Diogo Pires Aurélio seleciona exemplos-chave
dos 500 anos de irradiação das ideias de Maquiavel na história do pensamento
político. Para o reabilitar como um visionário radical, defensor de uma verdade efetiva das coisas, que não
dispensa o mal e o conflito como termos de análise e de exercício necessários à
política e que mantém uma premente atualidade.
Demitido no ano anterior das funções de
secretário da segunda chancelaria em Florença, sob a acusação de ser um
conspirador anti-Médici, desempregado, refugiado na sua casa no pequeno burgo
de Sant’Andrea in Percussina, comuna de San Casciano, Nicollò Machiavelli, então
com 44 anos (morrerá em 1527, com 58), escreve com regularidade ao seu amigo Francesco
Vettori, embaixador de Florença na corte pontifícia de Leão X. Uma dessas cartas,
datada de 10 de Dezembro de 1513, é o principal testemunho do quotidiano,
estado de espírito e propósito de Maquiavel neste anunciado momento da escrita
do «opúsculo De principatibus», a
base para a obra máxima O Príncipe, cuja primeira edição só surgirá,
póstuma, em 1532. «Chegada a noite, volto para casa e entro no meu escritório.
Dispo a roupa do dia a dia, cheia de lama e de lodo, e cubro-me de panos reais
e curiais. Assim, vestido decentemente, entro nas antigas cortes dos antigos
homens, onde sou por eles amavelmente recebido e onde como do único alimento
que é feito para mim e para o qual eu fui feito.»
É a partir de semelhante intenção de diálogo
com um clássico que a vibração das ideias e o estilo de Maquiavel ocupam Diogo
Pires Aurélio, professor de Filosofia Política na Universidade Nova de Lisboa,
consultor de Cavaco Silva para os Assuntos Culturais, ex-administrador da
Imprensa Nacional Casa da Moeda, ex-presidente da Comissão Nacional da Unesco e
ex-diretor da Biblioteca Nacional. Em entrevista à LER em Abril de 2008, o ensaísta
referiu-o como «um autor a pensar a política, tal como ela é, a partir do bulício
da rua», e sustentou: «Ao lado dele, toda a história do pensamento político tem
um ar de medicina para anjos, os quais, como se sabe, não têm corpo.» Em 2009,
a sua tradução, introdução e notas para O
Príncipe (Temas e Debates/Círculo de Leitores) recebeu uma menção honrosa
do Prémio de Tradução Científica e Técnica de Língua Portuguesa da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia e da União Latina – anote-se a existência de
outra tradução da obra do italiano, datada de 2008, assinada por Maria Jorge
Vilar de Figueiredo, com introdução e notas de José António Barreiros, para a
Presença. Já em 2012, saiu, pela Almedina, Maquiavel
e o Maquiavelismo, reunião das conclusões do projeto de investigação «Atualidade
de Maquiavel», coordenado por António Bento para o Instituto de Filosofia Prática,
para o qual Pires Aurélio contribuiu com o ensaio «A fortuna, ou o imprevisível
em política», uma releitura do capítulo XXV de O Príncipe, esse livro «inclassificável, porventura definitivamente
incompreensível sob certos aspectos».
No ensaio Maquiavel & Herdeiros, recém-editado pela Temas e Debates/Círculo
de Leitores, Diogo Pires Aurélio refere o momento da correspondência com
Vettori como aquele em que Maquiavel, seguindo precisamente a prática clássica da
leitura enquanto conversa travada com alguém, se encontra com os «seus»: os
historiadores antigos (e, note-se, não os filósofos). Será da fusão entre este
diálogo, a reflexão sobre a sua própria experiência política («15 anos durante
os quais eu me apliquei às artes do estado, não estive a dormir nem a brincar»)
e uma inegável vontade de a retomar que nascerá uma revolucionária ruptura com
a visão tradicional da política. Segundo Pires Aurélio, o político florentino
entende que as lições dos antigos devem ser colhidas não numa perspetiva teleológica,
mas, sim, como exercício de comparação entre experiências ocorridas sobre um
palco que «oscila amiúde»: o tempo, onde a ocasião e o acaso (a fortuna) jogam um papel importante,
ainda assim domável. Ler os antigos será constatar que «o mundo esteve sempre
do mesmo modo, teve sempre tanto de bom quanto de mal, apenas este mal e este
bem variaram de província para província» (Maquiavel). A conflitualidade social
existiu e existirá sempre entre os homens porque, inegável e inelutavelmente, o
bem e o mal coabitam em permanência; a consequência estratégica «é o facto de
uma opção constante pelo bem, por parte de quem detenha o poder, arrastar
necessariamente a sua queda». Assim, ainda segundo Pires Aurélio, «não é, pois,
o fim que justifica os meios, como pretende uma arreigada e mais ou menos
piedosa interpretação que se faz de Maquiavel: é o tempo». O estilo teórico de
Maquiavel é inaudito porque se centra «na resolução dos problemas do presente […]
e não na contemplação das verdades intemporais» (Michel Senellart) e se baseia no
elogio da vita activa e na ação política
tida como amoral, isto é, em parte
existente fora da moralidade, porque concentrada nas «coisas tal como elas são».
O historiador da cultura Jacques Barzin, recém-falecido,
justificou como poucos o «horror hipócrita» suscitado pelo nome de Maquiavel: «os
intelectuais tendem a desejar que existam vilãos, de modo a poderem mostrar
sensibilidade moral, e Maquiavel está topo desse grupo execrado». Mas,
acrescentou, «com poucas exceções, os grandes espíritos do século XVI e de então
para cá têm reconhecido o seu génio e o valor moral dos seus ensinamentos». Não
foi a doutrina de Maquiavel, mas antes os meios que propôs para se alcançar a condição de príncipe
e manter o poder, que deram origem ao epíteto «maquiavélico», associado à quintessência
da conduta demoníaca. Defende Pires Aurélio: «a fractura por ele produzida na
história do pensamento político é, de algum modo, insanável e [faz-se]
irremediavelmente sentir, mesmo em formulações da política as mais avessas ao
maquiavelismo».
É nesta linha que Diogo Pires Aurélio coloca
a «herança» de Maquiavel, assim, entre aspas, e se dedica, nas 365 páginas de Maquiavel & Herdeiros, a fundamentar
uma recusa da tradição que toma o político florentino por «arauto da razão
instrumental posta ao serviço da política» e uma rejeição da leitura do
maquiavelismo feita pelos historicistas, pelos idealistas alemães ou pelos
atuais defensores do cosmopolitismo e de uma nova ordem internacional determinada por uma certa ideia de
racionalidade moral, jurídica e política (que, segundo cita do filósofo do
direito Danilo Zolo, «está a impor-se com a prepotência de um ídolo, não
obstante o seu carácter evolutivamente regressivo»). Ao ensaísta português interessa,
antes, repensar Maquiavel «nos antípodas de semelhantes devaneios», ou seja, a
partir do «seu paganismo renascentista e avesso a qualquer transcendência,
mesmo a transcendência jurídica do estado», a partir do «radicalismo antiplatónico
que faz da sua obra um horizonte aberto, a partir do qual é possível pensar a
liberdade e ao mesmo tempo o poder, antecipar o Estado mas também a sua
fragilidade como “deus mortal”». Interessa-lhe a «nudez primordial» dos textos
do político florentino. Pelo caminho, Pires Aurélio faz escolhas muito precisas
e aponta e analisa autores, teorizações e momentos históricos em que, no seu
entender, as ideias maquiavelianas se projetaram ou manifestaram de forma
singular: da formulação teórica da «razão de Estado» e dos modelos propostos
por Bodin ou Hobbes à «sofisticação revolucionária com que Lenine reinventa [o
Estado]», passando pelo Testamento Político
de Richelieu, pelo político e teórico americano John Caldwell Calhoun (defensor
da liberdade, paradoxalmente apoiado numa defesa da escravatura) ou pelas
convicções do calvinista alemão Johannes Althusius, para muitos o fundador do
federalismo moderno.
O caminho que Pires Aurélio se propôs
trilhar, leva-o, em oito capítulos, a explorar, ele mesmo, a capacidade de
deduzir o geral nas situações
particulares. É deste modo que procede a uma análise da incompreensão ou deturpação
das ideias de Maquiavel pelos teóricos da chamada «razão de Estado» (sobretudo
Giovanni Botero) e decorrentes ambiguidades e antinomias: «O debate sobre a razão
de Estado é, efetivamente, um debate sobre o maquiavelismo.» Reflete sobre os
conceitos de «casos de necessidade» ou de «caso de exceção» (paradigma base
para a política segundo Maquiavel), a partir da Antígona de Sófocles, das interpretações de São Tomás de Aquino ou
Carl Schmitt e das teorias do pacto e da representação por Thomas
Hobbes (a cujas concepções de guerra e de estado de natureza, relacionadas também
com contributos de Lévi-Strauss e de Pierre Clastres, será dedicado na íntegra
o quinto capítulo). Ilustra o «ocaso da teologia política, à medida que se
consolida o Estado moderno» (ou, como defende Michel Senellart, na passagem «do
mundo visível ao mundo previsível») a partir de uma inesperada análise da figura,
ações e ideias do cardeal-duque de Richelieu (segundo Luís XIII, «o homem do
jogo duplo», que não consta habitualmente da história do pensamento político).
Mas é nos três últimos capítulos [«A Federação
segundo John C. Calhoun», «A soberania como vontade e como representação» e «Lenine,
ou de como o Estado (não) se desfaz»] que melhor se intui que Diogo Pires Aurélio,
em diálogo com os textos maquiavelianos, orienta as suas reflexões também no
sentido de se «entender que a verdadeira relação com o passado nos põe em face
de um presente inédito, que o retorno às origens implica a criação de coisas
novas». Como para Maquiavel, perante uma sociedade subjugada pela desordem, «a única
saída [pode estar], não numa restauração dos tempos passados, como pretendem os
nostálgicos, ou na fuga para um tempo ideal, como propõem os utopistas, mas
numa repetição do gesto fundador, rompendo, se necessário violentamente, com o
passado e instaurando uma “forma” ajustada à “matéria” que é o presente». Isto é,
Pires Aurélio propõe-se «ir atrás da verdade efetiva das coisas», «como se
nenhuma razão as antecedesse e todos os acontecimentos não fossem senão uma
cadeia de efeitos, produzidos e inscritos pela ação do homem na fronteira entre
o presente e o nada, esse ponto em que verdadeiramente a história se faz». É
neste sentido que se entende o desenvolvimento sempre em fundo de questões como
a naturalidade do político, a natureza agonística de qualquer Estado, a crise
da soberania, as tentações centralistas ou a atualidade da revolução. No
centro, sempre, é colocada a possibilidade de Maquiavel ter sobretudo
evidenciado a «ambiguidade dos fundamentos de toda a ordem política», «mesmo a
desejada “ordem nova”, e desta forma alertado para os riscos acrescidos do
poder nos Estados em que, recalcando a sua natureza conflitual, ele se insinua
ou proclama como realização do Uno, encarnação da totalidade social
alegadamente reconciliada com a sua verdade profunda». Um alerta com inegável
atualidade.
LER/ Janeiro 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)