Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quinta-feira, maio 14, 2015

QUEM ESTÁ AÍ? | reportagem

 

Como se exprimem e se fazem entender as pessoas com deficiências limitativas da capacidade de comunicação? As neurociências tentam explicá-las, enquanto se apuram métodos e ferramentas para lhes dar apoio. As galerias recebem as suas expressões artísticas. O romance português contemporâneo dá-lhes atenção especial. Fomos conhecer Rares Iancu e Paulo Amores e encontrámos, a par de um mundo físico e cognitivo cujas limitações podem ser conhecidas de fora, um teatro privado mais ou menos enigmático. Onde não entra quem pode, só entra quem já lá está.

A crença de que a nossa perspectiva da realidade é a única realidade existente é a mais perigosa de todas as ilusões. Paul Watzlawick

Rares tem um sorriso tão eficaz como um abraço ou uma extensa declaração escrita de amor. É um miúdo raro. Paulo tem o olhar em fuga e o apelido de Amores. Desenha engenhosas autoestradas de signos, com destino infinito. Nos dois casos, o que sei de teoria e factos que os caracterizem é-me relatado ou descrito por terceiros. Nem Rares, nem Paulo conseguem verbalizar a sua vida interior. Contudo, poucas pessoas imprimem a sua presença de forma tão excecional e misteriosa naqueles que se dispõem a conhecê-las, racional ou intuitivamente.
Ao encontro de Rares e Paulo e de umas quantas personagens de ficção, esta é uma incursão num mundo contíguo ao nosso, nos limites da comunicabilidade, da razão e da autoconsciência. Uma visita, guiada por uma pergunta: Como se exprimem e se fazem entender, e como são representadas na literatura, as pessoas com deficiências limitativas da capacidade de comunicação?

Quando estava dentro da barriga da mãe, Rares erguia uma das mãos e parecia acenar-lhe através do ecrã ecográfico. «Foi uma criança muito desejada. Sempre soube que seria um menino e sempre quis que se chamasse Rares.» Porquê Rares? Carmen não faz ideia, tão pouco conhecia a raiz da palavra romena, descendente do latim rarus (incomum; com muito mérito). Nisto como em todo o percurso acidentado do filho de seis anos, o instinto e o lado prático da mãe mostraram-se bem mais importantes do que quaisquer explicações.
Carmen nasceu a cerca de duzentos quilómetros de Bucareste, em Curtea de Argeș, a cidade-natal do injustiçado escritor absurdista romeno Urmuz (vale a pena ler o poema heroico-erótico Fuschiada; começa com o nascimento de uma criança que opta por sair pelo canal auditivo da avó, dado que a mãe não possui qualquer ouvido musical). Carmen imigrou para Portugal com o marido, Ion Iancu, há onze anos. Rares nasceu em 2008, no Hospital Amadora Sintra, com recurso a ventosas, após cerca de vinte e quatro horas de trabalho de parto. Desde os três anos de idade, é seguido no Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil (CADin), em Cascais, devido a um atraso global do desenvolvimento, crê-se que de origem genética, sem diagnóstico conclusivo, mas com indicação de comprometimento grave da capacidade de expressão de sons da fala e ao nível da linguagem compreensiva.
Rares gosta de dar comida aos seus seis peixinhos logo de manhã, às vezes ajuda a mãe a cozinhar, faz birra no supermercado se não o levam ao corredor das canetas, adora livros e segue as histórias com atenção, tem pavor a cães ou gatos (até os de peluche), prefere vegetais a chocolate, já teve uma namorada na escola e, quando está zangado, refugia-se nalgum sítio sozinho, mas «só por uns segundos». Quando lhe convém, finge ignorar uma ordem ou uma repreensão. Tem tanto de curioso, quanto de teimoso. Quando se concentra numa tarefa, é muito exigente consigo mesmo. Depois de uns olhares de reconhecimento e de vários sorrisos sedutores, Rares toca-me no braço. Encosta-se, sorri, em segundos está refastelado no meu colo, com um dos braços orgulhosamente em torno dos meus ombros.
Sedento por fazer passar a sua mensagem, Rares já tinha uma linguagem gestual própria quando chegou ao CADin. «Foi descobrindo e criando os gestos. Começava por complicar e depois ia simplificando até que o compreendêssemos.» Mão à frente da boca; está zangado. Toca no peito; tem fome. Ao fim de três anos de acompanhamento clínico especializado, consegue dizer cerca de dez palavras. Através de um programa de comunicação aumentativa e alternativa, continua a enriquecer aquilo que a mãe chama de «falar à Rares».
Quadrados com figuras simples e coloridas, colados com velcro a folhas de papel, numa sequência específica. Ana Rita Gonzalez, terapeuta da fala, mostra o caderno de comunicação de Rares, criado a partir do programa informático Boardmaker, que disponibiliza bibliotecas universais de mais de cinco mil Símbolos Pictográficos para a Comunicação (SPC). Depois de ter apurado a comunicação gestual (através do método Makaton) e a expressão de palavras de conteúdo, sem elementos de ligação, Rares está a tentar construir algo semelhante a frases. Não é possível avaliar a amplitude da sua compreensão verbal (que surpreende a terapeuta), mas a mãe assegura que a capacidade de expressão emocional e social aumentou significativamente. «Ele já consegue pôr a cabeça e os pés, só falta o tronco.» Falta-lhe o mais subtil: a vírgula que prolonga a frase, a pontuação que determina a narrativa.
No caso de Rares, a mãe é a principal tradutora, ao mesmo tempo, do universo infantil e do mundo externo que chega até ele. É impossível prever qual será o grau de desenvolvimento da capacidade de comunicação ou expressão ou de autonomia de Rares quando for adulto. Por enquanto, «a sua maior arma é o afecto». Uma arma, garanto-vos, poderosa. Se soubesse desenhar, dedicava-lhe uma banda desenhada, dava-lhe o papel do herói e lançava-o à descoberta do conserto do mundo.

Em 2010, no ensaio controverso The Tell-Tale Brain: A Neuroscientist’s Quest for What Makes Us Human, o neurocientista indiano Vilayanur S. Ramachandran dedicou um capítulo ao autismo e intitulou-o «Onde está o Steven?». A pergunta foi-lhe colocada por uma mãe, mas exprime um lamento partilhado por muitos pais de crianças autistas. «Doutor, eu sei que o Steven está preso algures lá dentro. Se ao menos o senhor conseguisse encontrar uma maneira de dizer ao nosso filho o quanto o amamos, talvez o conseguisse trazer cá para fora.»
Paulo Amores entra na oficina de artes da APPDA-Lisboa, com os olhos postos no chão. Move-se com rapidez, senta-se com o corpo enviesado à secretária, em frente da terapeuta ocupacional. Sem levantar o olhar, repete os cumprimentos, dela e meu: «Olá. Olá. Olá. Olá.» Isabel põe sobre a mesa um conjunto de sacos dobrados de papel reciclado e um estojo de canetas de feltro («este é só dele»). Paulo inclina-se sobre a mesa e deita mãos à obra. Nos dez minutos seguintes, desenha traços contínuos e descontínuos, signos, letras e números mais ou menos definidos, mais traços, mais signos, horizontalidades, verticalidades, riscos sequenciais, com cores alternadas, até cobrirem toda a superfície do papel. O empenhamento físico na tarefa é evidente e, com uma cadência particular, acompanha a coordenação de cada composição. Ritmo contínuo, pausa curta, respiração. Paulo avalia o conjunto e prossegue, determinado, atento ao detalhe e à posição precisa de cada elemento. Gere e preenche o espaço disponível. De novo. De novo.
Naquele mesmo ensaio, Ramachandran sugeriu que a perda de neurónios-espelho está na origem de grande parte dos sintomas e características das perturbações do desenvolvimento do espectro do autismo (PEA, agrupadas em três: síndroma de Asperger, Autismo e Transtorno global do desenvolvimento sem outra designação). Primeiro identificados em macacos, em 1994, por um grupo de neurofisiologistas italianos, os neurónios-espelho são células localizadas no córtex motor e ativadas tanto quando o sujeito realiza uma ação como quando ele vê um outro realizar essa mesma ação. Graças a neurónios-espelho com um funcionamento mais sofisticado do que o dos macacos, o cérebro humano é capaz de simular uma ação e aprender por imitação. São eles que nos permitem reconhecer e interpretar, criar um modelo interno das ações e intenções das outras pessoas, logo, estabelecermos relações afectivas e sociais.
Para Ramachandran, uma disfunção ao nível do sistema dos neurónios-espelho implica a perda da empatia com os outros. Aliada à perda de «reverberação» entre o cérebro e o resto do corpo, ela implica a perda do Eu apurado que caracteriza os humanos. O resultado é a redução do sujeito ou, mais radicalmente, o seu encerramento numa realidade ou espaço não-racionalizados ou racionalizáveis. Daí que sintamos que aqueles que sofrem perturbações do espectro do autismo habitam, ainda que em níveis diferentes, um outro mundo, do qual não conseguem escapar e ao qual não conseguimos aceder.
Paulo Amores tem quarenta e nove anos de idade e há quarenta e dois que reside e é acompanhado em permanência na sede da APPDA (Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e do Autismo) em Lisboa. Aparentemente nada o diferenciou das outras crianças até aos cinco anos de idade, quando lhe foram diagnosticados distúrbios do espectro do autismo. Situada no Alto da Ajuda, a sede da APPDA-Lisboa inclui quatro lares-residências, um Centro de Atividades Ocupacionais, uma Escola de Educação Especial, um Pavilhão Ajudautismo, uma estufa (para atividades de hortofloricultura) e uma piscina terapêutica com cobertura.  Bem-vindos à casa do Paulo.
Há dezassete anos que Isabel Costa trabalha aqui. Na oficina das artes, onde estamos agora, acompanhou a aprendizagem funcional, a familiarização de Paulo com utensílios, materiais, limites e estruturas (através da modelagem do barro), o percurso de desenvolvimento até à criação livre que ele prefere: bidimensional e com canetas de feltro ou tintas.
«Gostas de pintar, Paulo? Sim?» «Sim.» «Não gostas de pintar, pois não?» «Não.» A expressão verbal é marcada pela ecolalia: a repetição automática de palavras ou sons escutados, como um eco. O olhar é rápido, fugaz quando encontra outro. Paulo reage, responde, mas não toma a iniciativa do contacto. Agora, tem o olhar fixado no papel e no deslizar da caneta. Continua a desenhar. Isabel toca-lhe ao de leve na mão; é uma das poucas pessoas a quem ele permite o toque, das poucas capazes de descrever a sua personalidade: «O Paulo tem um sentido de humor extraordinário. Um humor subtil. É um gozão; gosta de rir do que acontece aos outros. Está sempre alerta, sempre na expectativa do que vai acontecer. Há sempre uma ansiedade latente. Mas, se ele grita e, em resposta, eu o assusto, ele ri-se.»
Na pintura, Paulo não se interessa pela figura humana. Quando pinta com canetas, gasta a escolhida até se acabar e é raro optar pela cor preta. Quando usa tintas, mobiliza o corpo todo, ajusta a posição dos pés, debruça-se sobre a bancada; muitas vezes, o gesto fica marcado na textura dos trabalhos. Quando parece estar menos bem, usa apenas uma cor ou pinta só de uma maneira. Recentemente, uma exposição de obras de Paulo Amores inaugurou uma galeria em Cascais, a Raw, na Cidadela Art District. «Há coisas que ele faz que não se ensinam. Acredito que ele é um experimentador da expressão», diz Sílvia Perloiro, a professora de Artes Plásticas que também o acompanha na oficina da APPDA-Lisboa. Ali, ganha forma a singularidade do universo de Paulo.

«[A vida] é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria. E sem sentido», escreveu Shakespeare (Macbeth, Cena V, Ato V). Tal como as pessoas na vida real, na história da literatura as personagens com deficiências (motoras, mentais, visuais, auditivas, da fala ou orgânicas) não compõem um quadro homogéneo. Até muito recentemente, a sua presença servia quase em exclusivo de alerta para a vulnerabilidade e para a imperfeição da condição humana. Assumia um objetivo funcional, moral ou jocoso e, na maioria das vezes, este sobrepunha-se à definição da personagem enquanto sujeito, à tradução-revelação do seu mundo interno.
Veja-se, por exemplo, Benjamin, o autista do clã Compson, em O Som e a Fúria, e o modo como William Faulkner se lhe referiu (em entrevista à Paris Review): «A única emoção que consigo ter por Benjy é de aflição e de pena por toda a humanidade. Não se consegue sentir nada por Benjy porque ele não sente nada. A única coisa que consigo sentir por ele, pessoalmente, é uma preocupação em saber até que ponto ele é credível tal como o criei. Ele é um prólogo, tal como o coveiro nos dramas isabelinos. Cumpre o seu papel e vai-se embora. Benjy é incapaz do bem e do mal porque não tem conhecimento do bem e do mal.»
E, no entanto, Benjy e a expressão literária da sua desordenada corrente da consciência (notavelmente pontuada por registos sinestésicos) serve e justifica o registo modernista, a incoerência da gestão do tempo e do espaço no romance, qualificado pelo escritor norte-americano como o seu «mais esplêndido fracasso». Em termos alegóricos, Benjy é uma figura crística, o símbolo da redenção perante o declínio e a morte, ao mesmo tempo o sinal da impotência de Cristo e da Graça no mundo moderno. Faulkner, que na verdade nunca foi bom a explicar-se, aponta de forma bastante desumana a sua criação mais humanista.

De segunda a sexta, Miguel e Luciana passeavam-se numa valsa estranha pelos corredores da APPACDM (Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental), onde se tinham apaixonado. «Primeiro o Miguel sempre arrastou os pés com os braços descaídos e a barriga para a frente. Depois, não se acompanhavam lado a lado, ela colocava-se atrás dele e usava-o como escudo. Em fila indiana, ele esticava o braço para trás e agitava os dedos em busca dos dedos agitados dela. Seguiam caminho e, como um fole, aproximavam-se e afastavam-se ao ritmo do andamento.» No dia em que Luciana quis fugir da instituição, Miguel agarrou-a e fê-la voltar. À noite, fechado no quarto, repetia em voz alta a façanha: «Um heroi, um homem. Nao é bebe
Miguel é o irmão do narrador, sem nome, da primeira obra de ficção de Afonso Reis Cabral (24 anos), vencedora do Prémio Leya 2014. O Meu Irmão, romance marcante pela humanidade e domínio estilístico, faz um uso indireto da experiência autobiográfica do autor, que tem, ele mesmo, um irmão com síndroma de Down (também designado Trissomia do cromossoma 21). «Foi um desafio dar voz a quem não a tem ou tem-na de uma maneira muito pouco eficaz. Mas eu não sou, nem quis ser, porta-voz de nada. Apenas fui absorvido por um tema, um estado de espírito inicial: o do conflito entre dois irmãos, acentuado pela clara desvantagem de um deles», explica Afonso.
Quando morrem os pais, Miguel, 40 anos, fica à guarda do irmão, professor universitário, divorciado, um ano mais novo e há vinte separado dele. O que se passa a seguir entre os dois, no Porto ou numa minúscula aldeia de xisto, perto do rio Paiva e com apenas mais três habitantes (um casal e o filho), é contado na primeira pessoa do singular. Miguel não tem capacidade de expressão, por isso o irmão-narrador assume-se como voz e intérprete: «Muitas vezes omite-lhe a expressão, noutras impõe-lhe uma linguagem [há um nós que preenche a ausência de diálogo entre os dois irmãos]. Trata-se de um mau intérprete, com falhas de carácter, alguém com dificuldades em aceitar-se e que, por isso, se vê em combate permanente com o outro  e o usa como ferramenta das suas próprias frustrações.»
Em O Meu Irmão, a inveja é um motor dramático, explorado por oposição à entrega constante e ao amor incondicional gerado ou oferecido por Miguel aos outros. Num romance português anterior, Autismo (2012, Abysmo), de Valério Romão, o tratamento pouco convencional do tema da deficiência surgira mais cru e sombrio, focado no conflito entre a abnegação completa de uma mãe em função do filho autista e os sentimentos de rejeição e ciúme do pai em relação a ele. Ali, o sujeito deficiente surge apenas como personagem secundária, sem voz.
No caso de Miguel, o «mongolóide» de O Meu Irmão, Afonso Reis Cabral procurou deixar a personagem em aberto, não exercer sobre ela qualquer tipo de autoridade. Como? «Foi um bocado sair da frente e não lhe pôr muitos obstáculos.» O silêncio de Miguel era uma dificuldade implícita, mas também não havia garantias de que a transposição das suas dificuldades de fala funcionasse, sem parecer forçada. «Optei por partir o português o mais possível, incluir gralhas, adaptar a pontuação. Era isso ou deixá-lo calado.»
Na sua linguagem afectiva pura, Miguel representa o «amor em carne, amor em força bruta». É como «um anjo na terra», Caim que sucumbe a Abel, empenhado em destruir a inocência, a bondade natural, a «condição de felicidade» do irmão. O lirismo da história de amor entre ele e Luciana, com um tom ultrarromântico, quase camiliano, funciona, segundo o autor, «porque eles são personagens inocentes, que nem sequer entendem o próprio conceito de pureza». O final do romance é inconclusivo, mas Miguel, ainda que vulnerável, revela-se um «heroi», cuja linguagem moral transcende todas as outras.

Uma rapariga. Catorze anos. Olhos: pretos. Cabelo: castanho. «Estou à procura do meu pai.», diz. A rapariga traz consigo uma pequena caixa e, lá dentro, muitas fichas, cada uma com um tópico, seguido de um conjunto de passos, atividades ou questões. Por exemplo: explorar objetos; indicar a parte do corpo que dói; ir à casa de banho por iniciativa própria; andar pelos passeios; dar gritos, vocalizações diferenciadas para desconfortos específicos, sorrir ou vocalizar em resposta à presença de uma pessoa ou situação agradável;... Trata-se de um catálogo-guia para a Aprendizagem das Pessoas com Deficiência Mental.
Marius encontra a rapariga perdida na rua. Chama-se Hannah. Este é o nome que está escrito, mas ela não o reconhece e, por isso, Marius retira-lhe o H final. Em fuga não se sabe de quê, o homem decide ajudar a rapariga a procurar um pai que está algures, não se sabe onde. Hanna, com síndroma de Down, protagoniza Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai, o romance mais recente de Gonçalo M. Tavares. Mais uma das suas investigações ficcionais sobre a História, o Mal, as categorias racionais e os seus limites irracionais, o corpo restringido pelo espaço e pela velocidade, a sombra e a luz.
Há vários anos que o escritor português está ligado a uma cadeira de reabilitação psicomotora e participa em ateliers com a lisboeta Crinabel (Cooperativa de Educação de Crianças Inadaptadas de Sta. Isabel) e com a companhia de dança madeirense Dançando com a Diferença. Esta experiência de contacto determinou e modelou a criação de Hanna e, com certeza, alargou a reflexão sobre linguagem, corpo e pensamento.
«No início do contacto, temos tendência a adaptar completamente o discurso. Ao fim de algum tempo, e até para criar à-vontade e evitar uma forma de tratamento paternalista, passamos a falar normalmente. Quando se controla muito a linguagem, a relação pessoal fica muito limitada.» Para Gonçalo M. Tavares, a presença afectiva é uma das características mais marcantes dos portadores de trissomia 21 (saliente-se: possuem personalidades muito distintas entre si). Existe um alheamento ao nível da linguagem, mas não ao nível físico e corporal. Esta outra maneira de estar, com simplicidade desarmante, condiciona e determina todos aqueles que contactam com ela.
Marius e Hanna passeiam por uma rua de Berlim. Primeiro contam coisas iguais; depois, contam as pessoas que passam por eles a sorrir. Marius constata: «De uma forma objectiva, eram muito mais as pessoas que sorriam quando mais próximas de nós. Poderia pensar que se tratava de um puro acaso e que o facto simples era que as pessoas que estavam a maior distância estariam mais neutras ou infelizes, mas o que se passava realmente era que Hanna como que fazia batota, induzindo, sem consciência, o aparecimento de expressões simpáticas.»
Ao longo de Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai, Hanna é quase sempre o centro corporal. A força desta presença física chega ao ponto de alterar o comportamento das pessoas. Por outro lado, como quase não intervém, ela é uma observadora. Estando de fora de todas as linguagens, apresenta-se como um mistério. Gonçalo M. Tavares clarifica: «Há qualquer coisa que ela não consegue explicar, um segredo, uma coisa quase perversa. Marius tem uma carga agressiva que, estranhamente, fica mansa ao lado de Hanna. No início, ele é um homem acossado, perseguido não sabe por quê. De repente, desacelera a sua velocidade e vai com Hanna procurar alguma coisa. Muita da sua violência fica neutralizada. Hanna provoca um intervalo na vida de Marius, mas, no final, ele sente vontade de voltar à sua individualidade, à sua dor.»

«Quando se consegue entrar no olhar de um autista, ele fixa-nos e nós entendemos que lá dentro está a pessoa», diz Sílvia Perloiro. Acontece que, para se conseguir trazer a pessoa autista, por exemplo, até uma qualquer forma de expressão criativa, é preciso tempo e recursos habitualmente indisponíveis. Reconhecer e incentivar este tipo de capacidade de expressão implica um investimento e uma dedicação semelhantes aos que a mãe põe ao serviço do bebé, até conseguir identificar os mil cambiantes do seu choro.
Grande parte do respeito pela diferença das expressões artísticas das pessoas com deficiência passa por dar espaço a outras formas de sensibilidade. Jean Dubuffet definiu as obras de arte bruta como criações marginais, expressões de uma «operação artística completamente pura, bruta, cujas frases são totalmente reinventadas pelo autor, a partir somente das suas próprias pulsações». Pensem nisto: uma visita à Collection de l’Art Brut (mais de sessenta mil obras de mil autores), instalada no Chatêau de Beaulieu, em Lausanne, vale tanto como uma ida ao Prado ou ao Louvre. E vão lá.
Edgar Gonçalves Pereira, psicólogo clínico, primeiro doutorado português em autismo na área da psicologia, é diretor pedagógico da APPDA-Lisboa. Enquanto conversamos sobre Paulo Amores e as características atípicas do seu autismo (manifestas ao nível do desenho), conduz-me por um périplo teórico, ilustrado com imagens e quadros explicativos exibidos no ecrã de um computador. Percebe-se a cautela. Metemos muitos coelhos e muito diferentes no mesmo saco, se generalizamos sobre as pessoas com deficiências limitativas da capacidade de comunicação. Reformule-se, pois, a pergunta: como pode a arte funcionar como câmara escura de um mundo que é diferente do nosso devido aos condicionalismos de uma deficiência?
«Muito do que é valorizado em arte é o valor que esta tem de transmitir um simbolismo qualquer, adquirido em milhões de anos de experiência adaptativa.» A necessidade de preservação da espécie e o decorrente desenvolvimento de sistemas de alarme fez evoluir as nossas capacidades de tratamento e transmissão de informação. Assim, evoluímos na constituição de módulos cerebrais especializados em agrupamento, contraste ou isolamento, na resolução de invisibilidades, na discriminação de coincidências, na identificação de regularidades ou simetrias. «A transmissão pela metáfora intra-espécie permitiu que o homem evoluísse de um fechamento em si próprio para a abertura de uma ligação ao exterior.» Primeiro usados com funções adaptativas, aqueles recursos e operações passaram a servir também a criação de arte: a expressão artística a partir do símbolo e da metáfora.
Eis o que mais importa. As pessoas com autismo típico não chegam ao nível da metáfora. «Se tivéssemos de pensar à la Ramachandran, a expressão mais pura de uma pessoa com autismo típico seria a de alguém que apenas desenha o que vê [algo muito figurativo]. Pensaríamos na linha da surpresa que a relação dessa pessoa com a realidade nos traz a nós, ditos normais.»
Paulo Amores guardou referências do período anterior ao diagnóstico de perturbações do espectro do autismo. Filho de um engenheiro matemático, com certeza que o viu muitas vezes a escrever, a fazer contas ou a desenhar. O cérebro de Paulo, que então foi impregnado por séries de símbolos gráficos, fá-los renascer agora, quando se lhe deparam canetas e papel. Os seus trabalhos serão sobretudo paisagens de lembranças desse tempo, uma «fixação da qual não é possível sair com facilidade». Quando ele as exprime, é porque as associa a uma emocionalidade, a um certo conforto afectivo. É neste sentido que o seu universo expressivo é absolutamente incomum e excepcional: em suma, raro.
Então, como definir o mundo interno das pessoas com perturbações do espectro do autismo? Edgar Gonçalves Pereira explica: «Não existe nenhum organismo multicelular vivo, sem ser planta, que não tenha mundo interno. A partir da lagosta para cima, em formas mais mamíferas, é possível haver certas representações da externalidade na internalidade dos processos biológicos, embora não tão complexas como as que o cérebro humano faz.» Nos humanos, a capacidade de percepção do exterior evoluiu para a capacidade de percepção do interior, ou seja, para que conseguíssemos pensarmo-nos a nós próprios, em termos linguísticos ou imagéticos. Acrescentemos as funções dos neurónios-espelho e estamos perante um ser que se pensa, pensa os outros, mimetiza e cria empatia. É precisamente no acesso à capacidade perceptiva (logo, à possibilidade de completar este percurso de capacidades adaptativas e capacidades perceptivas para o outro e para si próprio) que o autismo se traduz em graves problemas funcionais internos. Logo, o mundo interno das pessoas com perturbações do espectro do autismo «provavelmente não será igual ao nosso».
Faço Sílvia Perloiro repetir: «Quando se consegue entrar no olhar de um autista, ele fixa-nos e nós entendemos que lá dentro está a pessoa». Porque não é possível não comunicar, cabe-nos a nós procurar o outro. E perguntar: Quem está aí?

LER Março 2015
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)