Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Thomas Berger | Destino: Velho Oeste

O que faz um cowboy da velha guarda? Um cavalo, uma arma, o desejo de determinar novas fronteiras e a crença nas leis da violência mesmo que não se saiba quando ou de onde ela virá. Afinal, o Oeste é o sítio onde os homens se tornam homens e vencedores, onde a velocidade com que se prime o gatilho vale mais do que a moral e a civilização. Apenas um pequeno senão se interpõe neste sonho romântico do fundador homem branco: o índio. Protegido pelo Espírito de Toda a Parte que, após a morte, o funde no grande círculo universal, o índio sobrevive e, com ele, a veemência da sua coragem. «Pequeno Grande Homem», romance de 1964 do americano Thomas Berger (nascido em Cincinnati, Ohio, em 1924), determinou uma nova abordagem à história do índio e da ocupação branca dos seus territórios. Finalmente, o maior épico sobre a conquista do Velho Oeste sai em português, pela Cavalo de Ferro, numa excelente edição ilustrada.
John Upidke chamou-lhe a «comédia mais trágica» da história da literatura americana. Arthur Penn adaptou-o ao cinema em 1970, com Dustin Hoffman no papel principal. «Pequeno Grande Homem» contém a grandiosidade do «grande romance americano» como os clássicos sulistas de Mark Twain, Tennessee Williams ou William Faulkner. Lançado enquanto a América combatia no Vietname, acrescenta-lhes uma denúncia não politizada. Nele se revê a história mítica do confronto entre pioneiros e nativos como um drama irónico e picaresco. Jack Crabb, o protagonista, é mais uma fronteira do que um herói.
Entre Fevereiro e Junho de 1953, num lar, com 111 anos e prestes a morrer, Jack Crabb narra a história da sua vida ao diletante Ralph Fielding Snell, que servirá apenas de mediador inicial e final da narrativa. Em meados do século XIX, com dez anos de idade e filho de um pouco convencional pastor protestante, Jack (com a sua irmã mais velha, Caroline) é raptado por um bando da tribo cheyenne, com o qual crescerá. O chefe Peles de Cabana adopta-o como filho e assume a tarefa de o ensinar a ser «um Ser Humano» (um índio) e a «fazer as coisas certas». Franzino e baixinho, mas de temperamento valente, é depois de matar com arco e flecha um índio inimigo, um Corvo, que Jack se torna guerreiro e ganha pleno direito sobre o nome cheyenne de Pequeno Grande Homem. Quando a Cavalaria americana o resgata, já está condenado: viverá sempre no fio da navalha, o risco entre os índios e os brancos.
Crabb é tudo menos um ser virtuoso e isso é que o torna poderoso e divertido. Thomas Berger construiu aliás o seu romance a partir da irónica incerteza de Snell sobre se Crabb terá sido mesmo «o maior pioneiro da fronteira americana» ou apenas um grandesíssimo mentiroso. O tom da narrativa é directo, veloz e empolgado, as aventuras sucedem-se e é impossível não se sorrir perante este homem. Crabb: «dândi de corpo inteiro», prospector de ouro, comerciante, viajante incansável, caçador de búfalos e de índios (a dada altura, os cheyennes raptam-lhe a mulher – uma sueca - e o filho), batedor, jogador e bufão de «saloon», marido de índia, soldado e desertor, traidor mútuo de índios e de brancos nas fileiras do 7º Regimento do general Custer, pistoleiro ensinado pelo fanático Wild Bill, único sobrevivente de Little Bighorn, a última grande batalha ganha pelos índios... Crabb enfrenta o «mundo de ângulos rectos» dos brancos com riscos de tinta preta pintados na cara. Ele representa também o poder da criação literária como abordagem imparcial da realidade.
Lá para o fim das cerca de 550 páginas do romance, o Velho Peles de Cabana defende que as coisas se devem suceder em círculo; «não há vitórias nem derrotas permanentes». Porque os homens brancos «vivem em quadrados e linhas rectas», o avô cheyenne sobe a um sítio alto e chama a morte, sabendo que o mundo dos índios está prestes a desaparecer. Mas ainda que se extinga o último índio, Peles de Cabana insiste que ele continuará a viver para sempre em qualquer homem valente e forte, «orgulhoso, bravo e vingativo, mesmo que tenha uma cara branca». Afinal, não é isso que faz um herói?

Pequeno Grande Homem, Thomas Berger, Cavalo de Ferro, 559 págs.

SOL/ 03-05-2008
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)