Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quarta-feira, julho 27, 2016

Ulisses de James Joyce | A literatura é para os fortes




Modelo de linguagem ultra modernista, Ulisses tem novo tradutor em português. Para Jorge Vaz de Carvalho, o romance de James Joyce só será lido por uma elite intelectual, disposta a perder o pé numa tempestade de vagas altas. Mas o que ali está não é um mar, antes um lago onde navega o herói grego transformado em homem comum.


A tia Josephine ajudou James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) nos detalhes mais ínfimos da composição do mapa concreto de Dublin em 1904. Em troca, ele obrigou-a a ler Odisseia de Homero para compreender melhor o seu Ulisses.
Ao amigo italiano Carlo Linati, o escritor irlandês enviou um resumo-chave-esqueleto-esquema, para entrar no romance-monstro, «uma epopeia de duas raças (israelita-irlandesa) e ao mesmo tempo o ciclo do corpo humano, uma pequena história de um dia de vida e uma espécie de enciclopédia».
Jacques Benoîst-Méchin não teve direito ao esquema de Linati, apenas à informação de que os enigmas e quebra-cabeças do romance ocupariam os académicos durante séculos, a tentarem adivinhar o que Joyce quis dizer. Esse seria o melhor modo de lhe garantirem a imortalidade.
Em 1922, em Paris, pouco antes da primeira publicação integral do romance por Sylvia Beach, Joyce disse a Djuna Barnes: «O mal é que o público há de pedir e há de encontrar lições morais no meu livro, mas dou-lhe a minha palavra de honra de que não há nele uma única linha escrita a sério.»
O poeta americano Max Eastman acusou-o de culto da ininteligibilidade e Joyce respondeu-lhe: «O que peço ao meu leitor é que dedique a sua vida inteira a ler as minhas obras.» Coisa pouca, ainda há quem esteja disposto a isso?
Ulisses volta às livrarias portuguesas pela editora Relógio d’Água, 47 anos após a primeira tradução, assinada pelo filólogo brasileiro Antônio Houaiss, e 24 depois da adaptação desta por João Palma-Ferreira. Esta nova tradução é de Jorge Vaz de Carvalho, poeta (A Lenta Rendição da Luz, 1992), ensaísta e professor universitário, doutorado em Estudos da Cultura (com a tese Jorge de Sena:Sinais de Fogo” como romance de formação), também cantor lírico (barítono) eclético e com uma carreira internacional consistente. Não se assume como tradutor profissional, mas traduziu Ciência Nova de Giambattista Vico (Prémio de Tradução Científica e Técnica FCT/União Latina 2006), Canções de Inocência e de Experiência de William Blake ou Vida Nova de Dante Alighieri.
Vaz de Carvalho acusa Houaiss de uma adulteração extrema do texto original e de quase o usar para construir um determinado modernismo brasileiro. Em contraponto, a sua tradução, concretizada em dois anos e sustentada por décadas de convívio com a obra, busca a maior fidelidade possível à matriz. O tradutor restringiu-se a uma posição de «transparência»: «Não tenho o direito de disputar a autoridade do romance. Guiei-me pela convicção de que o estou a traduzir como penso que Joyce o escreveria em português.»
Joyce pertence ao grupo de autores preferidos do tradutor português: aqueles que «nunca tratam o leitor como um cretino». Ulisses, em ruptura com tudo o que era o paradigma narrativo do século XIX, «exige apenas essa raridade de leitor que possui curiosidade intelectual perante o texto literário e as possibilidades infinitas da língua». Esta é uma leitura que «nos atira para fora de pé, sem sequer nos termos chegado a molhar.». Obriga o leitor a abdicar da bengala do enredo e a transformar-se «de banhista da rebentação em banhista de ondas poderosas». Não é de todo uma leitura para todos.

 

Os vários níveis narrativos, como camadas de cebola, podem ser lidos consoante o grau de cultura ou o domínio das técnicas narrativas do leitor, «mas a maioria dos leitores o que quer saber é da historiazinha e o problema é que Ulisses não a tem». Pior: tal como defende o poeta, crítico e historiador espanhol José María Valverde, Ulisses representa «o negativo caricatural de Odisseia: o “herói” volta ao seu lar para não ser nada, nem sequer o que ele tentou fracassadamente durante o dia». Então, como podemos ajudar os leitores convencionais a entrar no romance? Responde Vaz de Carvalho: «Não podemos. Se o leitor não estiver disposto a aceitar novas regras de jogo, será uma perda de tempo tentar convencê-lo». Essa não é uma atitude demasiado intimidatória? «Claro que é. Mas a literatura é só para os fortes.»
Estamos de acordo, Ulisses será devidamente apreciado sobretudo por leitores-corredores-de-fundo. Na verdade, desde há 91 anos que o seu público ideal é esta espécie de leitores, hoje em vias de extinção, que aceita a perseverança e a disciplina como passes inevitáveis para o acesso à alta-leitura, logo à alta-cultura. Contudo, defender que Ulisses se destina só a essa elite intelectual pode prestar um mau serviço à riqueza e à complexidade de Joyce.
É o próprio Vaz de Carvalho, na linha do académico irlandês Declan Kiberd, autor de Ulysses and Us: The Art of Everyday Living, quem defende esta obra como um livro magistral «onde não se passa nada a não ser a banalidade do quotidiano» e da luta de pessoas comuns pela sobrevivência e nas relações com os outros. «Não é por acaso que o título aponta para uma epopeia, mas toda a estrutura do romance é a da tragédia», alerta o tradutor.
No fim destas 24 horas de rotinas triviais e de pequenos dramas pessoais, sem a grande retórica ou a eloquência da epopeia, as personagens regressam todas às suas Ítacas. Todavia, elas partilham com Ulisses a mesmíssima e absoluta necessidade de sobreviver. Segundo Vaz de Carvalho, este é o centro da renovação moderna do mito antigo grego concretizada por James Joyce e obriga-nos a uma reavaliação do valor da História e da história pessoal.
Ulisses pretende retratar o homem comum e as suas muito vulneráveis condições de acesso à dignidade. Então, como entender que Joyce (um socialista) tenha vedado o acesso do grande público ao seu romance? Pois se a fala interna do cidadão comum é o objetivo e o objeto máximos da sua experimentação... O próprio Joyce definiu, logo em 1900, na conferência Drama And Life: «Penso que da triste monotonia da existência podemos extrair aspectos do drama da vida. O maior lugar-comum e o mais morto dos vivos podem ter um papel neste grande drama.»

 

Quem diminui o valor da leitura direta do romance e privilegia a abordagem a Ulisses como uma oeuvre à clef (e não é de todo este o caso de Jorge Vaz de Carvalho) corre o risco de reduzir o romance a um busílis formal e esquemático. As suas três partes e 18 capítulos-episódios não foram totalmente definidos por Joyce; pelo caminho ele desistiu dos títulos que faziam remissões para a Odisseia (ver o estudo The Ulysses Theme, de W.B. Stanford). Cada uma destas etapas corresponde a uma hora do famoso dia 16 de Junho de 1904: das 8h de manhã às 2h da madrugada seguinte, à exceção das três primeiras horas, repetidas para Dedalus e Bloom, e de vazios entre as 11h e as 12h (suposto banho de Bloom) e as 18h e as 20h (provável visita de pêsames).
Em inglês, o romance tem cerca de 265 mil palavras e um léxico de 30 mil. A cada episódio corresponde um estilo diferente e, segundo alguns teóricos sugestionados pelo autor, um órgão físico, uma cor ou até uma arte ou ciência diferentes. Os protagonistas são três: Stephen Dedalus (alter ego do jovem Joyce, com ecos de Hamlet), Leopold Bloom (símbolo do Judeu Errante ou do irlandês excluído, como Joyce) e a sua mulher Marion (Molly) Bloom. Mas Ulisses foi escrito para dar privilégio absoluto e absoluto protagonismo à linguagem. É «um livro tão opaco e pormenorizado como a vida» (John Updike). Como entrar nele?
Suponho que a poucos agradará a ideia de provar um pequeno-almoço de rim de porco com chá e torradas ou andar com uma batata no bolso, em homenagem ao tormento da fome por que passaram os antepassados. Por exemplo, para (re)criar com fidelidade a Dublin do Bloomsday, a via sacra de Bloom em Dia do Juízo Final (Doomsday), James Joyce recorreu a um exemplar do Dublin Evening Telegraph desse dia e à edição de 1904 do Thom’s Directory, o diretório de todos os imóveis residenciais e comerciais da cidade e respetivos proprietários. O escritor acreditava que, se um dia fosse necessário reconstruir a cidade, bastaria compô-la, tijolo a tijolo, a partir de Ulisses.
Talvez só mesmo identificando-se com esta obsessão joyceana com os detalhes exteriores mais microscópicos e dando um tremendo salto de contextualização histórica é que o leitor atual de Ulisses conseguiria penetrar de facto na vida das personagens, no tema principal (Bloom e o Destino, segundo Nabokov) e no grande motor do romance: a verbalização interior.
Segundo José María Valverde, «Joyce foi um grande ouvido: a princípio [em Dublinenses] com uns olhos que captam de vez em quando um instantâneo, uma “epifania”, como ele disse; finalmente, já sem olhos [quase cego, criando a pirueta lexical Finnegans Wake]. […] Para o ler não basta a tradução (se não sabemos inglês); temos de voltar à época em que a linguagem vivia na boca, no ouvido e na lembrança.» Mais: para compreender realmente Ulisses, teríamos que ter presentes de memória todas as frases da obra (E. R. Curtius).
Conhecemos o mar verde-ranho ou mar escroto-constritor que Joyce parece opor ao oceano azul de Byron. Conhecemos bem de perto as opiniões de Stephen sobre a paternidade (pai = um mal necessário) ou sobre a trajetória do mijo (com Bloom). Conhecemos a retrete e os borborigmos intestinais e as reflexões masturbatórias do Sr. Bloom. Ou os devaneios de Molly sobre atos e órgãos sexuais (os seios são, em definitivo, mais bonitos do que os pénis) explanados em oito frases e 66 páginas de solilóquio. O que sobressai em todos os casos é a franqueza e a crueza da expressão-retrato de um ser humano. A repugnância pode ser um convite à empatia humanitarista. Por exemplo, com Bloom, «uma criatura intrinsecamente decente» (Vaz de Carvalho).
Este portento de aproximação simultânea ao interior profundo de uma personagem «nos extremos do realismo» (W. B. Yeats) só é possível graças a uma fidelidade ao linguajar específico que o traduz. Joyce cria palavras interiores que se deslocam em divagação e evocação, mas com naturalidade, pelo bruaá quotidiano das grandes avenidas ou das ruelas esconsas, das bibliotecas e das redações, das casas e dos pubs da Dublin moderna. «Eles estão todos aqui, os grandes faladores, eles e as coisas que eles esqueceram», confidenciou o escritor a Djuna Barnes. Para lá disso, o que existe é uma cadeia de acontecimentos triviais sincronizados: «no decurso do livro, as pessoas tropeçam constantemente umas nas outras: os seus caminhos encontram-se, separam-se e voltam a encontrar-se […] uma coisa leva à outra neste maravilhoso livro» (Nabokov).

 

Em Sobre a Literatura, Umberto Eco salienta que Joyce estaria profundamente convencido de que a verdade artística está contida em todas as línguas do mundo; manipulando-as, o escritor poderia atingi-la. «Assim, dedicou grande parte da sua vida à invenção de uma nova gramática e a procura da verdade tornou-se para ele [como para Dante] a procura de uma língua perfeita.» Obcecado em inventar essa língua «perfeita, moderna e natural», Joyce obstinou-se em restaurá-la «através da sua pessoal invenção poética […] uma língua que não será arbitrária como a linguagem comum, mas necessária e motivada». Onde tem origem esta odisseia do escritor?
José María Valverde e John Updike colocam a interessante hipótese de a raiz estar na educação jesuíta de Joyce. Foi ela que o levou «a criar uma novela do quotidiano, guarnecida com referências e caixas e esquemas tão rigorosos como num esotérico livro de feitiçaria», defende o escritor americano. É nela que encontramos uma noção essencial que perpassa o desafio estilístico e temático de Ulisses: a consciência do homem é a consciência da linguagem humana e esta antecede os seus atos. Segundo Valverde, o romance é «um exemplo extremo de exame de consciência, ao modo jesuítico». Recorre a uma técnica de inspeção psicológica (o famoso stream of consciousness) que aceita a linguagem como limite do homem e se constitui como «um processo de sentido linguístico, de verbalização do vivido, mesmo que este tenha sido pecaminoso, tomando-o em si mesmo com a maior objetividade».
Aqui, o exame de consciência surge sem remorso, desejo de emenda ou qualquer intenção moral ou catequista. Jorge Vaz de Carvalho defende: «Para que este seja um romance pacifista, basta-lhe pôr na boca de Molly a queixa de que a guerra está a matar todos os rapazes bonitos.» Para ser um retrato soberbo e original da condição humana, basta-lhe tão só centrar-se num homem, Stephen, torturado por não ter acedido ao pedido da sua mãe moribunda para que ele rezasse por ela, e noutro homem, Leopold, reduzido, após a perda de um filho, a aceitar as infidelidades da mulher, a deitar-se em posição invertida no leito conjugal e a beijar os roliços melões adocicados alourados perfumados do rabo dela.
«Há quem diga que Ulisses  é uma epopeia da mente, que é onde o indivíduo pode conquistar uma Ítaca, de onde pode regressar de uma maneira relativamente livre.» Para Vaz de Carvalho, o romance é, na sua épica do quotidiano, um monumento à capacidade interior de superação. A proposta de Joyce é a de mergulharmos num «não-estilo, que é exatamente a confluência e a profusão dos vários estilos e vários níveis de língua, construídos ou pessoalmente ou através de atos paródicos».
Entretanto, Bloom escreve na areia da praia: «eu sou um» e nunca completa a frase. «Esta ideia pode explicar a questão central: a nossa vida, tal como o texto de Ulisses, está sempre a ser escrita e sempre toda ela por escrever.» História incompleta e rede de encontros falhados expressa nos limites da linguagem, Ulisses está muito próximo de uma das fontes que Umberto Eco lhe atribui: o Livro de Kells (manuscrito composto por monges celtas entre os séculos VIII-IX a.C.), «modelo do livro infinito ainda por escrever, só legível por um leitor ideal afectado por uma ideal insónia». Para este leitor ideal, aqui está um exemplo da obra-prima do escritor ideal: Pensamento é o pensamento do pensamento. Luminosidade tranquila. A alma é de certa maneira tudo o que é: a alma é a forma das formas. Tranquilidade súbita, vasta, candente: forma das formas.

LER Janeiro 2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)