No histórico romance O Complexo de Portnoy, o escritor judeu norte-americano Philip Roth exclama, na voz do protagonista: «Sou o filho de uma anedota de judeus — só que não é anedota nenhuma!» Inimitável porque sustentado numa história milenar de diáspora, anti-semitismo ou integração, o humor judaico exprime-se nos limites do orgulho de pertença e da consciência do valor de si mesmo cruzados com os limites da mais tortuosa auto-crítica. É do disssecar desta conjugação (também do próprio lamento pela sua existência) que se alimenta o brilho de A Questão Finkler, do britânico Howard Jacobson, o primeiro romance humorístico a conquistar o Man Booker Prize (em 2010). A proposta é uma inteligentíssima reflexão sobre a realidade actual da 'judeicidade' inglesa — no livro, apresentada como «a Questão Finkleriana», a partir do nome de uma das três personagens centrais: Sam Finkler — e do anti-semitismo.
Aos 49 anos, o 'goy' («não-judeu», em iídiche) Julian Treslove vive numa permanente «sensação de perda». Quando é assaltado por uma mulher que ele pensa ter-lhe chamado «seu judeu», percebe que lamenta, afinal, a perda de algo que nunca teve: identidade judaica. Para ele, os «finklers» (judeus), todos, no mínimo, primos em terceiro grau uns dos outros, possuem, por dom genético e de lealdade à família e à herança comum, o «bom gosto intelectual», o «calor animal» da aragumentação, «uma espécie de falta de memória para o fracasso, uma veia para a ousadia, para impressionar», até mesmo pénis dessensibilizados, mas muito eficazes. Curiosamente, para Treslove, o muito invejado símbolo máximo do «judeu» é o seu ex-amigo de escola Sam Finkler, um filósofo rico, arrogante e volúvel, um racionalista anti-sionista que odeia «judeisismos» e se envergonha das acções dos judeus («correção, dos israelitas»).
Embora eleja como principal a perspectiva de Treslove e tempere o choque entre as figuras de Treslove e Finkler com o romantismo desmoralizado de um terceiro protagonista (o judeu checo Libor), Howard Jacobson monta todo o enredo d´A Questão Finkler no irónico jogo de relações entre duas identidades trocadas, em duas pessoas que questionam, cada uma por si, a sua própria identidade estereotipada. Desde a estreia (Coming From Behind, 1983) comparável ao Roth escandalosamente divertido dos primeiros anos, Jacobson diz que, quando faz comédia, «ela sangra». Distante do humor caricatural de Woody Allen, hoje datado, o escritor arrisca até a mais dura piada anti-semita («Os judeus não confiam na fidelidade das mulheres, por isso só pode ser judeu quem nascer de uma vagina judia»). A Questão Finkler explora sem cessar todos os pontos de vista possíveis no ataque ou na defesa da judeicidade e é sobre esse fundo de dilacerada altercação que, a espaços, nos rimos. Excelentes construção frásica e de enredo e utilização do poder simbólico da linguagem sustentam também este romance de debate, nunca de caricatura ou consolação. Espécie de meditação tragicómica, A Questão Finkler exalta o humor como balança entre o que se é e o que se poderia ser. No entanto, para grande parte dos leitores 'goyim' (não-judeus), pode significar um caso sério de imersão num debate que lhes é estranho. Ou, como diria Treslove: «Com os judeus, nunca se sabia o que era piada e o que não era.»
A Questão Finkler, Howard Jacobson, Porto Editora, 372 págs.
SOL/ 01/04/2011
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)