhado até ao tutano em vastas referências culturais e cosmopolitas. Nasceu assim um humor depressivo cerebral que, mesmo quando é redundante e repetitivo, não deixa de surpreender.
Grande parte dos textos de «Pura Anarquia» foram escritos para o formato revista ou a partir de pequenas notícias de jornal. É o caso do delirante «Que letal se tornou o seu sorriso, minha doce amiga», uma história de detectives imaginada a partir de uma breve do «New York Times» que relatava o valor «snob» de 220 mil dólares alcançado em 2005 por um quilo e meio de trufa branca vendida em leilão. Woody pega na realidade e contorce-a até fazer sair dela uma refinada sátira à vida contemporânea. O resultado é brilhante também em contos como «A Rejeição» (sobre um casal que vê recusada a entrada do filho no melhor infantário de Manhatan e acaba como sem-abrigo) ou «Sam, fizeste as calças demasiado bem-cheirosas» (paródia à febre do vestuário «hightech», com fatos que cheiram a porco cozinhado duas vezes ou permitem recarregar a bateria do telemóvel).
O humor de Woody Allen nunca é chão ou forçado porque nasce da fonte inesgotável que é o seu ponto de vista original e, sobretudo, crítico e auto-crítico. «Pura Anarquia» está cheio de paródias ao universo do cinema, da filosofia e da literatura, de pérolas como esta: «Não me precipitei a tirar uma conclusão qualquer ‘film-noir’, mas atribuí a ocorrência a um dos milhares de choques naturais de que Shakespeare afirma ser carne herdeira, só não me perguntem qual.»
Às mais comezinhas alusões a consumos e práticas quotidianos são associadas referências intelectuais que, por deslocação, acentuam o burlesco. Ali, Dionísio comeria montes de coisas fritas «se não fosse o seu problema de refluxo», aqui, Nietszche teria escrito um livro de dietas como único pensador ocidental capaz de conciliar «Platão com Pritikin [dieta famosa]», acolá Alma Mahler é a bomba sexual de «Fun de Siècle», uma produção da Broadway, ou «a física, tal como um familiar que nos mexe com os nervos, tem as respostas todas».
Escrito para ser saboreado devagar, este “Pura Anarquia» abre o apetite para a reedição, prevista para breve também pela Gradiva, do esgotado «Prosa Completa», que reúne os três livros de humor de Allen: "Para Acabar de Vez com a Cultura"(original de 1971), "Sem Penas" (1975) e "Efeitos Secundários" (1980).

Pura Anarquia, Woody Allen, Gradiva, 153 págs.

SOL/ 04-08-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

sexta-feira, janeiro 28, 2011

James Meek | Paixões da alma russa


 
Compararam-no a obras de Tolstoi ou Dostoïevski, nomearam-no para o Man Booker Prize e, sobre ele, escreveram generosos elogios nas páginas de crítica literária. O Acto de Amor de um Povo, terceiro romance do inglês James Meek, traz na contracapa e nas badanas o peso (também comercial) desta aprovação quase unânime por parte do meio literário anglo-saxónico. Apesar de grande parte dela se dever à audácia do autor em forjar uma narrativa com sabor de épico russo do século XIX, a aclamação é inteiramente merecida. James Meek inova com especial talento mesmo quando faz glosa a fórmulas anacrónicas e resgata o que ainda pode ser entendido como moderno na herança da literatura russa.
Sibéria, 1919. Samarin é um terrorista evadido de um campo de prisioneiros no Árctico. Ou, pelo menos, é assim que se apresenta quando chega à isolada comunidade de eunucos cristãos de Yazyk, onde se encontra refugiada uma companhia de soldados checos. Surgido da paisagem gelada, inimigo do czar e da antiga Rússia, Samarin será “uma manifestação da raiva actual e do amor futuro”. Consigo trará a sombra da perseguição de um feroz canibal, que o autor transformou numa metáfora das várias formas do amor. Até à chegada do Exército Vermelho, com Samarin caminharão ao longo de cerca de 400 páginas, dezenas de outras personagens e outras tantas peripécias, o líder eunuco Balashov, a pragmática Anna Petrovna e o comandante checo Matula.
Entre o thriller, o romance de ideias e o romance histórico não convencionais, O Acto de Amor de um Povo condensa uma reflexão poderosa sobre os idealismos extremos do ser humano, focando-os na alma russa. Mas não se pense por isso que este é um livro pesadamente sério. Estão lá a submissão ao destino, ao sacrifício e à dor, mas também a revolta, a sensualidade ou a castidade vividas em excesso. Está lá o enigma da simultânea beleza atordoante e frieza agressiva da neve. E, no entanto, Meek consegue transmiti-los com grande vividez nas descrições e um uso inteligente do suspense, nesse tom elevado no qual a literatura russa tratou a grande História a partir de uma linguagem despretensiosa. Para tal terá contribuído a formação do autor como jornalista, correspondente na ex-União Soviética entre 1991 e 1999, actual colaborador do Guardian, da London Review of Books e da Granta. Escrito ao longo de dez anos, O Acto de Amor de um Povo é um romance notável, que cumpre a ambição de actualizar a denúncia dos mestres russos, representada pela citação do escritor Andrei Platonov escolhida para epígrafe: “Ocupado em refazer o mundo, o homem esqueceu-se de refazer-se a si mesmo.”

O Acto de Amor de um Povo, James Meek, Manuel Cintra (trad.), Publicações Dom Quixote, 432 págs.


SOL/ 23-09-2006
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quinta-feira, janeiro 27, 2011

Arturo Pérez Reverte | A batalha do riso


Napoleão Bonaparte, vulgo o «Anão Maldito», o «Pequeno Cabo», o «Petit Cabrão», com o óculo incrustado sob uma sobrancelha, contempla a batalha do topo da colina de Sbodonovo. «Estava ali tal como nas estampas coloridas, tranquilo e frio como a mãe o pariu.» Sonha com a glória da Campanha da Rússia, ainda que, por entre o fumo, descortine a devastação do flanco direito do confronto. Daqui a pouco irá aperceber-se de que, ali, por entre a mancha azul de «feridos e mortos a granel», marcham agora, imperturbáveis na direcção dos canhões russos, os 400 soldados do Batalhão 326 de Infantaria de Linha. São antigos prisioneiros espanhóis alistados à força na Grande Armée dos «anfansdelapatri» e preparam-se para desertar. À distância, tomando-os por heróis, o imperador da França envia em seu socorro uma carga de cavalaria.
O episódio histórico data de 1812. A transposição ficcional, narrada por um soldado anónimo, desbragada de ironia e argúcia, faz o miolo de A Sombra da Águia, pequeno folhetim que Arturo Pérez-Reverte publicou, em 1993, no El País. Não é a melhor, nem a mais ambiciosa ficção do escritor espanhol, mas é uma delícia de leitura. Uma prova condensada da eficácia do seu objectivo: «apagar os limites entre história e ficção até ser incapaz de distinguir o real do imaginado.»
Pérez Reverte (n. Cartagena, 1951), ex-correspondente de guerra, ocupa desde 2002 uma cadeira da Real Academia Española, confortavelmente sentado sobre a glória da série de romances do seu Capitão Alatriste (publicada pela Asa), uma aventurosa recriação do século XVII espanhol ao jeito 'actualizado' de Alexandre Dumas, com vários milhões de cópias vendidas, traduções em 34 países. Em Espanha, cujo meio literário é bem menos preconceituoso do que o português, muitos pares consideram-no o grande contador de histórias da sua geração, exímio a esgrimir a língua e a transformar exigente material documental (quer trate do confronto espanhol com os Aztecas, das campanhas napoleónicas, da batalha de Trafalgar, de caçadores de tesouros ou da Guerra dos Balcãs) em grande ficção sobre a condição humana e a noção de Pátria. A Sombra da Águia mostra-o bem a vencer a batalha de descrever com crueza crítica o absurdo da guerra e do heroísmo histórico através de um riso mordaz, cativante para leitores de todas as idades.

A Sombra da Águia, Arturo Pérez-Reverte, Porto Editora, 120 págs.

SOL/ 18-09-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

terça-feira, janeiro 25, 2011

Martha Gellhorn | A febre da guerra

Durante 60 anos, a norte-americana Martha Gellhorn (1908-1998) foi «um tipo especial de exploradora da guerra». Pioneira entre as mulheres repórteres e os correspondentes de guerra, não lhe interessavam os furos jornalísticos, mas esteve lá, em todos os conflitos importantes entre a Guerra Civil de Espanha, em 1937, e a invasão americana no Panamá, em 1990. Quis ser «os olhos da consciência das pessoas», mas rapidamente admitiu que lhe estava antes reservado o papel de Cassandra. Por fim, concluiu: «A guerra é uma horrível repetição.»
«A Face da Guerra» reúne uma selecção das reportagens mais importantes de Martha Gellhorn. É um testemunho vibrante sobre as funções do jornalismo. Mas é sobretudo um valioso repositório das mais dolorosas memórias do cruento século XX. Memórias do clima de cada época, centradas no dia-a-dia do homem comum, descrito com detalhe e uma extrema honestidade. O enredo é sempre o mesmo; «a acção baseia-se na fome, nos sem-abrigo, no medo, na dor e na morte». Nem por isso deixa de ser único o retrato de cada homem que Gellhorn encontrou sujeito à febre da guerra, provocada pelo vírus dos «interesses vitais do Estado».
Martha nunca acreditou nessa «treta da objectividade dos jornalistas», atributo apenas de quem tenha «o cérebro morto e um coração de pedra». Sempre se declarou parcial a favor dos que sofrem. Nascida na alta sociedade do Missouri, filha de um prestigiado ginecologista e de uma sufragista amiga de Eleanor Roosevelt, foi educada com a mesma liberdade dada aos seus dois irmãos. Aos 21 anos, quando chegou a Paris com o sonho de ser escritora, tornou-se pacifista, depois claramente anti-fascista. Numa carta a uma amiga, explicou o que se seguiu: «Eu, vou para Espanha com os rapazes. Não sei quem são os rapazes, mas vou com eles.»
Loira, belíssima, talentosa e com uma coragem extrema, não é de estranhar que Ernest Hemingway tenha sido apenas uma das suas muitas conquistas amorosas (estiveram casados entre 1940 e 1945). Até aos 89 anos, quando, cancerosa e quase cega, se suicidou com uma cápsula de veneno, Gellhorn viveu uma dedicação total ao ofício de repórter. Provou-o na Madrid sitiada, no desembarque na Normandia, na libertação de Dachau, no Vietname, na Guerra dos Seis Dias ou na América Latina. A guerra, dizia, era onde devia estar.

A Face da Guerra, Martha Gellhorn, Publicações Dom Quixote, 461 págs.

SOL/ 30-06-2007
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segunda-feira, janeiro 24, 2011

México DF | Droga de Balas


Primeira página do primeiro capítulo e o detective Edgar Mendieta, conhecido como ‘o Canhoto’, avisa: «A modernidade de uma cidade mede-se pelas armas que troam nas suas ruas.» A cidade onde o som das balas não dá descanso ao toque ‘Cavalaria’ no telemóvel de Mendieta é México DF (Distrito Federal), capital dos Estados Unidos Mexicanos, a 12ª economia mundial, minada pela violência. O romance chama-se Balas de Prata, é o terceiro do ficcionista mexicano Élmer Mendoza e saiu há pouco pela Quetzal. Em 2008, deu-lhe o Prémio Tusquets e lugar entre os autores da chamada ‘narcoliteratura’ latino-americana.
Mendieta é um depressivo, como tantos outros desses míticos lobos solitários da literatura policial americana, magoado pela perda do amor da sua vida, produto de uma cultura misógina e crente de que «o ser humano é corrupto por natureza». Todavia, Mendieta é um detective ‘moderno’ e, como tal, faz psicoterapia com o Dr. Parra, aprende a lidar com ‘gadgets’ electrónicos, e lê boa literatura (Juan Rulfo incluído, claro), e ouve boa música (algo passada, é certo, mas razoável), e não prega moral nem sequer deseja, de facto, corrigir os desvios do mundo. Não é tanto nele que Mendoza se revela interessante, ainda que o contraste entre o desnorte interno e a capacidade de observação da personagem apoie a técnica de enfoque do autor: dispersiva, sustentada pela velocidade dos capítulos curtos e pelo salto entre registos no mesmo parágrafo, sobrepondo diálogos sem a pontuação convencional, cruzando memórias, monólogos, descrições, acção.
Balas de Prata abre com o homicídio (incluindo uma bala de prata, castração e corte da língua) de Bruno Canizales, um reputado advogado, activista ‘new age’, praticante de travestismo e sexualmente ambíguo. Não será dispiciendo ele ser filho de um potencial candidato à Presidência, bem como o universo das suas ex-namoradas: uma, suicida e, outra, filha do líder do cartel mexicano. A unir tudo no ritmo despretensioso de um bom policial, descobrimos vários outros cadáveres e a mitologia do narcotráfico e da corrupção mexicana, sobretudo a «parte lúgubre de uma cidade decadente». Balas de Prata retrata uma certa face épica mexicana que agora não é mais do que uma narrativa crivada de balas, onde «os assassinos são os únicos que não possuem aptidão para a tristeza».

Balas de Prata, Élmer Mendoza, Quetzal, 239 págs.
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domingo, janeiro 23, 2011

Philip Roth | Implosão


Vigésimo nono título do norte-americano Philip Roth, Indignação confirma uma vitalidade notável num escritor com 76 anos. Após quatro narrativas centradas nos temas da morte e da decadência física e sexual (de O Animal Moribundo, de 2001, até O Fantasma Sai de Cena, em 2007, todos editados pela Dom Quixote), Roth volta a distinguir o perfil de personagens isoladas sobre a tela histórica da América; uma proeza que, sobretudo em A Conspiração Contra a América (2004), lhe valeu aprovação incondicional. Em Indignação, a personagem chama-se Marcus Messner e é um jovem judeu, morto aos vinte anos, cujo fantasma-narrador, condenado a revivê-lo eternamente, nos explica o seu percurso auto-destrutivo. Ainda que algo desequilibrado, o curto romance contém o melhor que Roth ainda nos dá: a versão literária de uma intensa explosão emocional.
A década é a de 50, pouco depois do início da Guerra da Coreia. Marcus frequenta uma universidade em Neward, a sua cidade natal. Filho de um talhante kosher, é um aluno aplicado e um filho exemplar e tem «um grande talento para [se] dar por satisfeito» com a vida. Daí que, quando o pai começa a manifestar um pânico neurótico quanto ao bem-estar do filho (chegando a trancar-lhe a porta de casa), Marcus decide partir para uma universidade distante, onde irá estudar História da América e Administração Pública. No campus Winesburg, no Ohio (uma alusão ao fictício campus perfeito do escritor Sherwood Anderson), apaixonado por uma suicida e em luta com as convenções religiosas, Marcus mostrar-nos-á «a forma terrível, incompreensível, como as opções de uma pessoa, mesmo as mais banais, fortuitas e até cómicas, têm o resultado mais desproporcionado».
O choque com a família, antes idealizada, é o motor do distúrbio. A luta tosca, e até cómica, do protagonista contra uma moralidade opressiva já não tem a força de choque das confissões masturbatórias de Alexander Portnoy (Complexo Portnoy, 1969). Mas Messner é, como Portnoy, um jovem judeu americano comprimido entre dois mundos: o da 'pureza' kosher, reminiscência do velho mundo judeu, e o do ateísmo e erotismo libertários, explosões americanas nos anos 50. Roth mantém-se um mestre inigualável a forçar as personagens à auto-análise e à detonação emocional, satirizando as suas contradições internas e a sua relação com o mundo exterior.

Indignação, Philip Roth, 175 págs.

SOL/ 02-10-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

sábado, janeiro 22, 2011

Carmen Laforet | Tremendo nada

«A verdade é que era tudo tão assustador que ultrapassava a minha capacidade de tragédia.» Andrea chegara à casa da avó, na rua de Aribau, há menos de um ano. Chegara de noite, carregando uma mala muita pesada e expectativas de adolescente da província que vinha estudar Letras na cidade grande. Primeiro, as ruas haviam-lhe parecido luminosas e belas, como as recordava de uma estadia durante a infância. Mas, aos poucos, a esperança começara a ser estranha à sua imaginação, e Barcelona tornara-se uma cidade adormecida, com «candeeiros como sentinelas bêbadas de solidão». Na suja e degradada casa da família, a fome e a loucura instalaram-se como um tumor que progride, «grunhindo como um animal velho». Na Universidade e no círculo de amigos, o tédio pequeno-burguês e os constrangimentos morais e sociais asfixiam os sonhos.
Escrito aos 23 anos da autora, a barcelonesa Carmen Laforet (1921-2004), logo que foi lançado, em 1944, «Nada» esgotou várias edições e conquistou o exigente Prémio Nadal. Hoje, é enquadrado no realismo europeu da década de 40 e na estética tremendista do romance espanhol da mesma época: a de enredos duros e sufocantes, nos quais a descrição muito pormenorizada, distorcidamente crua, dos ambientes e situações salienta a marginalidade ou a incapacidade de acção, o terror existencialista das personagens, marcadas pela opressão e por destinos nefastos. Retrato singular do pós-guerra e dos primeiros anos do franquismo, «Nada» sai agora pela Cavalo de Ferro, numa cuidada tradução de Sofia Castro Henriques e Virgílio Tenreiro Viseu.
Na introdução, o escritor Mario Vargas Llosa descreve «uma prosa entre exaltada e glacial, onde o que se cala é mais importante do que aquilo que se diz e que mantém o leitor submerso numa angústia indescritível, do princípio ao fim». Aos 23 anos, Carmen Laforet atingiu um surpreendente nível de excelência narrativa, ao centrá-la no olhar único da narradora Andrea, no seu «coração aterrado» e na sua angustiada perplexidade perante o exterior. Com notáveis descrições, onde cruza poesia e descrição cirúrgica, trata da desilusão do idealismo adolescente perante o mundo adulto. Andrea, a ingénua clarividente, com a mesma beleza com que o trágico tio Román tocava piano, «sabia apanhar os soluços e comprimi-los numa beleza tão espessa como o ouro antigo».

Nada, Carmen Laforet, Cavalo de Ferro, 265 págs.

SOL/ 16-08-2008
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Murakami | Tóquio em suspensão



«Fazemos o papel de intrusos, invisíveis e anónimos. Olhamos. Escutamos atentamente.» Sem intervir. Nos romances de Haruki Murakami, e sobretudo neste «After Dark-Os Passageiros da Noite» (de 2007), recém-editado pela Casa das Letras, «os nossos olhos transformam-se numa câmara suspensa no ar que vagueia em liberdade». Numa velocidade muito particular, entramos no universo paralelo deste ficcionista japonês (60 anos, filho de um padre budista) que continua a seduzir o Ocidente, e Portugal, onde já vendeu mais de cem mil exemplares.
Murakami cresceu fortemente influenciado pela música e pela cultura ocidentais, com as quais impregnou as personagens dos seus primeiros romances, marcados por um surreal toque de melancolia e solidão. Após uma longa permanência na Europa e nos EUA, e a escrita da obra mais aclamada, «Crónica do Pássaro de Corda», em 1995, iniciou um processo de reaproximação ao Japão. «Outsider», o escritor não esconde identificar-se muito com as suas personagens, nas quais faz agora vibrar uma mistura de realismo físico e de retrato do subconsciente marginal da sociedade japonesa.
Murakami é um autor que causa dependência, mas demasiado irrequieto e próximo da narrativa de entretenimento para o gosto declarado da «gente séria da literatura». A partir de uma estrutura pop, diz, cria conteúdos inimitáveis, de elite. É esse o seu estilo, novo e independente. «After Dark» mostra-o no seu melhor, planando sobre uma Tóquio nocturna, onde navegam passageiros em fuga ao grotesco e conformista sistema-polvo da megalópole diurna.
A acção decorre numa única noite. O espancamento de uma jovem prostituta chinesa num «hotel do amor» une Mari, 19 anos, estudante prestes a partir para Pequim, Takahashi, ex-aspirante a advogado, e Kaoru, ex-lutadora profissional, gerente do hotel. Num quarto (vigiado por outros, ou só por nós?), a bela Eri, irmã de Mari, dorme, há dois meses, um ininterrupto sono profundo. Depois, há uma rede e um homem perigosos. E pontos de vista a pairar sobre a cidade. Murakami a exibir mais uma vez o muro de «papier-mâchê» que separa dois mundos: o da normalidade e o do desvio. E a sua escrita, de novo, como «uma poeira fina, imperceptível, que se espalha em todas as direcções».

After Dark: Os Passageiros da Noite, Haruki Murakami, Casa das Letras, 228 págs.

SOL/ 10-01-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Dennis Lehane | Palavra de medo


Tememos mais o que imaginamos ou aquilo que vemos? Shutter Island, sétimo romance do norte-americano Dennis Lehane (n. 1965), publicado em 2003 (em Portugal em 2005, agora reeditado, também pela Gótica), é uma obra-prima de construção literária de uma atmosfera sufocante de terror psicológico. Quem leu o livro, percebe que a adaptação ao cinema por Martin Scorcese, em cartaz, não poderia fazer-lhe jus.
Shutter Island estabeleceu o sucesso de Dennis Lehane, após cinco policiais da dupla de detectives Patrick Kenzie e Angela Gennaro (um deles, Gone, Baby, Gone, adaptado ao cinema por Ben Affleck, em 2007) e do muito premiado Mystic River, no cinema em 2003, por Clint Eastwood. Em 2004, já não foi surpresa encontrá-lo entre os guionistas de uma das melhores séries televisivas da década, The Wire, da HBO. Lehane, filho de imigrantes irlandeses, cresceu na tumultuosa Boston dos anos 70 e é talvez daí que lhe vem o dom de criar enredos negros a partir do drama e sofrimento individual das personagens.
Teddy Daniels era criança quando pela primeira vez enjoou no mar, e viu a ilha de Shutter, ao largo de Boston. Então, o pai disse-lhe: «Por vezes, há movimento, e só o sentimos quando ele começa a subir por nós acima» — o que se aplica também ao terror que Lehane manobra sob a rapidez e clareza de cada palavra. Muitos anos depois, em 1954 e plena histeria macartista, o 'US marshal' Teddy chega à ilha com o colega Chuck para investigar a fuga de um dos detidos do hospital-prisão ali instalado. Rachel Solando, viúva de guerra, afogara os três filhos e tornara-se um dos 66 criminosos altamente violentos ali controlados através de controversos e ilegais métodos psiquiátricos. Na mensagem cifrada que deixa antes de se «evaporar pelas paredes», está a chave do romance. Quem é o paciente 67?
O enigma dura quatro dias e, como o furacão que entretanto assola a ilha, desloca-se para os motivos e traumas de Teddy (viúvo, ex-combatente na Segunda Guerra, um dos libertadores de Dachau). Aqui, as suspeitas são delírios insanes. A imprevisibilidade é total e atinge o leitor, preso numa metáfora sobre a margem estreita entre a loucura e a razão e o potencial criminoso que existe em cada ser humano. Shutter Island é uma armadilha, urdida com extremos detalhe e perícia.

Shutter Island, Dennis Lehane, Gótica, 312 págs.
SOL/ 13-03-2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

terça-feira, janeiro 18, 2011

Philip Roth | Judeu, eu?


Saiu há 41 anos. O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, ainda é uma leitura de choque.
No consultório de um muito silencioso psicanalista judeu, Alexander Portnoy, 33 anos, amarrado à sua própria consciência judia, explora as «auto-estradas da vergonha, da inibição e do medo» que lhe atravessam o corpo, «como um autêntico mapa de estradas». Da desesperada tentativa de fuga à cartografia que herdou da família resulta um longo monólogo, no qual se liberta e expõe «a líbido deste bom rapazinho judeu», o grande masturbador. Aquilo de que sofre será baptizado pelo clínico como «complexo de Portnoy»: «Perturbação na qual profundos impulsos éticos e altruístas entram em perpétuo conflito com desejos sexuais descomedidos, muitas vezes de natureza perversa». O romance homónimo, escrito por Philip Roth quando tinha 36 anos (hoje tem 77), é um marco do humor e do sexo na literatura norte-americana. Representa também a emancipação e assimilação dos judeus americanos filhos da geração da Shoah. Pela Dom Quixote, sai uma nova tradução (a última data dos anos 80).
Logo na ficção de estreia, Goodbye, Columbus and Five Short Stories (de 1959, ainda por traduzir, aliás como a maioria dos títulos de Roth anteriores a 1995), a sátira semi-autobiográfica do escritor ao universo judeu dos subúrbios de NY (na cidade-natal de Newark) enfureceu rabinos e comunidades judaicas. Ainda assim, nada os preparara para o choque d'O Complexo de Portnoy, em 1969. Sem freios, delirantemente cómico, Portnoy/Roth apresenta a sua fúria masturbatória como resposta directa ao condicionamento familiar, centrado na moral e na culpa, na chantagem afectiva, na típica conjugação judia de orgulho e autodepreciação, obstinação e vitimização. Grita: «Sou o filho da anedota de judeus - só que não é anedota nenhuma!» Entalado entre a consciência e a libido, descreve, numa magnífica e indecorosa coloquialidade, a infância e adolescência (as manobras da mãe judia manipuladora, as somatizações do pai), a rejeição dos códigos religiosos e da herança da diáspora, as aventuras eróticas adultas. Escudado na afirmação psicanalítica do poder do Id, Roth explode em sarcasmo e agressividade sexual. O Complexo de Portnoy relata uma emancipação desesperadamente humana, das mais cómicas e provocatórias alguma vez descritas na literatura.

O Complexo de Portnoy, Philip Roth, Dom Quixote, 266 págs.

SOL/ 11-06-2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

segunda-feira, janeiro 17, 2011

Norman Mailer | A infância de Hitler


Para muitos, Norman Mailer, apesar de 59 anos de uma carreira inscrita na história da literatura norte-americana, não passa de um monstro de prosápia e exibicionismo. O seu deslumbramento consigo mesmo começou logo após o sucesso do romance de estreia («Os Nus e os Mortos», 1948) e levou-o ao limite de se declarar apto para desafiar o legado de Dostoievski, Marx, Joyce, Freud, Stendhal, Tolstoi, Proust, Faulkner ou Hemingway (em «Advertisements for Myself», de 1959,  considerado pela crítica um dos seus três melhores livros, a par de «Os Exércitos da Noite», 1968, e «O Canto do Carrasco», 1979).
Acrescente-se uma biografia vertiginosa, que inclui episódios como o apunhalamento da segunda das suas seis mulheres, uma candidatura falhada a «mayor» de Nova Iorque ou a campanha pela libertação de um assassino (Jack Abbott). E destaque-se que Norman Kingsley Mailer, nascido em 1923 em New Jersey, depois criado como judeu de classe média em Brooklyn,  já abordou quase todos os temas (de guerra, sexo e crime a Jesus Cristo, de Marilyn Monroe ao boxe). Sem medo de se expor, o escritor preza acima de tudo aquilo que entende ser a verdade. Nos seus livros, onde a realidade histórica serve uma tese ou um enredo, os conceitos de bem e de mal são esventrados até ao limite, com limpidez e comiseração. O que leva leitores e críticos a amá-lo ou a odiá-lo, com poucos matizes  intermédios.
Às livrarias portuguesas chega agora «O Fantasma de Hitler» («The Castle in the Forest») o novo romance, publicado em 2006 após dez anos de silêncio. A figura central é o ditador Adolf Hitler, que Mailer aborda a partir das raízes da sua personalidade na infância e na ascendência familiar.
O narrador é um demónio que, até ao final da Segunda Guerra, ocupou o corpo de Dieter, um oficial de uma secção especial das SS. Incumbido de determinar se o Führer era «um incestuário em primeiro ou em segundo grau», Dieter vai mais longe nas investigações. Através delas, o relato do demónio esmiuça a biografia dos avós e sobretudo do pai de Hitler, o brutal Alois Schicklgruber.
Nem sentimental, nem judicativo, Mailer mergulha a fundo no universo do monstro que fez eclodir a banalidade do mal no século XX. Fá-lo a partir da trivialidade da condição humana dos seus familiares, e com a audácia permitida apenas a um monstro da literatura.

O Fantasma de Hitler, Norman Mailer, 460 págs.

SOL/ 08-09-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

domingo, janeiro 16, 2011

Chico Buarque | A vida num segundo



Em frente de um pelotão de fuzilamento, Benjamim Zambraia recorda toda a sua vida num segundo. Há um filme que desfila na venda dos olhos, «as imagens ricocheteando no bojo do seu crânio». Ex-modelo fotográfico, Benjamim acredita que, desde a adolescência, tudo o que faz é registado por uma câmara invisível. Ele é o herói do segundo romance, homónimo, do músico e dramaturgo paulista Francisco Buarque de Hollanda (n. 1944, vulgo Chico Buarque), datado de 1994 e adaptado ao cinema, em 2004, sob direcção da brasileira Monique Gardenberg. Um romance com uma inventividade muito particular, a do tom e estilo de narração simbólica e cruamente lírica que deram a Chico Buarque dois prémios Jabuti (com a estreia, Estorvo, em 1991, e Budapeste, 2003) e o colocam hoje, sem dúvidas, entre os melhores autores brasileiros (sobretudo, depois de Leite Derramado, o último romance, de 2009, aquele com ideia e estrutura mais depuradas).
A história de Benjamim «chicoteia a esmo» quando trata do seu passado com Castana Beatrix, paixão antiga, menina rica tornada militante política, morta em condições misteriosas. Corrói-o ainda a culpa neste desfecho. Daí que entre numa busca obsessiva de memória e redenção assim que conhece a jovem corretora Ariela Masé, extremamente parecida com Castana. O narrador esclarece: «Naquilo que temos por reminiscências talvez esteja um destino que, com jeito, poderemos arbitrar, contornar, recusar, ou desfrutar com intensidade redobrada.» Como numa espiral, Benjamim vê-se desfilar como um duplo num filme onde, quase no presente, procurou corrigir o passado. Confuso? Sim, um pouco, e ainda mais se juntarmos os movimentos paralelos das outras personagens (entre elas, o candidato Alyandro, «companheiro xipófago [siamês] do povo»).
Mas esse é um dos charmes do escritor Buarque: a capacidade de criar estranheza enquanto descreve os movimentos cruzados, dispersivos e desorientados das personagens nos tempos e no espaço da brutalista e enigmática realidade da moderna sociedade urbana brasileira. O passado, as raízes, o subúrbio, a injustiça social, o crime, o amor, a política, todos os elementos se reúnem num sentimento opressivo quase físico. Buarque cria uma imagética e um ritmo muito particulares; quase uma canção desesperada.

Benjamim, Chico Buarque, Dom Quixote, 167 págs.

SOL/ 18-06-2010
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sexta-feira, janeiro 14, 2011

Gonçalo M. Tavares | Ler o círculo


E se alguém lhe propuser ler um texto em círculos? Aceitar a sua estrutura circular - que afinal se revelará elíptica - e rodar dentro dela como um cão preso a uma estaca. Talvez como esse cão, a sua leitura enlouqueça, ou seja, perca o sentido, por não poder desviar-se; ou talvez se fortaleça, concentrando-se no centro, a estaca, e nas possibilidades de todas as pequenas variações de movimentos e ritmos à volta dela. Matteo Perdeu o Emprego, novo título da série «Os Cadernos de Gonçalo M. Tavares» (Porto Editora) é uma narrativa-rotunda. Ao contrário dos senhores da série «O Bairro», as vinte e quatro personagens deste livro (é referido que a inspiração para os nomes partiu de um trabalho do fotógrafo Daniel Blaufuks, sem se esclarecer a ligação) não incitam a um exercício lúdico. Apresentadas numa série de pequenas histórias ligadas entre si, move-as uma lógica ilógica que nunca termina bem, e jamais termina, desdobrando-se na narrativa seguinte. No pósfácio intitulado «Notas sobre Matteo perdeu o emprego», Gonçalo M. Tavares regista uma muito livre abordagem filosófico-especulativa às histórias antes narradas.
Nabokov defendeu que todas as grandes narrativas são contos de fadas. Gonçalo M. Tavares, na sua dinâmica infiliável em qualquer corrente da literatura portuguesa (antes no expressionismo alemão), nega em absoluto a afirmação. Numa recente e muito esclarecedora entrevista a Pedro Mexia (no Ípsilon, a propósito de Uma Viagem à Índia) afirma: «O espaço da literatura pode ser tudo e mais alguma coisa, mas antes de mais é um espaço de vigilância à distância, de uma atenção constante. É um pouco como estar a repetir constantemente: atenção!, não te esqueças do século XX, não te esqueças do século XX.»
Desinteressado do amor romântico, empenhado numa epopeia mental (quase nada física) assente num pessimismo mais ontológico que antropológico, o escritor explora o acidente da personagem através de um olhar epistemológico. Numa «escrita instintiva» e com «frases exactas e ambíguas, ao mesmo tempo, o que é um pouco paradoxal». Rejeitando a fantasia, M. Tavares elabora no paradoxo, na própria mecânica de uma ginástica mental cujo objectivo, coerência  e perdurabilidade (28 títulos publicados desde 2001) só serão correctamente apreendidos daqui a algumas décadas. Até lá, cabe a cada leitor julgar lúdica, críptica ou intelectualmente estimulante cada proposta de M. Tavares.

Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavares (texto), Diogo Castro Guimarães e Luís Maria Baptista (ilustração fotográfica). Porto Editora, 213 págs.

LER/ Dezembro 2010
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quinta-feira, janeiro 13, 2011

Ceridwen Dovey | O Barbeiro, o Chef e o Artista



Entre o mar das novidades editoriais surgidas no final de 2008,  chamada de atenção para um romance excepcional. Foi com este «O Barbeiro, o Chef e o Artista» (com o título original «Blood Kin») que a antropóloga sul-africana Ceridwen Dovey (n. 1980) se estreou na ficção em 2007. Lançado em simultâneo no mercado de língua inglesa e com direitos vendidos em tempo recorde para cerca de 14 países, o romance cativou de imediato a crítica, surpresa com a sua originalidade temática e estilística.
Com apenas 197 páginas, «O Barbeiro, o Chef e o Artista» é uma proeza de argúcia e simplicidade. O enredo parte de um golpe de estado ficcional, na sequência do qual são feitos prisioneiros o barbeiro, o «cozinheiro-chef» e o retratista do Presidente deposto. Durante o tempo da ficção, eles serão mantidos juntos em cativeiro, num palacete afastado da cidade (a Residência de Verão presidencial), sob vigilância de guardas, às ordens de um Comandante. Construída como um prisma e dividida em três partes, a narrativa, engenhosa, parte da sucessão de capítulos-relato da perspectiva particular das três personagens centrais (e, no final, de outras suas satélite) sobre os acontecimentos presentes e passados. Embora o tom do livro apresente características comuns nestes relatos, cada um deles expõe uma sensibilidade particular. No centro, estão sempre as relações de poder, manifestas na sexualidade e em situações onde se fundem a subserviência e a cumplicidade.
A expressão é do escritor e jornalista Fernando Dacosta e resume a essência tratada por Ceridwen Dovey: «a volúpia do poder». Ambição, corrupção e luxúria em doses q.b.  Sensibilidade estética segura e precisa, quer se trate de sustentar que o cabelo, a comida ou a auto-imagem são extensões da verdade existencial de cada um, ou se explorem os bastidores de maquinações políticas. Como numa casa-prisão de vidro, as personagens vão-se gradualmente «libertando» e cedendo às pulsões mais inconfessáveis e subversivas. Em nome da sobrevivência? Também. Mas, sobretudo, como manifestação de um poder brutal, revelador de todo o ser humano, e que Ceridwen expõe com a delicadeza radical de um cirurgião. Kafka ou Orwell não desdenhariam andar por estas páginas, nem a surpresa final que elas reservam para o leitor.

O Barbeiro, o Chef e o Artista, Ceridwen Dovey
Civilização, 197 págs.

SOL/ 31-01-2009
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quarta-feira, janeiro 12, 2011

Salwa Al Neimi | O corpo escondido


Perguntamo-nos cada vez mais, após o 11 de Setembro: o que conhecemos nós, ocidentais, do Oriente, dos árabes, do universo muçulmano? Quase nada. Talvez a franqueza desta resposta contenha até o segredo para qualquer espécie de entendimento. Em A Prova do Mel, cuja versão francesa saiu em 2008 e é agora traduzida pela Teorema, Salwa Al Neimi, poetisa síria radicada em Paris, acrescenta um dado importante à questão. Apresentado como um romance erótico, o livro desvenda o sexo no mundo árabe como tabu e jogo de dissimulação para consumo próprio. Será, pois, um segredo dentro do segredo, guardado a sete chaves na intimidade mais profunda de cada árabe e defendido pela própria censura da linguagem.
A narradora, identificável com a autora e aqui referenciada como X, trabalha na biblioteca de uma universidade e torna-se uma «perita clandestina» nos clássicos eróticos árabes. O audaz relato das suas investigações literárias cruzadas com as pessoais nasce de uma dissertação encomendada para um colóquio nos EUA, que não chegará a acontecer. Nas matérias sexuais, X toma-se a si mesma por «único modelo», «sem necessidade de guia», «sem necessidade de uma fatwa para [se] entregar aos homens que [a] cativam». A intensa relação com um homem, o Pensador, libertou-a e ao seu corpo. X está convicta de que, hoje, a verbalização dos actos e dos pensamentos «em palavrões» é o único verdadeiro interdito dos árabes à plena vivência sexual. De resto, quer acreditar que ainda sobrevive a noção original: «O sexo é uma graça divina.»
«Entre os Árabes, o desejo era todo-poderoso. O universo dos apaixonados submetia-se-lhe. O desejo obedecia tão-só às suas próprias leis, válidas para os homens e para as mulheres, que nem casamento nem filhos podiam modificar. O guião estava escrito somente para os dois heróis.» X e o Pensador são os heróis anti-convencionais deste enredo-revelação que escandalizou o mundo e a literatura árabes modernos.
Várias referências às obras clássicas sustentam a defesa de X do regresso às origens, às matérias sexuais lidas e tidas como aprendizagem fundamental («a palavra é uma componente da energia sexual»). Através do percurso erótico, talvez não tão excepcional, de uma mulher árabe, Salwa Al Neimi assina um importante documento sociológico e, em vários momentos, um intenso manifesto poético.

A Prova do Mel, Salwa Al Neimi, Teorema, 111 págs.

SOL/ 07-08-2009
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terça-feira, janeiro 11, 2011

Alesteir Crowley & Pessoa Magick


Reedita-se a compilação relativa ao encontro entre Fernando Pessoa e Alesteir Crowley. Registo de uma união insólita e de uma novela policiária incompleta.
Primeiro editado pela Hugin em 2001, Encontro Magick seguido de A Boca do Inferno é republicado pela Assírio & Alvim. São 569 páginas, compiladas por Miguel Roza, sobrinho do modernista português, com leitura e fixação do texto por Richard Zenith. Da primeira parte, consta a organização cronológica de toda a correspondência, notícias da época e notas conhecidos sobre o encontro, que durou dois anos (1929-31), entre Fernando Pessoa e Alesteir Crowley, acompanhados por fac-símiles e informadas e esclarecedoras contextualizações e considerações de Miguel Roza. De A Boca do Inferno, «romance policiário», à la Freeman Wills Crofts, escrito por Pessoa a partir  do caso do suicídio forjado do mago satânico inglês, opta-se por uma entre as várias versões dactilografadas por Pessoa, ainda assim todas incluídas nesta edição. O volume, o mais completo sobre a inusitada associação Pessoa-Crowley/mago branco-mago negro, permite-nos igualmente descobrir aquilo a que Yvette K. Centeno chama «o humor quase pantagruélico (que também existia...) da época; e a curiosidade insaciável de formas de saber que de tão heterodoxas poderiam levar a exageros condenáveis».
Faça-se a distinção importante entre Pessoa o estudioso «esoterólogo» e Pessoa eventual praticante, ou seguidor, «esoterista». Pessoa esotérico, ocultista, neopagão, médium, permanece um enigma, mas é inquestionável a abrangência de vinte anos de pesquisa ensaística espiritual, a sua Procura da Verdade Oculta (António Quadros). Nela, o encontro com Crowley pode não passar de um fait divers importante para os biógrafos; o momento de arranque para a grande fase dos textos iniciáticos, 1932-33. Pessoa procura Crowley através da Mandrake Press, mas é esquivo desde os primeiros contactos com Mestre Therion («a Besta» ou «666). É Crowley, arruinado e desacreditado, quem tem mais interesse no encontro em Lisboa em Agosto de 1930, depois em forjar o pseudo-suicídio, que visava a obtenção de algum lucro. O resultado, para Pessoa, é sobretudo um poema excepcional (O Último Sortilégio), um episódio de maquinação e humor raros e uma novela incompleta e pouco mais do que interessante. Pela Assírio & Alvim, sai também agora a segunda edição, revista e aumentada, de Fernando Pessoa Empregado de Escritório, de João Rui de Sousa.

[Miguel Roza (compilação e considerações), Encontro Magick seguido de A Boca do Inferno Fernando Pessoa Alesteir Crowley. Assírio & Alvim, 569 págs.]

LER/ Março 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

domingo, janeiro 09, 2011

As modas do pecado


História do Pecado, de Oliver Thomson, editado em 1993 e agora pela Guerra e Paz, propõe uma leitura da evolução dos códigos morais difarçada de história do pecado. Apoiada em exemplos de quase todas as eras, sociedades e culturas, a tese deste historiador britânico (eclético, após a formação no Trinity College, ensinou História e Comunicação Social e, hoje, é director executivo de uma agência de publicidade) é a de que a moral sempre dependeu de modas condicionantes dos costumes dos homens. Mas como justificar que se identifiquemcas modas do «pecado» ainda antes de ele surgir como invenção judaico-cristã? Thomson procura, sem o conseguir, uma teoria geral para um dos mais caprichosos e fugidios objectos de estudo. Dividido em três partes, o livro termina com o desejo de que a máxima in medio stat virtus (no meio está a virtude) regule os códigos morais do futuro, assentes mais na compaixão do que no espírito competitivo, no complexo de inferioridade, na superstição e preconceito e, acima de tudo, no medo. Conclusão subjectivíssima? Com certeza que sim. Mas, até lá, o manancial de informação é considerável e desculpa em parte a derradeira lição de moral imposta.
Oliver Thomson indica como obra pioneira de «uma visão histórica alargada sobre os altos e baixos das modas morais» a History of European Morals from Augustus to Charlemagne, de E.H. Lecky (1906). Refere Philippe Ariès e Georges Duby (História da Vida Privada) e avança para uma introdução alargadíssima: «A Natureza da Moral». Os primeiros capítulos, muito especulativos, tratam da génese da moral, das suas causas, matéria-prima, extremos e desvios, características, mecânicas de pressão, motivações e sanções ou da sua relação com o período formativo e os ciclos de vida humanos. Logo nas primeiras páginas, é evidente uma ambição só concretizável na multidisciplinariedade e a, contraditória, ausência, em todo o livro, de cruzamento ou incorporação de algumas abordagens mais recentes da sociologia, da psicologia e da psicanálise, da teologia, da pedagogia, das biociências ou da filosofia (como ignorar, por exemplo, as teses de Hannah Arendt, John Rawls ou Jacob Taubes?). Thomson é explícito no prefácio quando diz preferir os «historiadores de várias gerações passadas», adeptos de «uma visão ampla da história», aos «académicos da actualidade», defensores da «estatística e da objectividade». Aconselha-se o leitor incapaz de complementar adequadamente a leitura a passar de imediato à segunda parte, essa sim, «Uma História do Pecado».
A ordem é cronológica e o texto uma sucessão de exemplos para estados e estádios da relação do homem com os códigos morais. A Thomson interessa-lhe o «progresso na história moral». Contudo, é mais interessante optar pela complementariedade livre e quase aleatória entre os dados. Da importância do cuidado com os mortos na vida «feia, bruta e curta»(Hobbes) do homem de Neandertal à convicção dos guerreiros japoneses de que «a vida não vale mais do que uma pena». Do significado religioso da prostituição nos templos da Babilónia à violação do código de cavalaria (um caso com a mulher de um vassalo) que fez cair o rei João de Inglaterra e surgir a Magna Carta. Do sadismo extremado de Ivan, o Terrível à eugenia nazista. Da amoralidade da vida florentina à ríspida censura moral dos Calvinistas. História do Pecado é uma leitura curiosa se a isentarmos de pretensões científicas e a considerarmos como um códex de enredos com o mal por protagonista que se metamorfoseia nas mais diversas formas. 

LER/ Dezembro 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

Salman Rushdie | Do lado de lá




Luka e o Fogo da Vida é a segunda incursão de Salman Rushdie na literatura infanto-juvenil. Sequela de Harun e Outras Histórias (1990), o romance oferece-nos a mesma alegria provocatória e vibrante, mas despreocupada, que, em 1989, motivou uma fatwa contra o escritor (n. 1947, Mumbai). Na escrita, como nas fotografias, Rushdie gosta de exibir um meio-sorriso irónico, de bem-disposto desalinhado. Coincidentes com esta personalidade são também a referência a O Feiticeiro de Oz como primeira influência literária e o facto de o autor ter decidido criar a primeira história infantil logo após o furacão de Os Versículos Satânicos.
Se, em Harun, escrito para o primeiro filho, o enredo e cenários se baseavam no realismo mágico e numa inspiração mais tradicional (homenagem a As Mil e Uma Noites), em Luka, publicado em 2010 para o segundo filho (de 12 anos, a mesma idade do protagonista), Rushdie reactualiza as estratégias das Alice de Lewis Carrol para falar da contemporaneidade. Aproximando-se delas, ele quer vencer as dinâmicas dos videojogos.
Idealmente, este é um livro para pais e filhos. Na aventura de Luka (irmão mais novo de Harun), pelo Mundo da Magia, as lições de vida, história e filosofia servem-se com despretensiosa erudição e uma adorável ternura. Luka, o miúdo canhoto, filho tardio, pretende tirar o pai, Rashid, contador de histórias profissional, das garras do Grande Sono (espécie de coma, prenúncio da Morte) e, em simultâneo, voltar a dar forma humana ao seu urso de estimação (chamado Cão) e ao seu cão de estimação (chamado Urso). Como nos vários níveis de um videojogo, esperam-no múltiplos desafios e peripécias para ultrapassar o Mar das Histórias, o Rio do Tempo ou o Lago da Sabedoria, atingir o cume da Montanha do Conhecimento e, supostamente, roubar o Fogo da Vida.
Pelo caminho, Luka aprende a sabedoria da realidade da vida (aqui, para lá dela, só há o Nada e Ninguém). Encontra-a reflectida num mágico mundo paralelo, ocultado durante milhares de anos por «uns misteriosos desmancha-prazeres embuçados», intitulados «Aalim ou ilustrados». A linguagem é cuidadíssima, há trocadilhos, lengalengas, canções e poemas, pequenos desafios lógicos e «PDCE (Processos Demasiado Complicados Para Explicar)». Rushdie escreveu uma inteligente fábula de «supercolossal ultraproeza» para dizer que as histórias são «a identidade, o sentido e a força vital» do Homem.

Luka e o Fogo da Vida, Salman Rushdie. Tradução de J. Teixeira de Aguilar, Dom Quioxote, 228 págs.


LER/ Dezembro 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

sexta-feira, janeiro 07, 2011

O homem-termómetro - Um Livro Por Dia


Pensar o cérebro

Mostram-lhe uma escova de dentes, uns óculos de sol, um garfo, um saleiro ou uma vela. Invariavelmente, ele responde: “É um termómetro, serve para medir a temperatura.” Aos 73 anos, o corpulento e triste Sr. Mathieu Z., ex-desenhador técnico, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) e perdeu a capacidade de reconhecer os objectos que, no entanto, consegue utilizar no seu dia-a-dia. O que se terá quebrado no interior do seu cérebro?
Em 2004, apresentando este caso clínico como numa espécie de investigação policial, o neurologista francês Laurent Cohen escreveu O Homem-Termómetro. O livro, agora editado na colecção “Mente Aberta” da Gradiva, é um guia de divulgação acessível para perceber o cérebro em peças soltas.
Aqui não se trata dos avanços da neurobiologia do comportamento humano, em que se tornaram famosas as obras de António e Hanna Damásio, nem das sínteses contemporâneas para o funcionamento global do cérebro. O que interessou Laurent Cohen e poderá interessar os leitores é a apresentação parcelar de elementos que fazem do cérebro uma orquestra genial. Sem o brilho das obras de Oliver Sacks (O Homem Que Confundiu a Mulher com um Chapéu, Despertares ou Perna Para Que te Quero, editados pela Relógio D’Água), mas com a virtude de possuir uma estrutura fluida e didáctica, O Homem-Termómetro propõe uma viagem através da história da neuropsicologia.
O assunto é  cada vez mais premente. Com o aumento da esperança média de vida, cresce também o número de vítimas de lesões cerebrais. Tal como no caso autobiográfico descrito pelo escritor José Cardoso Pires em De Profundis, Valsa Lenta, muitos são aqueles que perdem total ou parcialmente a capacidade de interpretar os sinais visuais e da linguagem. Foi a partir da análise destas lesões e patologias que a neuropsicologia avançou na revelação das estruturas mentais. E é seguindo o diagnóstico do Sr. Z., e expondo casos similares, que Laurent Cohen nos narra esse percurso.
Embora apresente “um quebra-cabeças inacabado”, o livro deixa um alerta: é preciso que as vítimas de AVC ou traumatismo craniano sejam entregues com a maior rapidez a equipas médicas. Porque, se hoje é ainda impossível substituir regiões cerebrais destruídas, muito se faz já para contornar as sequelas. A par da biotecnologia e da genética, o estudo do cérebro é um dos campos mais promissores da actual investigação científica.

O Homem-TermómetroLaurent Cohen, Gradiva, 208 págs.

SOL/ 07-10-2006
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quinta-feira, janeiro 06, 2011

J. M. Coetzee - Um Livro Por Dia

Um país-prisão

África do Sul,  1972. Aos 32 anos, Michael K é um peão «numa guerra em que não [ocupa] lugar nenhum». Com o seu rosto bizarro (nasceu com o lábio e as narinas deformados), parece «um insecto que acabou de cair». Como o príncipe Mischkin, de Dostoievski, ele é o idiota cujas consciência e inocência permitem a revelação da verdade de uma história. A história, neste caso, é a da sociedade do regime apartheid (abolido em 1990) que John Maxwell Coetzee (Nobel da Literatura 2003) comparou a uma prisão. Uma paranóica paisagem humana de sofrimento e injustiça à qual o escritor sul-africano dedicou 38 anos de carreira literária e 17 romances  (o último, «Diary of a Bad Year», acaba de ser publicado em língua inglesa). Nas livrarias portuguesas está agora disponível este «A Vida e o Tempo de Michael K», de 1983, distinguido com os importantes Prémio Booker e Fémina Étranger.
Nestas páginas não sabemos quem é negro ou branco, quem tem ou não o poder, nem sequer o mapa exacto do trajecto de Michael K em fuga à violência da Cidade do Cabo. Porque o único ideal deste herói é «viver à velha maneira, flutuando no tempo, acompanhando as estações da natureza, não [se] interessando, mais do que um grão de areia, em modificar o curso da História».
Michael K cresceu num orfanato, foi jardineiro num parque público e, quando a mãe ficou gravemente doente, decidiu conduzi-la num periclitante carrinho improvisado de regresso à sua terra natal. A viagem far-se-à através de «meio mundo de raízes arrancadas, de terra húmida e de esquisitos cheiros fétidos», em fuga aos postos de fiscalização, ao frio e à fome. Após a morte da mãe, Michael K decide continuar na direcção desse «campo» idealizado. Ali, por algum tempo ele será um Robinson Crusoe, ligado à terra, longe da civilização. Até que o internam num acampamento de refugiados, onde um médico (narrador da segunda parte do livro) acompanha a sua fuga final até «um sagrado e fascinante jardim».
J.M. Coetzee é um dos mestres contemporâneos na criação de ficções centradas num universo histórico e político muito particular mas dotadas de uma misteriosa dimensão universal, que as transforma em distopias intemporais. Para muitos críticos, ele é um descendente directo de Kafka ou Beckett, compondo fábulas modernistas assentes no absurdo da sujeição do homem a sistemas repressivos, cruéis e impessoais.
Para a leitura coetziana da nova ordem social na África do Sul aconselha-se a leitura de «Desgraça», de 1999. Para melhor entendimento biográfico e teórico do autor, sugere-se, respectivamente, o livro de memórias «Boyhood: Scenes from Provincial Life» (1997)  e o romance «Elizabeth Costello» (2003). «A Vida e o Tempo de Michael K» é um clássico Coetzee, sem nenhuma palavra supérflua e com o apartheid como cenário de inferno nessa mesma África do Sul cuja espectacularidade da paisagem é descrita com paixão. Como parábola do ser humano em luta contra a monstruosa crueldade de um destino através da ligação ao cio da terra, Michael K é uma personagem inesquecível.

A Vida e o Tempo de Michael K, J.M. Coetzee, Publicações Dom Quixote, 209 págs.

SOL/ 24-11-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Os Melhores de 2010

Adoecer, Hélia Correia, Relógio D’Água, 303 págs., 15.14€
Fulgurante «encontro pessoal» da escritora com uma personagem histórica e uma história de amor. A modelo, pintora e poeta Elizabeth Siddal e os pré-rafaelitas, na Inglaterra do séc. XIX, renascem neste romance biográfico sensível.

Uma Viagem à Índia, Gonçalo M. Tavares, Caminho, 484 págs., 25€
Ambiciosíssimo romance-poema para a viagem iniciática de uma personagem, Bloom, «um individualista do século XXI», à procura de novas índias. Consagra em definitivo o talento de um autor português já internacionalizado.

O Livro da Consciência, António Damásio, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 437 págs., 23.90€
O neurocientista António Damásio quis «começar de novo» as suas investigações sobre cérebro e consciência. Esta é a actualização de uma viagem revolucionária até à mente, ao «eu», às emoções e sentimentos, à arte e à ciência.

História da Vida Privada em Portugal: A Idade Média, Bernardo Vasconcelos e Sousa (coord.), Círculo de Leitores, 512 págs., 33.30€
Primeiro  volume da primeira sistematização e síntese da história da nossa vida privada. Dirigido por José Mattoso, o projecto reúne quarenta colaboradores a espreitar pelo buraco das fechaduras dos portugueses da Idade Média até hoje.

Peregrinação de Emmanuel Jhesus, Pedro Rosa Mendes, Dom Quixote, 346 págs., 17.06€
Como na estreia, Baía dos Tigres, o escritor e jornalista usa o romance como observatório humano e histórico de matriz indefinível. Desta vez, é Timor, em 1999, fusão de caos e mitos, denunciada no insólito destino de uma personagem.

Verso e Prosa, Mário de Sá-Carneiro, Assírio & Alvim, 669 págs., 28.01€
Com edição de Fernando Cabral Martins, eis «o que de mais marcante» criou um dos maiores renovadores da poesia portuguesa do séc. XX. Mário de Sá-Carneiro, entre simbolismo e vanguarda, a «viajar outros sentidos, outras vidas».

O Olho de Hertzog, João Paulo Borges Coelho, Leya, 442 págs., 15.14€
Prémio Leya 2009 e sexto romance do escritor moçambicano, segue um oficial alemão em Moçambique, no rescaldo da Primeira Guerra. A trama, complexa, une referências históricas reais a uma sólida construção ficcional e de personagens.

Clarice Lispector, Uma Vida, Benjamin Moser, Civilização, 626 págs., 20.99€
Primeira tentativa conseguida de descrever o mistério de «uma mulher indescritível»: a esfíngica e lendária Clarice. A biografia de Benjamin Moser revela em privado e redimensiona uma portentosa autora em língua portuguesa

Parrot & Olivier, Peter Carey, Gradiva, 488 págs., 25€
Recriação livre do contacto de Alexis de Tocqueville com a América, no início do séc. XIX. Olivier, o aristocrata, e Parrot, o criado, são os narradores inesquecíveis desta obra-prima de técnica e humor sobre a essência da democracia.

Um Repentino Pensamento Libertador, Kjell Askildsen, Ahab, 223 págs., 16.95€
Nestes treze contos de um dos maiores escritores nórdicos contemporâneos, exibe-se uma escrita descarnada e uma enorme sabedoria emocional. Através da solidão crua das personagens, o norueguês Askildsen comove e perturba o leitor.

As Aventuras de Augie March, Saul Bellow, Quetzal, 27.99€
A irrepreensível tradução de Salvato Telles de Menezes destaca a musicalidade e o vigor de uma das obras fundamentais do Nobel da Literatura de 1976. Augie March cresce na sombria Chicago da Grande Depressão. O leitor cresce com ele.

Wolf Hall, Hilary Mantel, Civilização, 658 págs., 22.41€
Booker Prize em 2009, oferece uma monumental e inovadora abordagem ao reinado de Henrique VIII a partir da personalidade e biografia do advogado Thomas Cromwell. Pura inventividade e génio ao serviço do romance histórico.

Correcções, Jonathan Franzen, Dom Quixote, 512 págs., 19.90€
National Book Award 2001, prenunciou a actual aclamação de Franzen como «o grande romancista americano». Esta crónica satírica e realista de uma família dos anos 90, os Lambert, é um hino à ficção de grande fôlego e incidência social.

O Complexo de Portnoy, Philip Roth, Dom Quixote, 272 págs., 16.15€
Saiu há 41 anos e ainda é capaz de chocar. Em nova tradução (a última era dos anos 80),  o romance que lançou Philip Roth é um tratado delirantemente cómico e provocador sobre a emancipação familiar e sexual de um judeu americanizado.

Uma Antologia da Poesia Chinesa, Gil de Carvalho, Assírio & Alvim, 438 págs., 22€
Nasceu do esforço do poeta antologiador e tradutor Gil de Carvalho esta primeira edição portuguesa de um grande conjunto de poesia chinesa. Do Shi Jing, livro de odes de 1000 a.C., até às obras maiores do séc. XVII. Um mundo a descobrir.

A Inquisição-O Reino do Medo, Toby Green, Presença, 511 págs., 22.11€
Um investigador inglês com origens sefarditas traça o quadro mais abrangente e acessível da Inquisição ibérica e nas colónias durante três séculos. A detalhada exposição de casos ilumina a extensão dos mecanismos da «pedagogia do medo».

O Sonho do Celta, Mario Vargas Llosa, Quetzal, 438 págs., 18.95€
No novo romance do Nobel da Literatura 2010, renasce a aventurosa e lendária vida do irlandês Roger Casement, cônsul britânico no Congo belga no início do séc. XX, amigo de Joseph Conrad. Sob o signo da defesa dos direitos humanos.

Solar, Ian McEwan, Gradiva, 335 págs., 16.15€
Em esplêndida forma técnica, McEwan explora «o que há de cómico no idealismo», quer este se aplique ao ambiente global ou à vida pessoal. Os falhanços do físico Michael Beard e da sua saga ecológica parodiam a actualidade.

© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)