«Nada acontece verdadeiramente até estar escrito», disse Virginia Woolf (1882-1941) a Nigel Nicolson, filho da sua amiga (e amante) Vita Sackville-West. A convicção fê-la escrever desde muito pequena, com entrega, convencida de que, tal como a irmã Vanessa seria uma grande pintora, ela tornar-se-ia a grande escritora entre os Stephens, uma «família intelectual, muito nobre de nascimento num sentido livresco» (ensaio Eu Sou Snobe?). Em 1915, aos 33 anos, Virginia cumpriu o sonho com a edição da primeira obra de ficção, A Viagem.
Trabalhado até à exaustão, o romance imitava os retratos sem definição exacta dos rostos que, entretanto, Vanessa criava na tela. Virginia descobrira «uma linguagem corporal sem rosto» (Nicolson), a aplicação do modernista método stream of consciousness (fluxo de consciência), a recriação no papel da livre, espontânea e anárquica torrente interna de pensamento, sensações e memórias de cada personagem. Para estas pouco mais de 400 páginas de profundo esteticismo e agudíssima percepção, a escritora transferia também as experiências de infância ou com o grupo Bloomsbury, o trauma da perda da mãe e de uma meia-irmã (aos 13 e aos 15 anos – a mãe da protagonista, Rachel, morre quando ela tem 11), depois o da morte do pai (aos 22 anos) e de cíclicas depressões e perturbações mentais (que culminam no suicídio, aos 59 anos).
Viajamos pelo interior de Rachel Vinrace, aos 24 anos, enquanto esta viaja até à América do Sul num navio do seu pai, seguindo uma rota de aprendizagem, habitada por diversas caricaturas eduardianas e por um sentimento de sensível e angustiada estranheza feminina do mundo, central em toda a obra de Woolf. Com o título inicial de Melymbrosia, acredita-se que a escrita do romance acompanhou e reproduz, ela mesma, a maturação intelectual da autora (em 1981, Louise DeSalvo publicou uma recriação do texto de 1912, prévio a extensas revisões). Mais acessível do que as obras-primas posteriores sobretudo pela fluência e justeza dos diálogos, A Viagem introduz já a personagem de Mrs. Dalloway e lê-se como espantosa arqueologia do génio de Woolf. Repete Rachel: «É a maneira como dizemos as coisas que importa, não acha, e não as coisas em si?»
A Viagem, Virginia Woolf, Editorial Presença, 410 págs.
SOL/ 26-06-2011
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