Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quarta-feira, maio 18, 2011

Para que servem os intelectuais?



Karl Marx, o intelectual mais influente dos tempos modernos, nunca pôs os pés numa fábrica, nunca pagou à sua criada, fumava e bebia imenso e, para cúmulo, detestava lavar-se. Enquanto escrevia O Capital, a extrema falta de higiene íntima provocou-lhe furúnculos no rosto, nas nádegas e no pénis. Leon Tolstoi, o mestre das descrições da Natureza, apostado na regeneração do homem e da sociedade, foi um egocêntrico snob, cruel e infantil, e, durante anos, um viciado em jogo e prostitutas. Jean-Paul Sartre, o papa do existencialismo, pregou a acção, mas nunca fez nada efectivo pela Resistência francesa. A feminista Simone de Beauvoir, com quem não se quis casar, apoiou-o sempre como chauvinista predador de alunas, amantes e «adoptadas». Norman Mailer serviu-se da vida privada como forma de autopromoção pelo escândalo, defendeu a violência contra as inibições sociais e respondeu a um ralhete da segunda mulher com várias punhaladas de canivete nas costas e no abdómen. Casos para dizer, como Ezra Pound, que «uma pessoa tem o direito de esperar uma trivial decência, mesmo da parte de um poeta»? Afinal, que importância tem o conhecimento da vida privada de um intelectual para a compreensão e legitimidade da sua obra ou afirmação pública? Respondem João Pereira Coutinho, Lídia Jorge, Maria Filomena Mónica, Miguel Esteves Cardoso, Pedro Mexia e Teresa Rita Lopes.

O ponto de partida para esta discussão é Intelectuais, ensaio lançado em 1988 em Inglaterra e agora traduzido pela Guerra & Paz. O autor, Paul Johnson (n. 1928, historiador e jornalista), define-o como um livro de «análise da credibilidade moral e crítica que determinados intelectuais [seculares] bastante conhecidos podem ou não ter para dar conselhos à humanidade e indicar-lhe a forma de comportamento mais correcta». São doze as vítimas principais, com direito a capítulos isolados: de Rousseau, Shelley, Marx ou Ibsen a Tostoi, Hemingway, Brecht, Bertrand Russell e Sartre. No final, sob o título «Fuga da Razão», Johnson alinha ainda referências a George Orwell, Norman Mailer ou Fassbinder. Após mais de 400 páginas de verrinosa, mas bem documentada, exploração dos mais sórdidos aspectos da vida privada deste desfile de notáveis, conclui: «[Os intelectuais] não só devem ser mantidos bem distantes dos círculos de poder, como devem ser objecto de especial suspeita sempre que se oferecem para dar conselhos colectivos.»
O escritor Miguel Esteves Cardoso (MEC) é cabal. Costuma ler, e agradam-lhe, as crónicas de Johnson nos jornais ingleses, reconhece-o como «o único contemporâneo que sabe escrever a metro - e bem», elogia os seus ensaios históricos sobre o Judaísmo e os Estados Unidos da América, mas Intelectuais não passa de um livro preguiçoso e reaccionário. «É desprezível e filisteu, feito para dizer mal do não-pictórico; do não-óbvio; do arriscado; do novo. Johnson é um homem culto nas coisas de salão, mas selvático nas coisas da arte.» Como ex-alinhado à esquerda, convertido ao conservadorismo, Johnson não é, ele próprio, um caso exemplar de coerência moral ou política. As farpas que lança a Marx, recorrendo a referências a furúnculos e filhos enjeitados, exemplificam bem uma «necessidade terrível de destruir», de matar o pai. Mas, apesar de ter sido escrito por um anti-modernista feroz, Intelectuais põe o dedo numa das feridas da contemporaneidade: para que servem os intelectuais?
Formados pelo racionalismo do século XVIII e pelo positivismo do século XIX, os intelectuais substituíram o clero como consciência crítica e propositiva da sociedade. Maîtres à penser, generalistas das ideias, utopistas, empenhados, foram sempre, se considerados fora das categorias corporativo-académicas, «uma figura ambígua, pouco concreta, fugidia, sociologicamente difícil de determinar» (João de Almeida Santos-JAS, em Os Intelectuais e o Poder, Fenda, 1999). Hoje, perdido o poder unificador da Razão enquanto «filtro da vida em sociedade», eles vêem modificadas, difusas ou mesmo perdidas, as suas funções e mandatos legitimadores.
A escritora Lídia Jorge chega a declarar o quase total desaparecimento dos intelectuais. A substituí-los no seu papel de porta-voz privilegiado, estarão talvez uns poucos comentadores ou cronistas da área política. O trono, esse, foi entretanto ocupado pelas «figuras públicas, uma criação dos meios audiovisuais». «Uma tirada bem aplicada de um boieiro pode valer mais, para fazer passar uma razão, do que a de um catedrático», um filósofo ou um escritor, hoje afastados do lugar mediático, «aquele onde se existe no mundo contemporâneo».
A ideia de que «todos os homens são filósofos» (Gramsci) e a laicização integral da vida moderna, deixou os intelectuais «tocar no fundo» (JAS). Paradoxalmente, a redução da sua margem de intervenção pública é proporcional ao aumento da supremacia dos saberes especializados. Explica o professor universitário, jornalista e comentador político João Pereira Coutinho: «A desvantagem [da especialização] está na incapacidade dos intelectuais de hoje de terem um visão de conjunto sobre o homem e a natureza humana. Como diria um velho filósofo inglês, Michael Oakeshott, ninguém combate ditadores com um conhecimento detalhado da balança de pagamentos...» Talvez por isso os intelectuais, eles mesmos, se tenham afastado da praça pública, recuando para o silêncio, a utopia ou o protesto surdo e ressabiado. Ao radicalismo da acção empenhada, sobreveio a melancolia. Ainda assim, atenção, «muitas vezes aquilo a que se chama cobardia [do intelectual] não passa de uma hesitação perante realidades em conflito quando se desconhece uma parte da situação» (Lídia Jorge). Nem clérigo, nem revolucionário, entalado entre o pensamento e a acção, o intelectual desceu à terra. Que é como quem diz, ao inferno dessa «terra de ninguém e de todos que é o limiar da diferença e da identidade» (JAS).
A própria palavra, «intelectuais», esboroou-se até desembocar, muitas vezes, numa entoação pejorativa. Para ilustrar esta evidência, nada melhor do que a pequena história, aqui introduzida pela poetisa, dramaturga e ensaísta Teresa Rita Lopes. «Uma vez, em Paris, há anos já, quando os automóveis ditos dois cavalos ainda rolavam, fui alvo de uma chacota por parte de um passante: “Ah, ces intellectuels!” De facto, nessa altura, enquanto os operários ostentavam magníficas “voitures”, os “intellectuels”, mesmo endinheirados, gostavam de circular em carros destes, em fato-macaco.»
Mas, o que distingue um intelectual de qualquer outro homem e cidadão? Apenas a sua obra? A sua opinião? Ou, também, os reflexos cruzados entre as duas e a sua vida privada? «Os intelectuais, tal como os artistas em geral, são pessoas com mau carácter», alerta Pedro Mexia, crítico literário, poeta, cronista, bloguista, actual director interino da Cinemateca Portuguesa. De onde lhe vem a convicção? «Da experiência de contacto pessoal e da leitura de biografias.» Quase sem excepção, são gente com «maus hábitos», assegura MEC. Como na anedota: para quê ir para o Céu, se no Inferno é que estão as pessoas interessantes?
Por se posicionar originalmente «à margem [crítica] da Igreja, tida por obscurantista ou intolerante» (Pereira Coutinho), o intelectual secular aliou a ética à estética, e afirmou-se como «moralista da acção». No entanto, como defende Lídia Jorge, cedo se percebeu que «esse clérigo sem mancha, naturalmente, deveria ter algumas nódoas escondidas». «Retroactivamente, terá imensas, será só procurar com minúcia e perseverança.» Ou talvez baste olhar a História à vista desarmada, como o faz Pereira Coutinho: «Essa crítica às instituições estabelecidas nem sempre foi extensível a outros tipos de absolutismo, a começar, desde logo, pelo despotismo iluminado. Isso deve-se à forma insensata como o intelectual secular deificou a Razão, acreditando que ela, e só ela, teria o papel definitivo na condução das sociedades humanas a um estado de perfeição terrena. Deu no que deu, e logo no século XVIII, quando a Revolução Francesa começou a devorar os seus filhos.»
Em Intelectuais, é inegável a intenção do autor, profundamente católico. Fala em «credibilidade moral» e dispara por aí contra as discrepâncias entre os vícios privados e as públicas virtudes dos intelectuais. O princípio, garante MEC, «é abjecto». «Os intelectuais, como os poetas, são pessoas que produzem pensamentos, e os pensamentos devem ser considerados como pensamentos. Não existe nada mais sublime do que a filosofia política. Por isso é que Marx é bonito; porque nos ensina como nos devemos dar bem uns com os outros. Comparar a filosofia política com a vida privada é uma falácia. Corresponde ao ódio ao intelectual por parte de alguém que não é capaz de ler a obra ou de se confrontar com o sublime.» Desenterrar a vida dos grandes pensadores ou artistas criadores, conclui, «é sempre, e não passa, de pura bisbilhotice».
«A credibilidade moral de um intelectual é zero», diz a socióloga Maria Filomena Mónica, licenciada em Filosofia, doutorada em Sociologia, com extensa bibliografia ensaística publicada. E justifica: «A capacidade para se distinguir entre o Bem e o Mal é diversa da aptidão para se discorrer sobre física quântica, proferir uma conferência sobre Hegel ou escrever um ensaio sobre Durkheim.» Mas, insiste-se, é possível separar, por exemplo,  a obra de um escritor da sua biografia? Sim, mas não totalmente. Veja-se o caso de Eça de Queirós, de quem a investigadora assinou uma reveladora biografia (Eça de Queirós, Círculo de Leitores/Quetzal, 2000). «A análise de um texto não deve ser feita como se de uma bíblia se tratasse», porque «a obra é escrita por um ser de carne e osso, com um trajecto, com emoções e com manias». Já não faz sentido, garante Maria Filomena Mónica, abordar em absoluto a obra como entidade autónoma, como o defendeu, nos anos 20 e 30, um movimento em que se incluíam T.S. Eliot e Cleanth Brooks, depois adoptado em França, por oposição ao Marxismo. Relativizar os casos e as abordagens, parece ser o mote, num momento em que é generalizada a consciência de que a obra e a vida de um autor se desenvolvem e exprimem em planos diferentes.
«A obra, à partida, tende a ser uma transfiguração, essa é a sua essência», assegura Lídia Jorge.  «Há obras geniais repassadas de humanidade, saídas da mão de criadores a quem não se pode confiar durante uma hora o nosso animal de estimação, e há artistas boas pessoas que não conseguem fazer uma obra que vá além do sofrível. Entre uma e outra espécie, existe uma variedade de combinações infinitas.» Até pode ser, como Teresa Rita Lopes advoga, que a pessoa do grande criador não seja, em geral, digna da sua obra. E que da vida de muitos dos grandes, dos maiores, como Ovídio, Homero ou Shakespeare, não se conheça mesmo nada; e seja melhor assim (MEC). Mas há excepções, e o exemplo de Fernando Pessoa prova-o sem dúvidas.
Teresa Rita Lopes é um dos mais prestigiados investigadores pessoanos. No início, dedicou-se apenas à obra. Nessa altura, e de acordo com as convicções da sua geração de investigadores, o seu fascínio pelo poeta foi ensombrado pelo incómodo de se julgar Pessoa como um reaccionário. Hoje, conta: «Só mais tarde, quando me enfronhei na arca, vi que era mentira. Que até tinha denunciado “o sovietismo direitista do Estado Novo”. Que tinha escrito ao Presidente da República para demitir Salazar – a quem chamou “seminarista da contabilidade”, “aldeão letrado” e outros mimos assim. Que tinha ameaçado os reaccionários, gritando-lhes mesmo: “Amigos reaccionários: em guarda!” De descoberta em descoberta, apeteceu-me escrever-lhe a biografia [que está neste momento a finalizar].» No caso de Pessoa, garante, faz sentido falar de «vida-obra» ou «obra-vida». Até porque, se o poeta modernista se declarou  incompetente para a vida («a sua certidão de óbito é toda na negativa: não casou, não teve filhos, não deixou bens»), os heterónimos que criou viveram intensamente por ele. «Essas vidas sonhadas também fazem parte da sua vida. E, curiosamente, expurgam-na catarticamente do que a sua, a do pacato cidadão, poderia ter tido de censurável. No “Poema em linha recta”, Álvaro de Campos exibe as suas “vergonhas”, financeiras e tudo. Noutro diz que “a alma humana é porca como um ânus”. Na “Ode Marítima” exibe o seu masoquismo e o seu sadismo. No “Opiário” fuma ópio na esteira do poema. Ora Pessoa, na sua própria pessoa, pôde assim não ser drogado, nem sádico, nem masoquista nem desonesto financeiramente. Pelo contrário, foi o que se chama uma “pessoa respeitável” – todos os testemunhos o dizem – e os escritos vão-nos informando de que sempre pugnou pelos direitos humanos, desde rapaz, já em Durban: foi contra as potências colonizadoras, Inglaterra e, mais tarde, o Portugal salazarista (escreveu várias vezes que não precisávamos das colónias para nada). Foi, sempre antibelicista (não só no “Menino de sua Mãe”). E, acreditando no que dele disse o seu discípulo Adolfo Casais Monteiro, foi o espírito mais livre que ele conheceu.»
Miguel Esteves Cardoso admira incondicionalmente a obra de Samuel Beckett, Thomas Bernhard ou Ezra Pound. São os seus escritores-fétiche, os seus ídolos. Daí que, na condição de fã, queira saber tudo sobre eles, biografia e marginália incluídas. «Mas faço-o como as pessoas lêem a Caras», garante. O essencial, «bisbilhotice» à parte, não deixa nunca de ser «a obra, a obra e a obra». Mas, recentre-se entretanto a questão nos «intelectuais». Pereira Coutinho distingue neles os estetas (os escritores) e os moralistas, «que se apresentam com exigências de verdade sobre os outros». No caso destes últimos, «a vida da criatura é importante», já que pode pôr em causa a sua «autoridade moral» e, com ela, «a sua autonomia estética». Na base, está a convicção de que a estética não pode ser totalmente desligada da ética: «Se fosse totalmente independente, como os estetas radicais defendem, correríamos sérios riscos de elogiar a belíssima arquitectura dos campos de extermínio nazis.» Pedro Mexia acorre, afirmando: «O caso dos intelectuais não é muito diferente do dos políticos, quanto à possibilidade de a sua vida privada poder impugnar as ideias apresentadas ou defendidas em público. A vida privada é sempre irrelevante, excepto em casos de hipocrisia flagrante.» Matéria explosiva, esta. Paul Johnson escarafunchou na ferida, vêmo-la agora bem aberta.
No debate recente sobre o referendo relativo à lei do aborto, Lídia Jorge defendeu publicamente a despenalização. Fê-lo como cidadã, com os argumentos que tinha para oferecer, e não «como intelectual». Em casos assim, acrescenta, «não [lhe] parece que funcione a ideia de notoriedade, mas de utilidade»: «É uma maneira de escrever o tempo de outra forma.» Em determinados momentos e debates, «as pessoas relacionadas com o conhecimento e as artes clássicas ainda têm sido chamadas a prestar contas da sua consciência em público». Jamais se deverá confundir isso com a obra, ainda menos com a vida privada. Essa mistura, afirma a escritora, «é detestável, boa apenas para as histórias de cordel».
François Mauriac escreveu: «Não podemos dominar a nossa obra senão na medida em que dominarmos a nossa vida.» A tomar a afirmação como válida e numa sociedade em estado de «adormecimento videocrático» (JAS), as dificuldades são acrescidas. Como separar a exposição e afirmação pública de um intelectual do homem por detrás dela ou da personagem pública que criou para si mesmo? Pedro Mexia é peremptório: «A construção de uma figura pública é absolutamente necessária para não se ser engolido e, também, como auto-protecção. É preciso ter um boneco, um avatar. Mas não é um boneco real; é um boneco; ou, quando muito, é as duas coisas ao mesmo tempo.» Não se confunda, pois, o Pedro Mexia do blogue ou das crónicas com o Pedro Mexia privado. «Por razões mais estéticas do que éticas, não há ficção nas minhas crónicas. Costumo dizer que em público falo sobre a minha vida íntima, mas não sobre a minha vida privada. Escrevo sobre factos anedóticos e triviais, especulações, divagações e emoções íntimas e intimistas, porque não são só minhas; toda a gente as tem. Coisas confessionais, datas, factos ou nomes reais? Isso, jamais.»
Maria Filomena Mónica fê-lo, na sua biografia, Bilhete de Identidade: Memórias 1943-1976, publicada pela Quetzal em 2005. Expor publicamente dados biográficos privados, seus e em relação com outros, teve consequências negativas na sua vida privada e académica, revela hoje. É-lhe difícil identificar qual a dimensão mais incómoda ou controversa da publicação do livro. As críticas, diz, «chegaram[-lhe] só indirectamente – de forma covarde». Mauriac poderia responder: «Cada palavra escrita é a pincelada onde se reconhece todo o pintor.» Mas saberemos mesmo mais sobre Marx conhecendo-lhe os furúnculos? A opinião é unânime: com certeza que não.


LER/ Março de 2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)