O romance abre com o relato de um lauto jantar na nova residência dos Buddenbrook, donos de uma próspera empresa de cereais. Após inesquecíveis desfile de personagens e sucessão de «comida boa e pesada, servida em pesada baixela de prata, acompanhada de um vinho excelente e pesado», o menino Christian, de sete anos, «tão parecido já com o pai [o jovem cônsul Thomas Buddenbrook] que se tornava ridículo», sente-se «mal como o diabo». Acudindo-lhe, o doutor Grabow perscreve a dieta rigorosa de asa de pombo e uma fatia de pão francês. Ao transcrever os seus pensamentos, o escritor judeu alemão Thomas Mann (1875-1955) abre a elegante crítica social no seu primeiro romance, Os Buddenbrook, iniciado aos 21 anos e editado aos 26, em 1901.
Grabow esboça «um sorriso indulgente, com um quê de melancolia à mistura», e pensa que não será ele a mudar «os hábitos de vida de todas aquelas famílias de comerciantes bem sucedidos, abastados e instalados na vida». Christian, como os seus pai e avô, terá uma vida sedentária, intercalada com a desgustação de pratos pesados e selectos que, por fim, talvez lhe causem uma morte inesperada. Era essa a impositiva ordem natural das coisas daquele mundo e nada parecia abalá-la. E, no entanto... suceder-se-ão cerca de 600 páginas, quatro gerações e meio século de transtornos sociais e internos no «livro da família» dos Buddenbrook, no norte da Alemanha.
Recém-editado em excelente tradução de Gilda Lopes Encarnação, Os Buddenbrook é um portentoso documento histórico (sobre a transição de século e padrões sociais) e literário (sobre a transição do realismo novecentista para o simbolismo e o existencialismo). No posfácio, a tradutora pergunta-se por que ainda interessará ao leitor do século XXI. E aponta no percurso de Thomas e dos irmãos Buddenbrook a tensão central em Mann: «a oscilação contrapontística entre a realidade burguesa, pragmática e implacável, e a vida, mais profunda, do espírito.» Em Os Buddenbrook, saboreia-se a complexidade e o tom algo passado temperados pela objectividade realista e poderosa imagética de Mann. Hanno, o alter ego do autor, simboliza a procura de verdade pela arte contra os atávicos valores burgueses. Uma luta datada, mas ainda sem conclusão.
SOL/ 03/06/2011
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)