Chicago tales
As Aventuras de Augie March é um monumento de ficção, destinado a corredores de fundo. Mostra o talento de Saul Bellow em estado puro.
Para entrar em As Aventuras de Augie March, é preciso saber entrar em Chicago, a cidade onde cresceu Saul Bellow (1915-2005, Nobel da Literatura em 1976), nascido em Lachine, no Canadá, filho de imigrantes russos. Em entrevista ao Le Monde, em 1982, o escritor norte-americano apresentou-a assim: «Nova Iorque não é uma cidade americana. É uma cidade internacional, mundial como São Francisco. Mas Chicago é a cidade americana por excelência. É uma mistura especial de indústrias pesadas, de imigrantes pouco qualificados, de acontecimentos brutais associados às lutas contra o capitalismo. As regras do jogo são a virilidade, a solidariedade, a lealdade para com a cidade. O seu código de honra? Não trair. Não denunciar os amigos. Banir as conversas irresponsáveis. Não entrar muito nas zonas protegidas. Se se tiver uma parcela de poder, manter a sua estrutura intacta. Abster-se, passar por entre os pingos da fealdade e do crime. É este o sistema de vida de Chicago.» Agora sim, caminhemos com Augie March por esta «cidade sombria», da maneira que ele diz ter aprendido a fazer sozinho, «em estilo livre». Temos setecentas páginas pela frente e este terceiro romance de Saul Bellow, datado de 1953 (National Book Award em 1954), um dos seus maiores legados ficcionais, presta-se a todas as dispersões.
As Aventuras de Augie March é um desafio portentoso porque corresponde a um Bellow sem restrições, em bruto na sua capacidade expressiva e no máximo da sua judeicidade, essa que ele mais tarde viria a enjeitar como principal marca distintiva da sua obra. Na célebre entrevista que concedeu à Paris Review em 1965, o escritor explicou que, após duas ficções (Dangling Man e The Victim) moldadas pelo desejo de afirmação junto do mundo WASP («branco, anglo-saxão, protestante»), deixou-se ir: «Julgo até que pus de lado demasiados [constrangimentos] e que fui longe demais mas estava a sentir o entusiasmo da descoberta.» Em nenhum dos romances seguintes encontraremos a mesma indomável liberdade de estilo, afinal a raiz de toda a sofisticação bellowiana até no que ela tem de manifesto anti-intelectual. A notável tradução de Salvato Telles de Menezes para a Quetzal faz juz à conjugação de musicalidade da frase, eloquência poética no detalhe e atenção à expressão idiomática característica da personagem (incluindo a extravagante mistura de referências iídiche ou da Chicago dos anos 20). O principal dinamismo dos romances de Saul Bellow é que eles falam-nos como alguém com quem nos cruzássemos na rua e nos relatasse o que acabou de fazer, sem nunca perdermos de vista que tal nos é dado a ver através do brilho da moldura de observação feita pelo autor.
A voz é a de Augie March, um miúdo pobre que cresce com a mãe, os dois irmãos (o empreendedor e ambicioso Simon e Charlie, deficiente mental) e uma avó emprestada (a protectora e castradora avó Lausch) na Chicago da Grande Depressão. O solilóquio estende-se até à idade adulta e uma deambulação sem rumo pela Europa do pós-Segunda Guerra, terminando afinal como começou, Augie como uma espécie de Colombo em terra incognita. Romance de formação (bildungsroman), As Aventuras de Augie March apresenta uma abordagem moderna ao anti-herói picaresco. Nele se resume o principal dilema bellowiano: a liberdade de escolha de cada ser humano entre integrar-se na sociedade (na família e na cidade), aceitando ser moldado por ela, ou alienar-se e, de algum modo, votar-se à revolta e à carência de amor («Há quem leve muito tempo a descobrir qual é o preço de estar na natureza e quais são os termos desse contrato de ocupação. O tempo que demora depende da velocidade com que os açúcares sociais se dissolvem»...).
Inspirado no cenário e nas gentes dos arredores do Humbolt Park da infância de Saul Bellow, As Aventuras de Augie March assemelha-se ao Mississipi de Twain e Huckleberry Finn. O «sistema de vida de Chicago» é um símbolo da América como uma jangada em torrencial movimento, entre margens e minorias, forjando redes e fidelidades. Com ecos do transcendentalismo e do individualismo como os teorizou Ralph Waldo Emerson, o subversivo, mas desajeitado Augie (que apenas tenta «fazer bem as coisas» e «vê afecto humano em tudo, como um selvagem») pode ser lido como uma homenagem à «infinitude do homem privado» (Emerson). Vêmo-lo na intimidade das suas aventuras, entre anseios e angústias sentimentais, as mais diversas ocupações e os mais diversos mentores («ia ao encontro de quem quer que se dispusesse a oferecer-me abrigo contra este poderoso terror que corre à solta pelo mundo, contra o bárbaro frio do caos e, portanto, abraçava temporariamente várias causas»), à procura de independência e amor por conta própria.
Não se pode esquecer que o romance de Bellow marca a emergência do judaísmo como grande tema da cultura americana na década de 50. Estão lá o problema da pobreza e da aculturação, a reacção ao preconceito gentílico, o choque geracional do filho do imigrante, a herança da diáspora, a auto-depreciação e o orgulho de pertença, o humor tragicómico do deslocado que procura sobreviver, assimilar e ser assimilado. Sobressai e comove na personagem Augie o seu cambaleante e irónico meneio, ora optimista, ora pessimista, face ao destino. Precisamente aquilo que a torna universal e moderna.
As Aventuras de Augie March, Saul Bellow, tradução de Salvato Telles de Menezes. Quetzal, 709 págs.
LER/ Novembro 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)