Após receber a herança paterna, o australiano David Morawetz decidiu doar parte dela. Criou uma fundação, pesquisou projetos e optou por, com 10 mil dólares, financiar a abertura de um poço numa aldeia de 100 mil habitantes numa região árida da Etiópia. Na aldeia, hoje, diz-se: «Antes de termos o poço, os nossos filhos morriam. Agora, não.» O gesto solidário de Morawetz ilustra uma múltiplas ações indignadas, generosas e eficazes num mundo em que 18 milhões de pessoas morrem por ano sem necessidade, sendo dez milhões delas crianças (dito de outra forma: mais de mil crianças morrem por hora por causas evitáveis). Para o norte-americano Peter Singer, famoso especialista em Bioética, é urgente «fazer o leitor sentir-se culpado». A Vida Que Podemos Salvar, editado pela Gradiva, é um manifesto lúcido e esclarecedor sobre como cada um de nós pode contribuir de facto para a redução da pobreza extrema no mundo.
Não, este não é um livro a apelar à caridadezinha de trazer por casa. Pelo contrário, é um apelo ético (mais do que moral), feroz e positivamente tendencioso, e um guia prático. A partir de uma análise muito ampla (abordagens históricas, filosóficas, estatísticas, económicas e psicológicas, exemplos e mais exemplos), Singer conclui que todos os que «têm o suficiente para viver com conforto, comer fora ocasionalmente e comprar água engarrafada» devem dirigir pelo menos cinco por cento do seu rendimento anual para a ajuda aos muitíssimo pobres. Viradas do avesso todas as desculpas usadas para não o fazermos, aquela surge mesmo como a única opção digna.
A premissa central de Singer é a de que a filantropia se tornou uma questão muitíssimo complexa. Por isso, o autor explica-a e a conceitos como «efeito da vítima identificável», «diluição da responsabilidade», «interesse próprio» ou «critério público». Disseca a desconfiança quanto à real eficácia das doações e da sua gestão pelas instituições de ajuda. Conclui que salvar a vida de alguém poderá custar algures entre os 200 e os 2 mil dólares. E, sem medos, aponta o dedo aos mais ricos e à cultura dos brinquedos luxuosos generalizada até entre a classe média e média-baixa do primeiro mundo. Se temos mais, podemos dar e dar bem. Tão simples, afinal.
A Vida Que Podemos Salvar, Peter Singer, Gradiva, 247 págs.
SOL/ 05-08-2011
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)