Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

domingo, setembro 01, 2013

Herberto Helder | A morte no gerúndio

 
Ler o novo livro de poemas de Helberto Helder rasga, dói, ilumina, é um intenso choque de beleza, originalidade e lucidez. Por isso, Servidões, composto por 10 páginas de prosa autobiográfica e 73 poemas inéditos, deve ser acolhido pelo leitor como uma dádiva rara. É o presente (para já, reservado: ao todo são só três mil exemplares impressos; os poemas serão incluídos numa próxima Poesia Toda) de um poeta que se entregou ao serviço d﷽﷽﷽﷽﷽﷽nteeue, em 82 anos de vida, se dedicouu noram todos/ eu eu respondiment_______________________________________________ço intransigente de procura «da medida intrínseca,/ a densa meditação que conduz ao poema puro»; «o poema soberbo acerca do fim da inocência». Aos 82 anos de idade, conclui: «um pequeno poema bastava para meter tudo lá dentro,/ e a minha vida como nota,/ rápida, ríspida,/ nas margens».
Então, que se leiam estas páginas, repletas de metapoesia e de grande poesia, como de um «livro [que] vai sendo o seu prefácio, e o posfácio, a inacessível e prontamente acessível evidência». Este é o testemunho de quem, «iminente para sempre», se diz e se lega aos outros nesse ponto de passagem entre o momento em que nasceu «de si próprio», dando verbo ao mundo (a infância na Madeira, «mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgânicas») e o momento em que a morte se aproxima (com «técnica atenção») e ele a espera, atónito, estremecendo, mas sereno, crente de que «só morremos de nós mesmos».
Cinco anos após a publicação de A Faca Não Corta o Fogo, 55 anos após o livro de estreia (Poesia – O Amor em Visita), Herberto Helder diz-nos: «dos trabalhos do mundo corrompida/ que servidões carrega a minha vida». Uma vida que desejou «subtil, unida e invisível», uma vida «que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical». A nobreza e integridade do que lemos nestas páginas está na revelação profundamente confessional de alguém que viveu de facto e só quer que o lembremos como: «escritor de poemas». De mundano, apenas uma frase ouvida num transporte público: «as luzes todas acesas e ninguém dentro da casa». E até nela, misteriosamente, se reflete a coerência e o sentido da opção pelo abandono do mundo: Herberto Helder sempre recusou a exibição pública (nada de fotografias, entrevistas e aparições públicas) ou o circo dos círculos da vida literária («disseram: mande um poema para a revista onde colaboram todos/ e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque/ nada se reparte: ou se devora tudo/ ou não se toca em nada»).
Na prosa inicial, é referida a «insolvência biográfica» que, afinal, ali se contraria, o poeta largando sinais de como terá crescido «no meio do atordoamento de flores e animais» e de uma espécie de experiência demoníaca da inocência. Herberto fala desse dentro de si mesmo que sempre quis íntimo e secreto. Mas depressa sinaliza que todos os poemas estão entregues «ao serviço de uma só inspiração», essa que «dirige profundamente a nossa vida». Neles, a vida real é como uma paisagem transfigurada, sobre a qual domina o silêncio, só quebrado pela ação do verbo e dos encontros. Se nesta casa não encontramos o homem, é porque só assim poderemos entrever nela, entre o dia e a noite, «uma risca de luz», a poesia: «luz suposta ao meio, alta, sumptuosa,/ morro da sua risca exacta,/ ou morro da minha vida nenhuma».
Na ascese e exigência por que optou, Herberto Helder não se revela um místico, mas antes um vedor da justeza e iluminação das palavras. Ele é o «devorador», que quis «esquivar-se à sintaxe e abusar do mundo», em poemas «com as costuras das gramáticas inventadas tortas». O segredo que esta poesia revela é o de uma língua pessoal, reservada e restrita, que nos é dada clara, mas espessa e sempre lúcida: «escrevi o poema cada vez mais curto para chegar mais depressa,/ escrevi-o tão directo que não fosse entendido,/ nem em baixo,/ nem em cima,/ nem no sítio do umbigo que se liga ao sangue impuro,/ nem no sítio da boca onde se nomeia o sopro,/ e ficou assim:/ económico, íntimo, anónimo/ ou:/ chaga das unhas cravada na carne irreparável».
Reluzem (e desmorrem) nestas páginas o sangue, a faca, o osso, o nervo, a mãe, as putas, o sangue, o sopro, a erudição, a cegueira, a memória, a poalha, a fome e o corpo a corpo de uma vitalidade poética e nominal, mas toda carnal. Sobre tudo, a trabalhosa delicadeza da palavra exacta («quero encontrar uma voz paupérrima»; «o terror da beleza delicadíssima/ tão súbito e implacável na vida administrativa»). A dor não é académica («que me devore um buraco ou fora ou dentro») nesta «vida aguda, atenta a tudo», dedicada à procura da música «sob a força devastadora» e o silêncio da poesia. Aqui, a calma profunda que se pressente no poeta é como a nudez de um moribundo, exposta e vítrea, completa.
Herberto Helder escreve sobre o agora, não se nega ao desprezo pelos «burrocratas», nem às responsabilidades da sua «geração inteira,/ inclitamente vergonhosa,/ que em testamento vos deixou esta montanha de merda». Servidões é tecido, habitado e sustentado por uma profunda liberdade. A liberdade de quem viveu ciente de que «o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta, meia volta, e já era» e procurou «o nada disso tudo». Hoje, aos 82 anos, diz-nos: «adeus a quem vê, que eu morro inteiro para dentro,/ e vejo tudo só de entendê-lo». De Herberto Helder, ficará o fogo forte e o silêncio.

Servidões
Herberto Helder
Assírio & Alvim
124 págs., 22 euros

SOL/ 07-06-2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)