John Upidke chamou-lhe a «comédia mais trágica» da história da literatura americana. Arthur Penn adaptou-o ao cinema em 1970, com Dustin Hoffman no papel principal. «Pequeno Grande Homem» contém a grandiosidade do «grande romance americano» como os clássicos sulistas de Mark Twain, Tennessee Williams ou William Faulkner. Lançado enquanto a América combatia no Vietname, acrescenta-lhes uma denúncia não politizada. Nele se revê a história mítica do confronto entre pioneiros e nativos como um drama irónico e picaresco. Jack Crabb, o protagonista, é mais uma fronteira do que um herói.
Entre Fevereiro e Junho de 1953, num lar, com 111 anos e prestes a morrer, Jack Crabb narra a história da sua vida ao diletante Ralph Fielding Snell, que servirá apenas de mediador inicial e final da narrativa. Em meados do século XIX, com dez anos de idade e filho de um pouco convencional pastor protestante, Jack (com a sua irmã mais velha, Caroline) é raptado por um bando da tribo cheyenne, com o qual crescerá. O chefe Peles de Cabana adopta-o como filho e assume a tarefa de o ensinar a ser «um Ser Humano» (um índio) e a «fazer as coisas certas». Franzino e baixinho, mas de temperamento valente, é depois de matar com arco e flecha um índio inimigo, um Corvo, que Jack se torna guerreiro e ganha pleno direito sobre o nome cheyenne de Pequeno Grande Homem. Quando a Cavalaria americana o resgata, já está condenado: viverá sempre no fio da navalha, o risco entre os índios e os brancos.
Crabb é tudo menos um ser virtuoso e isso é que o torna poderoso e divertido. Thomas Berger construiu aliás o seu romance a partir da irónica incerteza de Snell sobre se Crabb terá sido mesmo «o maior pioneiro da fronteira americana» ou apenas um grandesíssimo mentiroso. O tom da narrativa é directo, veloz e empolgado, as aventuras sucedem-se e é impossível não se sorrir perante este homem. Crabb: «dândi de corpo inteiro», prospector de ouro, comerciante, viajante incansável, caçador de búfalos e de índios (a dada altura, os cheyennes raptam-lhe a mulher – uma sueca - e o filho), batedor, jogador e bufão de «saloon», marido de índia, soldado e desertor, traidor mútuo de índios e de brancos nas fileiras do 7º Regimento do general Custer, pistoleiro ensinado pelo fanático Wild Bill, único sobrevivente de Little Bighorn, a última grande batalha ganha pelos índios... Crabb enfrenta o «mundo de ângulos rectos» dos brancos com riscos de tinta preta pintados na cara. Ele representa também o poder da criação literária como abordagem imparcial da realidade.
Lá para o fim das cerca de 550 páginas do romance, o Velho Peles de Cabana defende que as coisas se devem suceder em círculo; «não há vitórias nem derrotas permanentes». Porque os homens brancos «vivem em quadrados e linhas rectas», o avô cheyenne sobe a um sítio alto e chama a morte, sabendo que o mundo dos índios está prestes a desaparecer. Mas ainda que se extinga o último índio, Peles de Cabana insiste que ele continuará a viver para sempre em qualquer homem valente e forte, «orgulhoso, bravo e vingativo, mesmo que tenha uma cara branca». Afinal, não é isso que faz um herói?
Pequeno Grande Homem, Thomas Berger, Cavalo de Ferro, 559 págs.
SOL/ 03-05-2008
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