Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quarta-feira, maio 31, 2017

Paolo Cognetti | Dar nomes às coisas nas montanhas

 

História de dois homens e uma montanha, o romance As Oito Montanhas colocou Paolo Cognetti em destaque nas livrarias e nas mesas de cabeceira de toda a Europa. Em entrevista, o escritor italiano, que vive há oito anos a dois mil metros de altitude, apresenta-se como um novo realista, um sereno combatente contra o ruído e a cacofonia contemporâneos.

Henry David Thoreau defendeu, em Walden (uma referência importante no seu romance): “A maior parte das pessoas tem vidas de desespero resignado. Aquilo a que chamamos resignação não passa de desespero crónico. Da cidade desesperada ao país desesperado, não nos resta senão procurar consolo na coragem das martas e dos ratos-almiscareiros.” Concorda?
Essa passagem é ainda mais verdadeira hoje do que no tempo de Thoreau. Os meios de comunicação atuais são sobretudo meios de entretenimento. Tenho horror à nossa obsessão por preencher cada minuto com qualquer coisa. Porque acredito que o silêncio e a solidão escondem verdadeiros tesouros. O meu maior tesouro é a escrita, que nasce do rumor e do silêncio. O maior prémio que este livro me deu foi o encontro com a solidão na montanha. Hoje, a cidade, real ou virtual, está cheia de ruído, que nos suga e nunca nos deixa ficar a sós.

A sua paixão por Nova Iorque, entre os 20 e os 30 anos, [escreveu dois diários de viagem sobre a cidade] nasceu a partir da leitura da literatura norte-americana e antes sequer de visitar a cidade. Quem foram os seus mestres norte-americanos e de que modo o influenciaram?
Curiosamente, são todos mais de oeste do que de leste. Existe uma divisão clássica entre uma literatura nova-iorquina, citadina, muito próxima da europeia, e uma outra, ligada ao mito da fronteira e ao Oeste. Sinto-me mais próximo desta última e de autores como Jack London, Ernest Hemingway, Raymond Carver ou Charles Bukowski. Foram eles que me ensinaram que uma história não nasce entre quatro paredes, através de um processo intelectual; ela nasce, antes de mais, da vida e da sua pulsação. Ensinaram-me que o que vivemos pode ser transformado em literatura.

Essa ligação aos EUA mudou também a sua relação com a literatura italiana?
Sim, muito. A minha rebeldia de estudante fez-me a rejeitar a literatura italiana e procurar na literatura americana algo que fosse só meu, descobertas autodidatas, que eu achava muito mais válidas do que quaisquer outras. Mas quando, há oito anos, fui viver para a montanha, aproximei-me dos autores italianos que procuraram uma língua em que pudessem contar a experiência vivida nos Alpes. É o caso de Mario Rigoni Stern, cujos livros li e usei como uma espécie de enciclopédia. Outros escritores da época de ouro da pós-Segunda Guerra, como Primo Levi ou Cesare Pavese, também foram uma descoberta de maturidade.

Há em todos eles um certo lirismo na procura de um trilho individual que os leve para longe da violência e da negritude da guerra e da cidade...
Tinham também um enorme sentido cívico, político da literatura. Para eles, o escritor era um intérprete importante de uma sociedade e de uma época e também de certos temas políticos prementes. Achavam que estavam a construir um mundo novo. Admiro muito o sentido moral que os guiava e creio que, hoje em dia, quando restam tão poucos autores assim, é urgente repensar a literatura sob esse prisma e resgatá-la da ligeireza que, em geral, tomou conta da arte.

Ter um sentido moral não é de todo uma tendência atual e é facilmente confundido com ser-se moralista... O seu romance pode, precisamente, ser lido como um conto moral ou político, sobre a distância entre os ideais e a realidade de uma cultura cada vez mais materialista. Aceita esta descrição?
Não pensei num tema preciso ou numa mensagem a transmitir, mas, antes de mais, numa história a contar, composta, em parte, pela minha própria vida e pela vida de várias pessoas que conheço. Mas aceito, a posteriori, que o romance contém uma mensagem moral.

A nossa geração [que tem hoje 30 e 40 anos] reagiu contra a ideia, ou foi impedida pelas circunstâncias, de construir uma família, uma casa, uma carreira, e, em parte, rejeitou a cidade, como espelho da ruína desses sonhos e da fragilidade e da incerteza da vida atual.
Vivemos uma crise económica que é também a crise de vários modelos de vida. Nasci e cresci em Milão, uma cidade fundada no trabalho. Com a crise económica, de produção e de emprego, Milão tornou-se um sítio hostil, onde a vida é muito dura. Mas há qualquer coisa de belo na crise e na necessidade de encontrarmos novos caminhos... Neste aspeto, somos mais afortunados do que os nossos pais, que tinham a estrada traçada de antemão. Para nós, é tudo muito mais misterioso, confuso e difícil. E é mais bela a perspetiva de que cada pode procurar e encontrar o seu próprio caminho. Até porque, atenção, não penso que devamos ir todos viver para as montanhas. [risos]

Pergunto-me quanto deste movimento atual de rejeição ou fuga à cidade, de procura de uma vida mais simples e despojada, é genuíno ou traduz, apenas, mais uma moda...
Bem, que a ecologia seja uma moda é algo muito bom. Por outro lado, a renúncia e a vontade de se libertar de coisas supérfluas e de viver de uma forma mais simples nunca mais estarão na moda. Porque são movimentos contrários a tudo o que é sugerido, valorizado, veiculado, hoje em dia, pela publicidade e pela lógica e apelo do consumo. O despojamento até pode estar na moda, mas será apenas uma miragem dele, não a sua substância.

É reconstruindo um velho abrigo na montanha e para tal colocando as suas vidas em pausa que Pietro [narrador e protagonista de As Oito Montanhas] e Bruno, o seu amigo de infância e de montanha, cimentam a sua amizade na idade adulta. O cenário do Vale de Aosta é também um exemplo da luta entre a intervenção humana e a floresta, que recuperou os seus domínios após a guerra e o abandono pelos homens. É como se os caminhos a escolher se bifurcassem, entre o natural/autêntico e o superficial, o que está previamente construído e o que está ainda por construir.
Como disse, fui muito influenciado pela ideia de fronteira americana, de algo para lá do qual tudo é selvagem. Foi isso que primeiro procurei na montanha. Todavia, na Europa não há nem Alascas, nem naturezas selvagens... Tudo é muito antropizado, está habitado desde há milénios. Andar nos Alpes significa reencontrar as marcas de uma civilização antiga que, pouco a pouco, desapareceu. Os novos montanheses estão, na realidade, a reabilitar locais abandonados, a pôr de pé algo a partir das ruínas pré-existentes. Esta é a nossa experiência europeia; não somos um mundo novo. Seria muito mais luminoso colonizar a natureza selvagem. Habitar um local cheio de signos e de memórias atrai-me, mas, ao mesmo tempo, tem algo de deprimente, encerra uma atmosfera de cemitério.

Pietro vive, ele mesmo, entre a importância do legado do pai [que lhe apresentou e o levou a explorar a montanha] e de a ele corresponder e a necessidade de matar o pai, rejeitando-o e abrindo novos caminhos. No abrigo que ele e Bruno constroem é gravado o seguinte epitáfio: “A memória é o melhor abrigo.» Será mesmo?
Sim, penso que é.

No entanto, o romance é muito crítico em relação ao peso dos laços familiares nas escolhas que podemos fazer...
Passamos a vida em conflito com isso. Por um lado, na primeira parte do livro, há uma certa nostalgia da infância. Por outro, existe uma raiva latente contra a família. As duas forças estão presentes em todo o romance. Mas, afinal, não vivemos todos assim: divididos entre a vontade de rejeitar o pai e a de fazer as pazes com ele?

Talvez também nisso a virtude esteja no meio, algures entre os dois apelos.
E talvez só a atinjamos na meia-idade, quando se acalmam os radicalismos da juventude e da primeira idade adulta. Aos 20 ou 30 anos, eu era muito radical; depois, fui começando a rejeitar as categorizações absolutas. Agora, cada vez procuro mais uma linha de equilíbrio, também a nível dos afetos.

No seu caso, viveu a experiência de criação de um projecto cultural coletivo, no bairro milanês de Bovisa; um projeto idealista que, disse algures, acabou corroído pelo cansaço, peça inveja e pelo ciúme...
Mas, antes da desilusão, houve um grande encantamento. Milão tem uma tradição operária e política muito fortes. Nos anos 1990, ainda estava viva a influência dos centros sociais e culturais que surgiram em espaços ocupados (como fábricas abandonadas) desde a década de 70. Sempre estive muito ligado a esse tipo de experiências políticas urbanas. Tudo isso se foi extinguindo em Itália a partir do ano 2000, graças ao regresso da direita, a Berlusconi e a tudo o que ele representou. Esses foram anos muito pesados para mim, de muita desilusão política e de luto pelo fim de muitos projectos bonitos. Foi por isso que fugi à cidade.

E às pessoas?
Também, um pouco. No início, fui para a montanha à procura de solidão, paz e descanso. Mas, aos poucos, tal como Pietro e Bruno foram construindo a casa, eu fui-me afastando da ideia de viver num ermitério. Cada vez se tornou mais importante a colaboração com as pessoas de quem gosto. Aliás, este ano vai lugar a primeira edição de um festival de arte, literatura e música da montanha, que criei e que vou coordenar. Entretanto, comprei e estou a reconstruir um velho estábulo, que será um refúgio cultural e artístico, um pólo de união entre os habitantes da montanha e os citadinos. Agora, não quero, de todo, isolar-me. Pelo contrário, estou num momento muito construtivo. Jon Krakauer estava certo quando disse [em Na Natureza Selvagem]: “A felicidade só é real quando partilhada.”

No romance, Bruno, o montanhês, diz: “São vocês, da cidade, que lhe chamam natureza. É tão abstrata na vossa cabeça que até o nome é abstrato. Nós aqui dizemos bosque, pasto, rio, rocha, coisas que se podem apontar com o dedo. Coisas que se podem usar. Se não se podem usar, nem lhe damos nome porque não servem para nada.” Como é que define este dialeto da montanha? Que papel teve na construção do romance?
A língua deste livro foi algo que eu conquistei. Nasci e cresci na língua da cidade. Para escrever a montanha, tive de aprender uma outra. Isso correspondeu também a uma declaração poética; à busca de uma escrita que rejeitasse os adjetivos e fosse composta quase só por substantivos. Cheguei à conclusão de que os nomes das coisas são aqueles que melhor servem para contar uma história honesta.

Quis afastar-se da “retórica da montanha”, das imagens-comuns que têm a ver com o encantamento da montanha. Mas a principal metáfora do romance está, afinal, contida nesta frase: “Seja o que for o destino, habita nas montanhas que temos acima da cabeça.” O que não deixa de ser uma certa retórica do paraíso da montanha, certo?
Essa é a montanha tal como o pai de Pietro a sonhava: um paraíso irreal, visto a partir da cidade, ao fundo, distante. Eu queria que essa montanha, tal como aparece no início do romance, fosse sendo substituída pela montanha real e, no final, pela montanha habitada, que já não é idílica: continua bela, mas é dura e desafiadora.

Tecnicamente, como é que conseguiu dar à montanha não só uma forma, mas também uma substância, decisiva também para as relações entre as personagens?
Nas descrições da montanha, tentei evitar o uso do verbo “ser”. Quis descrevê-la como algo vivo, como uma personagem que se move. A montanha não é estática, muda a cada minuto e tudo na sua paisagem é movimento. Nesta perspetiva, Pietro e Bruno reagem a algo vivo. Eles falam muito pouco sobre si mesmos e, como diz o pai de Pietro no início, não lhes é permitido lamentarem-se. Por isso, os seus estados de alma refletem-se, de modo misterioso, na montanha à sua volta. Ela pode estar em plena floração primaveril e, ainda assim, surgir escura e fechada, porque é assim que a personagem a vive. O humor da montanha é influenciado, transformado, pelas personagens.

Pietro e o pai, Bruno e a mãe, são personagens enigmáticas. O silêncio faz parte delas e representa uma forma de expressão. Até que ponto o silêncio é importante na literatura?
Na literatura contemporânea, ainda estamos muito presos à prevalência do uso da visão, daquilo que se pode ver. Estudei cinema precisamente porque pensava que tudo o que é descrito numa história corresponde ao que se vê ou dá a ver, e não ao que se pensa ou é pensado. Se as silenciarmos, as personagens são obrigadas a expressar os seus sentimentos através do corpo e do movimento. É isso o que mais me interessa. Talvez porque, como escritor, me sinto mais observador do que escultor ou criador de mundos. E porque acredito que o corpo não mente.

Federica, namorada de Paolo, que o acompanha durante a entrevista e serve, quando necessário, de tradutora, diz: “Ele é assim também com as pessoas. A maneira como elas se exprimem fisicamente mostra-lhe muito mais sobre elase o que são do que aquilo que elas dizem. Ele acredita mesmo nisto!

É curioso que, para criar um retrato mais autêntico da montanha e das personagens, o Paolo rejeite o instrumento literário realista por excelência: o diálogo. Foi através dele que os chamados realistas deram voz àqueles que não a tinham: por exemplo, os operários ou os pobres. O Paolo, em vez disso, propõe que, para dar a ver as personagens, se explore o silêncio.
É verdade, nunca tinha pensado nisso. Gosto muito, por exemplo, das personagens silenciosas, mas cujo diálogo interior está sempre presente, em Kent Haruf, Cormac McCarthy, Hemingway or Carver. Não se trata d a voz interior modernista de Ulisses de Joyce. É algo ligado ao corpo, à ligação física das personagens com os objetos, os animais, os elementos naturais. É algo muito anti-urbano, no sentido em que a cidade quase que anula o corpo. Pelo contrário, para mim, a montanha significou uma redescoberta do corpo e do mundo, muito libertadora, também para exprimir sentimentos.

Em entrevista ao Corriere della Sera, disse que o seu motto de escrita é a seguinte frase de Santo Agostinho: “Ama e faz o que quiseres.” Como é que isso se traduz no afeto pelas personagens e na liberdade que lhes é dada pelo escritor?
Significa não escrever uma história na perspetiva do demiurgo, que manipula as personagens como criaturazinhas ao seu serviço. Escrevo porque quero bem às pessoas. Por detrás deste romance, está um grande amor pela minha mãe, pelo meu pai, pelo meu amigo da montanha. Quis, antes de mais, contar a história do meu pai, uma figura, obviamente, problemática para mim, e quis dizer-lhe que gosto muito dele, apesar dos nossos conflitos e da nossa incapacidade de comunicação. Esse é o principal motivo porque escrevo e crio histórias: dar conta do meu afeto pelas pessoas.

Acha que foi também por causa da autenticidade desse afeto que este romance conquistou de forma tão arrebatadora os leitores?
Os leitores acharam-no verdadeiro, porque, para mim, ele também corresponde a algo verdadeiro. Perguntam-me muitas vezes quanto da história é autobiográfico, mas isso não é importante; até porque é impossível distingui-lo do que é ficcionado. Há momentos da história que foram imaginados ou sonhados, mas a maioria provém de matéria real e da minha ligação real a determinadas pessoas...

E à natureza?
Sim, num sentido mais humanista do que naturalista: o de uma natureza que serve o homem, que o faz pensar e que pode trazer-lhe felicidade e paz.

As Oito Montanhas, Paolo Cognetti, Dom Quixote, 223 págs., 15.90 euros

Sol, 13-05-2017
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)