Viagem à corte da Dinamarca no romance histórico quase perfeito de Per Olov Enquist.
O rei, a rainha e o médico real. Christian VII, a sua mulher Caroline Mathilde, irmã de Jaime III de Inglaterra, e o alemão Johann Friedrich Struensee. O louco, a que não tem medo de nada e o «revolucionário de gabinete», iluminista. «Aqueles três.» O sueco Per Olov Enquist (n. 1934) juntou-os de novo num romance notável, datado de 1999 e recém-editado pela Ahab: A Visita do Médico Real. No estilo cunhado como «históricodocumentarista», Enquist relata a «era Struensee» (1770-1772), uma revolução fora de série, mas de curta vigência, no feudal, puritano e apodrecido reino da Dinamarca.
Em 1766, com 16 anos, Christian é coroado. Graças a uma educação de chicote, é um rapaz esguio e sensível, ora em espasmos, ora em delírio, ora em choro, ora em fúria destruidora. Obcecam-no culpas e castigos, o papel que a graça de Deus o encarregou de representar. Louco, talvez esquizofrénico, pensa e age por deixas, mas, capaz de lucidez vibrante, corresponde-se com Voltaire. Quando o livre-pensador Struensee entra ao seu serviço, o rei torna-se dependente dele, ao ponto de lhe entregar o governo do reino e o leito da rainha. Todavia, «desejar a rainha era tocar na morte». O idílio amoroso e reformador durará cerca de três anos, até um golpe palaciano do maquiavélico Guldberg condenar Struensee à morte, por tentativa de regicídio, Caroline à expulsão do reino, Christian a uma animalesca servidão a Guldberg e a Dinamarca a um regresso à «decência pietista».
Enquist é merecidamente um dos nomes-chave das letras escandinavas. Para ele, a História é a escolha das pessoas entre o que elas querem ver: a escuridão e a luz. A agilidade, a ironia, o tom direto do narrador, a justeza das imagens, a poderosa identidade emocional das personagens, tudo resulta num casamento quase perfeito entre o registo documental e o da ficção. Vemos Christian, sobre a cama, a brincar ao «jogo do rei e da corte ridícula» com os seus dois fiéis companheiros: um cão e um pajem negro. Assistimos ao sexo transcendente entre a rainha e Struensee – as descrições são sublimes. Conhecemos a raiz dos 632 decretos revolucionários de Struensee. Conhecemos como, por momentos, se abriu uma fenda na história e um homem colocou « uma alavanca por baixo da casa do mundo».
A Visita do Médico Real, Per Olov Enquist, Edições Ahad, 393 págs.
SOL/06-01-2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)