Da
obra humorística de Rafael Bordalo Pinheiro (recordem a caricatura «A Política:
a Grande Porca») aos cartoons
anti-islâmicos que incendeiam o equilíbrio entre o Ocidente e o mundo muçulmano.
Desde sempre, o cartoon político
serve uma alegoria incómoda, a revelação de uma verdade subterrânea e de uma
essência da atualidade, paradoxalmente, apresentadas através de um retrato
distorcido ou exagerado. Lá nas suas origens, o cartoon político, como a caricatura, traduz o «tipo ideal de deformidade», o grotesco que, segundo Leonardo da
Vinci, dá acesso ao conceito ideal de beleza. Imagem num espelho quebrado, esta
sátira gráfica de comentário social e artístico alimenta-se da ruptura e do
desequilíbrio. Por isso, não podia ser mais bem escolhido o título da recém-editada
seleção de trabalhos de um dos nossos melhores cartoonistas editoriais: António
Jorge Gonçalves.
Bem dita crise! reúne 58 cartoons de
nove anos de colaboração com o suplemento de humor Inimigo Público. Resume o lado mais ou menos irrespirável do ar do tempo que temos vivido desde 2003,
na política nacional e internacional. A acompanhar cada cartoon, há curtas frases de reflexão, uma espécie de livro de
estilo do que faz e como o faz este «treinador
de bancada da imprensa portuguesa» que é, antes de mais, um excecional «desenhador de ficção» - da BD (na série
Filipe Seems, no álbum Ana ou nas novelas gráficas A Arte Suprema e Rei) à cenografia para teatro e ópera ou às performances de desenho
digital ao vivo. Gonçalves possui as qualidades que, segundo o histórico desenhador
de imprensa americano Jules Feiffer, se exigem a um grande cartoonista: inteligência
e sensibilidade, sim, em doses de destaque, mas, sobretudo, uma vontade
perniciosa. A sua virulenta indignação honesta faz rir e faz pensar e faz-nos
concluir que nenhum contrapoder jamais poderá prescindir da imaginação.
Bem dita crise!, António Jorge Gonçalves, Documenta, 128 págs., 18 euros
SOL/ 05-10-2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)