«Serra Morena é íngreme, úmida e fértil. Aos pés dela vivem os Malaquias, janela com tamanho de porta, porta com autoridade de madeira escura. […] Debaixo da construção a terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical.» Com um dos mais belos arranques da recente literatura em língua portuguesa, Os Malaquias, primeiro romance da paulista Andréa del Fuego (Andréa Fátima dos Santos, n. 1975), venceu o Prémio José Saramago 2011. Atribuição muito justa para uma obra de exceção entre a nova ficção brasileira, há muito (demasiado) tempo dominada pelo universo urbano. No vale fundo da Serra Morena, depois totalmente alagado para se tornar reserva hidroelétrica, um casal morre fulminado por um raio na cama, na sua casa pobre, os três filhos dormindo «aninhados em forma de embrião» no quarto ao lado. Nico, Antônio e Júlia tomaram os nomes do avô e dos tios-avós da escritora, a história verdadeira da morte dos pais e um destino de orfãos. Os Malaquias é uma derivação das memórias de uma família mineira, num Brasil rural onde o fantástico ainda mora para lá da roça, do milheiral, da mata e das cachoeiras.
A própria autora reconhece que num texto tão próximo seria difícil evitar as metáforas. Até o seu olho de cada cor lhe parece herança dos bisavós que «morreram de raio». Inundada de memórias e imagens arcaicas («os dias iam devagar, engenho azeitado, as horas escorregando no tempo como calda em pudim»), a escrita muito sensorial de Andréa del Fuego recolhe força dessa ponte metafórica entre o passado e o presente que, embora datada e localista, fez a grandeza da literatura sul-americana. Nico cresce e trabalha numa fazenda até casar e recuperar a casa dos pais. Antônio, o anão criado pelas freiras francesas, regressa à Serra para viver com o irmão e a cunhada. Júlia é criada de servir da senhora que a adota, por fim costureira de sucesso, «sempre um intervalo entre ela e o ambiente». Geraldina, mãe do fazendeiro Geraldo («dono até do que não tinha»), descendente de índios, é o espírito que acompanha a história, «circula como pó de uma penteadeira não encerada». Excessivo no final, o delírio fantástico abre uma porta para outro mundo, hoje apagado e esquecido, mas ainda cheio de vida.
Os Malaquias, Andréa del Fuego, Círculo de Leitores, 265 págs.
SOL 27-01-2012
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