Primeiro publicado em 1997 e há muito esgotado, reedita-se O Cânone Ocidental, do norte-americano Harold Bloom, hoje com 80 anos de idade, um dos grandes mestres do ensaísmo crítico e teórico literário. Tratado fundamental de referenciação canónica da literatura ocidental, foi escrito em 1994, não para o público académico, mas sim para o «leitor comum», que «não lê por prazer fácil ou para expiar culpas sociais, mas para dilatar uma existência solitária». E, no entanto, funcionou, e ainda funciona, como uma bofetada em todos os teóricos, críticos e literatos que, desde meados do século XX, proclamaram cada obra literária como um objecto estético que se basta a si mesmo como referência, independente e única. Para mestre Bloom, e ele explicitou-o logo no início da carreira (The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry, 1973), um texto poético ou de ficção é sempre uma resposta, mais ou menos desviante, a um texto anterior, seu precursor na genealogia da tradição literária. Livres, mas em diálogo com o passado, libertas dos grilhões formais mais ou menos herméticos e ortodoxos (sobretudo os da teorização pós-modernista), a leitura e a discussão literárias são, na essência, actos solitários de sensibilidade, descoberta, subversão e estranhamento («um modo de originalidade que ou não pode ser assimilado ou, então, tanto nos assimila que deixamos de vê-lo como estranho»). Só assim a literatura se torna uma experiência de amor e «prazer difícil», legado universal (atributo conferido apenas a Shakespeare, Dante, Cervantes, talvez Tolstoi) e imortal. Como no caso dos 26 escritores-autoridades estudados «com nostalgia» e esmiuçados em destaque neste O Cânone Ocidental.
Exemplos maiores? Shakespeare e Dante. Para Bloom, eles 'são' o cânone. «O que existe para além deles é o que eles absorveram e o que os absorve a eles.» Por isso, nestas quase seiscentas páginas, de forma directa ou indirecta, Shakespeare e Dante inundam tudo. Aceitemo-lo sem ressentimentos, pede o autor. É à «acuidade cognitiva, energia linguística e poder de invenção» das suas obras que os escritores contemporâneos devem responder, num jogo perpétuo de competição e contaminação. O cânone de Bloom nasce em Homero, passa por Fernando Pessoa e termina em Samuel Beckett e no «nosso tempo caótico». Pelo caminho, como no título de outro importante ensaio de Bloom, ensina-nos Como Ler e Porquê (Caminho).
O professor e crítico literário Manuel Frias Martins, responsável pelas excelentes tradução, introdução e notas deste «livro obrigatoriamente útil», situa-o no contexto onde ele nasceu: o da crítica forte à vida cultural norte-americana, ao 'politicamente correcto', ao «que hoje é tido como útil nos estudos literários», ao olhar rancoroso sobre qualquer cânone. Bloom faz uma elegia do «valor estético» e é inebriante em algumas das suas interpretações (Proust é ciúme sexual e auto-suplício; Sancho é tão herói como Quixote; Montaigne marca a autoconsciência céptica; Satanás define O Paraíso Perdido; Pessoa é um Walt Whitman «renascido»; destacam-se em Borges a «agressividade estética» e um «curioso panteísmo»). Justificando a grandeza canónica de cada autor eleito, obriga-nos a lê-lo e a ler outros, fascinados pelos laços de extrema erudição que tece entre todos. O Cânone Ocidental é um enorme ensaio escrito 'de dentro' da grande literatura por um leitor gigante.
O Cânone Ocidental, Harold Bloom, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 586 págs., 19.90 euros
SOL/ 25-02-2011
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)