Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Férias - Um Livro Por Dia



Um Livro por Dia está de férias até Janeiro... a viver as festas.
Desejo-vos a todos um excelente Natal e um óptimo Ano Novo!

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Sándor Marái | Tratado da solidão



Numa noite, em Budapeste, um homem relata a um amigo como trocou a sua esposa por aquela que ele supôs ser «a mulher certa, como nos romances». E diz-lhe: «Receio que seja a má literatura a encher de sentimentos falsos a cabeça de homens e mulheres.» A personagem é Péter, um dos vértices do triângulo amoroso e narrativo de «A Mulher Certa», romance escrito pelo húngaro Sándor Márai entre 1941 e 1979. Uma obra-prima absoluta cuja tradução chega às livrarias no próximo dia 29 e que comprova que a grande literatura é mesmo capaz de ensinar a sentir.
Em 1990, quando a crítica europeia redescobriu a obra de Sándor Márai (nascido em 1900), ficou claro que o seu nome tinha de constar no cânone da melhor literatura europeia do século XX. Aclamado nos anos 30 no país natal, Márai, empenhado humanitarista e antifascista, sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, mas não à perseguição do regime comunista, que, em 1948, o levou ao exílio definitivo, primeiro em Itália, por fim nos Estados Unidos (onde se suicidou, em 1989). Durante décadas, a obra de Márai foi proibida na Hungria e caiu no total esquecimento, até que, nos últimos dezassete anos, renasceu e foi aclamada como uma dessas raras essências literárias impregnadas de elegância, profundidade e sabedoria.
Após «As Velas Ardem até ao Fim» e «A Herança de Eszter», a Dom Quixote edita «A Mulher Certa», numa excelente tradução do húngaro por Ernesto Rodrigues. Para muitos, trata-se do melhor Márai, com a sua versão final - quatro partes e um epílogo - lapidada como um diamante ao longo de 38 anos e três edições distintas. De novo o autor descreve a desintegração da burguesia húngara do início do século XX, tarefa que assumiu como «o único dever da [sua] vida». Mas esse é apenas o cenário para uma sucessão de monólogos sobre como «todo o amor é egoísmo cruel», vaidade, idealização e disfarce para a inevitável solidão humana.
Uma mulher (Marika) conta a uma amiga como uma paixão antiga do marido (Péter) por uma criada de servir (Juditka) arruinou o seu casamento. Por sua vez, Juditka conta a um amante (cuja narração surgirá mais tarde) como, manipulando o amor de Péter, se vingou da pobreza e da burguesia. «A Mulher Certa» é uma lição de técnica narrativa aliada a um conhecimento cirúrgico das várias faces do amor, da ambição e da solidão.

A Mulher Certa, Sándor Márai, Publicações Dom Quixote, 423 págs.

SOL/ 24-07-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

domingo, dezembro 19, 2010

Bioy Casares - Um Livro Por Dia

A invenção de Casares

«Plano de Evasão» foi escrito em 1945 por Adolfo Bioy Casares (1914-1999), criador de parte do melhor legado argentino para a literatura universal, a par de Ernesto Sábato, Julio Cortázar e sobretudo do seu amigo Jorge Luis Borges (com quem assinou obras sob o pseudónimo conjunto de H. Bustos Domecq). Editada pela Estampa em 1980, a obra regressa agora pela Cavalo de Ferro. Embora sem a fama de romances de Casares como «A Invenção de Morel» (Antígona), «O Sonho dos Heróis» ou «Diário da Guerra dos Porcos» (ambos na Cavalo de Ferro), é um portento de imaginação e construção narrativa.
A acção data de 1913 e o cenário é a colónia penal instalada no Arquipélago da Salvação (Guiana Francesa), composto pelas ilhas de São José, Royale e do Diabo, apelidadas de «Devoradoras de Homens» devido aos brutais métodos prisionais nelas praticados. Bioy Casares coloca o epicentro deste mistério de solução fantástica na Ilha do Diabo, celebrizada também com «Papillon», de Henri Charrière. É lá que o governador Pedro Castel domina a seu bel prazer animais e prisioneiros.
Como na maioria das ficções de Casares, a personagem principal, o tenente Henrique Nevers, é um herói «inadequado», cujas metamorfoses psicológicas servem a máxima estilística: «[Na escrita] não se pode cortar caminho». Impedido de ir à Ilha do Diabo, Nevers hesitará sempre até à descoberta das verdadeiras dimensão e consequências da sua nomeação como administrador da colónia, sob as ordens de Castel. Os seus passado e futuro estarão suspensos de uma estranha percepção da realidade que domina as personagens, a acção, e o leitor.
A chave para o mistério reside nas teorias de Castel. Para ele, «a unidade essencial dos sentidos das imagens, representações ou dados, existe e é uma alquimia capaz de converter a dor em deleite e as paredes da prisão em planícies de liberdade.» Libertar as sensações humanas dessa ordenação original significaria «um caos onde tudo, segundo certas regras, poderá ser imaginado ou criado».
Casares é um mestre da estruturação da narrativa, composta por uma filigrana de frases curtas, minuciosas descrições, narrações e sinais, sobre um fundo de suspense e humor grotesco. A quimera de liberdade de Castel é revelada a partir de um talento literário que se apresenta também como espantoso manipulador dos sentidos.

Plano de Evasão, Adolfo Bioy Casares, 127 págs.

SOL/ 11-08-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Amor, o que é? - Um Livro Por Dia



Num voo de Paris para Londres, dois desconhecidos, X e Y, apaixonam-se. Eis a «1ª cena do 1º acto do modelo narrativo mais clássico e mítico de todos – o romance de amor». Inevitável, o fatalismo romântico modela os actos seguintes, do enamoramento cego até à «suicidária» ruptura final. A história não podia ser mais banal, mas quando X é um narrador criado por Alain de Botton, o caso muda de figura.
O livro chama-se «Ensaios de Amor». Primeira obra publicada por Botton (em 1993), embora se trate de uma narrativa de ficção, apresenta já a técnica que o tornaria famoso com ensaios como «O Consolo da Filosofia» (2000), «A Arte de Viajar» (2002) ou «Status Ansiedade» (de 2004; deu origem à homónima série documental de televisão, recém-exibida pela RTP2). Reflectindo sobre aspectos específicos do dia-a-dia do homem contemporâneo, este filósofo francês radicado em Inglaterra conjuga meditações biográficas e ensaísticas com remissões para a obra de escritores e pensadores famosos e transmite-as num tom informal, mas com uma linguagem literariamente rica.
Não é de espantar que a «filosofia do quotidiano» praticada por Botton tenha conquistado milhares de fãs em todo o mundo. Entre o manual de auto-ajuda e o ensaio erudito, os seus livros pretendem sobretudo tornar mais agradável e conseguida a vida de cada leitor, quer o tema seja o amor, o prazer de ler, o estatuto social ou a arquitectura (como no recente «The Architecture of Happiness», de 2006). Nesta perspectiva, aos 39 anos, ele é um dos últimos prosadores optimistas.
Com humor e à-vontade, Botton aproxima o narrador de «Ensaios de Amor» de uma voz autobiográfica. Escreve: «O filósofo na cama é uma figura tão ridícula como o filósofo na discoteca. Em ambos os casos, o corpo é predominante e vulnerável, tornando-se a mente um instrumento de crítica silencioso e distante.» Será essa a mais valia deste sujeito X que racionaliza a sua relação amorosa com Chloe como se estivesse, em simultâneo, a observá-la de fora. A trama segue desde o estado marxista em que «o desejo [se] alimenta da impossibilidade de ver o amor retribuído» até ao terror da perda e ao «impossível» ressuscitar do coração. Pelo caminho, cruzamo-nos com a história, a matemática, a física ou a filosofia e, por muitas vezes, com um curioso espelho de nós mesmos.

Ensaios de Amor, Alain de Botton, Publicações Dom Quixote, 212 págs.

SOL/ 01-12-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Michael Ondaatje - Um Livro Por Dia


Passado em mosaicos
Um escritor é sempre um arqueólogo, defende Michael Ondaatje: «num nível, avança; noutro, revela o passado». É por isso que nenhum ficcionista seria cruel ao ponto de condenar uma personagem a um perpétuo caminho em linha recta, sobre uma ordem cronológica estrita. Se o fizesse, conseguiria eliminar a memória e, com ela, toda a espessura psicológica. Ondaatje é um veemente exemplo da opção oposta; toma o presente e o passado como mosaicos soltos, mas interdependentes, cola-os e ilumina o interior das personagens e da narrativa. Confirmamo-lo no quinto romance, escrito após seis anos de silêncio: «Divisadero».
Ondaatje nasceu no Sri-Lanka, com ascendência indiana e holandesa. Foi criado em Londres e possui nacionalidade canadiana. Poeta, distinguiu-se na ficção a partir de 1992 e do Booker Prize para «O Doente Inglês» (cuja versão cinematográfica, de Anthony Mingella, venceu 6 óscares em 1997). As origens do escritor justificam-no como grande contador de histórias. Mas a raiz do brilho técnico da sua prosa está na poesia. Ou, antes, numa obsessão com as cicatrizes do passado e os seus estilhaços no presente, captáveis apenas pela poesia.
«Divisadero» é uma narrativa em uma, e mais duas partes. Embora autonomizáveis, o importante são os fios metafóricos que as interligam. Partimos de uma quinta na Califórnia, nos anos 70, onde um homem cria sozinho uma filha, Anna, outra, adoptada, Claire, e Coop, um rapaz cuja família foi assassinada. Anna e Claire são «o reflexo uma da outra» e idolatram o circunspecto Coop, quatro anos mais velho. A primeira parte de «Divisadero» trata da relação entre estas personagens, do episódio traumático que as separou e do seu destino posterior. A segunda e terceira partes traçam a história de amor e perda do escritor Lucien Segura (anterior à I Grande Guerra), objecto das pesquisas de Anna (narradora preferencial), entretanto instalada em França, na quinta onde ele viveu e morreu, e apaixonada pelo seu filho adoptado, Rafael, de origem cigana.
«Divisadero» fala do que nos une ou separa dos outros e do passado. Num estilo extremamente original, Ondaatje tece uma teia romântica de colagens biográficas de amores fracturados, cegueiras e feridas, orfandades e duplicidades. Onde «a crua verdade de um episódio nunca cessa» e «podemos circundar o tempo».

Divisadero, Michael Ondaatje, Porto Editora, 247 págs.


SOL/ 28-03-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

terça-feira, dezembro 14, 2010

James Meek - Um Livro Por Dia


Paixões da alma russa

Compararam-no a obras de Tolstoi ou Dostoïevski, nomearam-no para o Man Booker Prize e, sobre ele, escreveram generosos elogios nas páginas de crítica literária. O Acto de Amor de um Povo, terceiro romance do inglês James Meek, chega por estes dias (Setembro de 2006) às livrarias portuguesas trazendo na contracapa e nas badanas o peso (também comercial) desta aprovação quase unânime por parte do meio literário anglo-saxónico. Apesar de grande parte dela se dever à audácia do autor em forjar uma narrativa com sabor de épico russo do século XIX, a aclamação é inteiramente merecida. James Meek inova com especial talento mesmo quando faz glosa a fórmulas anacrónicas e resgata o que ainda pode ser entendido como moderno na herança da literatura russa.
Sibéria, 1919. Samarin é um terrorista evadido de um campo de prisioneiros no Árctico. Ou, pelo menos, é assim que se apresenta quando chega à isolada comunidade de eunucos cristãos de Yazyk, onde se encontra refugiada uma companhia de soldados checos. Surgido da paisagem gelada, inimigo do czar e da antiga Rússia, Samarin será “uma manifestação da raiva actual e do amor futuro”. Consigo trará a sombra da perseguição de um feroz canibal, que o autor transformou numa metáfora das várias formas do amor. Até à chegada do Exército Vermelho, com Samarin caminharão ao longo de cerca de 400 páginas, dezenas de outras personagens e outras tantas peripécias, o líder eunuco Balashov, a pragmática Anna Petrovna e o comandante checo Matula.
Entre o thriller, o romance de ideias e o romance histórico não convencionais, O Acto de Amor de um Povo condensa uma reflexão poderosa sobre os idealismos extremos do ser humano, focando-os na alma russa. Mas não se pense por isso que este é um livro pesadamente sério. Estão lá a submissão ao destino, ao sacrifício e à dor, mas também a revolta, a sensualidade ou a castidade vividas em excesso. Está lá o enigma da simultânea beleza atordoante e frieza agressiva da neve. E, no entanto, Meek consegue transmiti-los com grande vividez nas descrições e um uso inteligente do suspense, nesse tom elevado no qual a literatura russa tratou a grande História a partir de uma linguagem despretensiosa. Para tal terá contribuído a formação do autor como jornalista, correspondente na ex-União Soviética entre 1991 e 1999, actual colaborador do Guardian, da London Review of Books e da Granta. Escrito ao longo de dez anos, O Acto de Amor de um Povo é um romance notável, que cumpre a ambição de actualizar a denúncia dos mestres russos, representada pela citação do escritor Andrei Platonov escolhida para epígrafe: “Ocupado em refazer o mundo, o homem esqueceu-se de refazer-se a si mesmo.”

O Acto de Amor de um Povo, James Meek, Manuel Cintra (trad.), Publicações Dom Quixote
432 págs.

SOL/ 23-09-2006
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

domingo, dezembro 12, 2010

Sarah Waters - Um Livro Por Dia


A guerra, ao contrário

Londres, 1947, 1944 e 1941. Quatrocentas e tal páginas que avançam às arrecuas, seguindo o retrocesso da acção. Sarah Waters experimenta no seu quarto romance, O Vigilante, acabado de chegar a Portugal, uma gestão peculiar do tempo narrativo. Enquanto o leitor vai conhecendo de antemão o futuro das personagens,  descobre-as no passado, cada vez mais ignorantes das consequências das suas acções. Explorando ao limite os processos de analepse e anacronia, Waters reafirma a importância da História como uma relação complexa e reciprocamente constitutiva do presente, do passado e do futuro.
Na verdade, a força desta autora, várias vezes nomeada para os importantes prémios Orange e Man Booker e apontada pela revista Granta como uma das mais brilhantes novas vozes da literatura britânica, não está no polimento estilístico da prosa. Provara-o já na sua trilogia sobre o “descomedido lesbianismo vitoriano”, percorrendo três décadas do século XIX (Tipping the Velvet, Afinidade e Falsas Aparências, os dois últimos traduzidos pela Bizâncio). Nos seus romances, que apelidou de “falsos romances históricos”, aplica o seu conhecimento especializado da ficção histórica homossexual e uma investigação apurada das épocas retratadas, para fazer nascer personagens cujos movimentos de emancipação transgridem uma sequência histórica causal. Mais uma vez, conta uma história como não fora contada.
O Vigilante é um sóbrio drama de guerra. Um retrato realista do tédio, do medo e da tentativa de fuga das personagens ao cerco do matraquear das antiaéreas, das explosões ensurdecedoras, do racionamento e da circulação entre fantasmas de ruas e vidas desmembradas. Seguimos, de 1947 a 1941, três mulheres e um homem homossexuais, uma mulher e um homem heterossexuais, os segredos, as relações amorosas e as teias que os unem, apesar das suas diferenças. Romance de maturidade, O Vigilante trabalha com espantosa competência descritiva o encadeamento retrospectivo de momentos e pormenores destas vidas.
Sem os lugares-comuns que podiam nublá-lo na abordagem a uma época ainda próxima na memória colectiva ou ao universo do lesbianismo, o romance gere com delicadeza as expectativas do leitor e prende-o ao prazer da leitura. O clímax dá-se enquanto Churchill clama: “A Inglaterra aguenta.” Na escuridão da noite, as personagens, vigilantes, resistem, objectando as suas consciências ao caos de uma época histórica e à desordem dos sentimentos. O Vigilante é uma proeza notável.

O Vigilante, Sarah Waters, Bizâncio, 448 págs.

SOL/ 18-11-2006
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

sábado, dezembro 11, 2010

Don DeLillo - Um Livro Por Dia


© Richard Drew, «The Falling Man»
North Tower of the World Trade Center, at 9:41:15 a.m., September 11, 2001

The falling man

A 11 de Setembro de 2001, após os embates dos dois aviões nas torres gémeas do World Trade Center, Keith conseguiu escapar do interior de um dos edifícios. Então, caminhou para norte, entre entulho, lama e pessoas em fuga ou apenas sentadas, «absortas nos seus sonhos, a sangrar». Por onde caminhava «deixara de ser uma simples rua, era agora um mundo, um tempo e espaço de cinza a tombar e quase noite». Ao «ronco distorcido da queda», suceder-se-ia a ansiedade, o pânico do futuro. E ninguém melhor do que o escritor nova-iorquino Don DeLillo seria capaz de os descrever. Assim: «Estes são os dias do depois. Tudo agora se mede em depois.» Keith é o protagonista de «O Homem em Queda», o último romance de Don DeLillo, traduzido pela Sextante.
Vários excelentes ficcionistas trataram já a tragédia do 11 de Setembro, entre eles Ian McEwan («Sábado», Gradiva), John Updike («O Terrorista», Civilização) ou Jonathan Safran Foer («Extremamente Alto e Incrivelmente Perto», Quetzal). No entanto, a abordagem mais aguardada era a de Don DeLillo. Em 1991, no romance «Mao II» (Relógio D’Água), a personagem Bill Gray, um escritor, questionara premonitoriamente a supremacia do terrorismo sobre a literatura na capacidade de «alterar a vida interna de uma cultura». Para mais, DeLillo, nascido há 71 anos no Bronx, incorporara Nova Iorque em toda a sua obra e provara ser um dos melhores criadores de romances panorâmicos, atentos ao mínimo detalhe nos movimentos dispersos de uma multidão (como nas espantosas 14 páginas de descrição da sequência de acontecimentos na Dealey Plaza, aquando do assassinato de J. F. Kennedy, no romance «Libra»).
«O Homem em Queda» não defrauda as expectativas; é um romance brilhante, que traduz «o idioma nova-iorquino, cosmocêntrico, tonitruante e brutal» para o pânico universal da ameaça terrorista. DeLillo atinge a melhor forma da sua talentosa fluência de metáforas, descrições realistas e incidências psicológicas. Os movimentos da família de Keith em Manhatan são o epicentro de uma rede de íntimos «estilhaços orgânicos» da catástrofe: uma mulher que é «a história de uma pasta», crianças que vigiam obsessivamente o céu, a memória de um companheiro de poker, um terrorista em treino na Alemanha, um grupo de doentes que escreve a memória. Figuras em queda, numa «performance» radical.

O Homem em Queda, Don DeLillo, Sextante Editora, 255 págs.

SOL/ 08-12-2007
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Inquisição ibérica - Um Livro Por Dia


Ódio à solta

Toby Green mostra o terror da Inquisição ibérica como nunca o vimos.

A perseguição, a tortura e a execução praticadas como uma arte. A «pedagogia do medo» utilizada como instrumento político capaz de subjugar as vontades de Roma e contaminar até as mais distantes colónias de Portugal e de Espanha. A religião usada como desculpa e totalmente rendida ao poder. Em quatro continentes e durante três séculos (entre 1478 e 1834, estabelecimento e abolição em Espanha), a devastadora Inquisição ibérica afirmou-se como «a primeira instituição opressora da História», fonte das «primeiras sementes do estado totalitário, do abuso racial e sexual». Reconhecêmo-lo no estudo, de 2007, A Inquisição, assinado por Tony Green e, até à data, a mais acessível e abrangente abordagem ao que este investigador inglês dá o subtítulo de O Reino do Medo.
As motivações para a Inquisição ibérica foram muito mais complexas do que as da Inquisição papal ou da primeira Inquisição medieval. Partiram da perseguição religiosa, ao cristão-novo e ao mourisco, mas tornaram-se sobretudo políticas. Toby Green encontra aí, e na subordinação ao poder real, a base para o tratamento simultâneo das realidades espanhola e portuguesa. A «vasta tipificação dos crimes», os movimentos de adesão e resistência, o aparelho do medo ou a burocracia do sistema surgem contextualizados a partir de múltiplos exemplos criteriosamente escolhidos e sustentados. A Inquisição, O Reino do Medo explora testemunhos, personagens e pequenas histórias, todas chocantes. Em conjunto, compõem um fresco vívido, uma tenebrosa narração de leitura fácil e compulsiva.
É impressionante o registo das práticas de denúncia e do princípio do sigilo (os nomes dos acusadores não eram divulgados). A paranóia da confissão, aliada ao terror da fogueira e ao dogma da tortura (horrendas, a do trato de polé ou a da água), levava os acusados a denunciarem até membros da própria família. A «distorção da justiça» permitia abusos inconcebíveis de poder e incentivava a invenção e a suspeição. No caso português, destaca-se a descrição do 'pogrom' de 1506 e da «mistura de brutalidade e de bondade» do rei D. Manuel. Toby Green consegue mostrar a Inquisição como uma forma social autofágica que, no final, é consumida pelo próprio medo e sucedida por rastos recalcados de amargura.

A Inquisição - O Reino do Medo, Toby Green, Editorial Presença, 511 págs.

SOL/ 13-08-2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

Sax and Violence - Pure Fun

Forgive me, Charlie Parker, wherever you are!
http://www.youtube.com/watch?v=CgfZVNv6w2E

Mr. Gillespie e Mr. Armstrong - Umbrella Man

Delirante!
http://www.youtube.com/watch?v=ZO1uMjz3n3w&feature=related

Clarence Williams - Beer Garden Blues (1933)

http://www.youtube.com/watch?v=_9pdLk1mdYs

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Stendhal - Um Livro Por Dia



Corações ao alto, queda livre

Publicado em 1822, foi recebido pelo público com indiferença. Nos prefácios das edições seguintes, o autor, Stendhal (pseudónimo de Henry-Marie Beyle, 1783-1842) dirigiu-o a uns poucos «seres infelizes, amáveis, encantadores, nem hipócritas, nem moralistas». Intitula-se Do Amor e regressa às livrarias pela Relógio D'Água. É um fascinante tratado sobre o amor, esse intricado sentimento experimentado e estudado pelo escritor francês com audácia, minúcia e desejos de lucidez e clareza, como «a única paixão que se paga com uma moeda que ela própria fabrica». Nele, e depois nos romances O Vermelho e o Negro (1830) e A Cartuxa de Parma (1839), mestre Stendhal explora o longo registo realista e de base autobiográfica que o ocupou toda a vida: um «método de conhecimento» (Italo Calvino descreve-o assim, em Porquê Ler os Clássicos?), uma «fisiologia» da natureza das paixões.
Stendhal quis ser o mais matemático e racional possível na abordagem. Por isso, começou pelas classificações do amor: em quatro espécies (amor-paixão, amor-prazer, amor físico e amor vaidade) e sete fases (admiração, prazer, esperança, nascimento do amor, primeira cristalização, aparecimento da dúvida e segunda cristalização). Contudo, o amor é uma espécie de Via Láctea, «um montão brilhante de pequenas estrelas, cada uma das quais muitas vezes é uma nebulosa». Impossível explicá-lo sem derivações, até porque «não há originalidade nem verdade senão nos pormenores». De tratado metódico, Do Amor transforma-se em complexo atlas de «casos particulares sobre o amor», súmula de histórias e reflexões, uma análise comparativa da geografia interior dos indivíduos no contexto social da época.
Escrito aos 38 anos, Do Amor nasce do arrebatamento apaixonado, e falhado, de Henry (antes ao serviço das tropas napoleónicas) por Métilde, mulher de um oficial polaco, em Milão, entre 1818 e 1819 (W.G. Sebald descreve-o em Vertigens.Impressões,Teorema). Métilde será talvez a Mme. Gherardi de Do Amor, com quem o autor assiste à transformação de um feio galho despido mergulhado nas salinas de Salzburgo num belo ramo coberto de reluzentes diamantes de sal. Para Stendhal, a mesma cristalização ocorre no sujeito enamorado, motivo-chave para esta demonstração de como o amor revela do avesso a beleza, a felicidade e a razão.

Do Amor, Stendhal, Relógio D'Água, 358 págs.

SOL/ 11-12-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

terça-feira, dezembro 07, 2010

O Filósofo e o Lobo - Um Livro Por Dia



O lobo em nós

A informação surge quase no final do livro e ilumina-o como um todo. O autor, Mark Rowlands, norte-americano, professor universitário de Filosofia, confessa-se «um misantropo nato». A dificuldade de se relacionar com outros seres humanos levou-o a escudar-se numa relação de onze anos de amizade-irmandade com um lobo puro, Brenin, com o qual criou «uma matilha; uma nação a dois». O Filósofo e o Lobo, publicado pela prestigiada Granta em 2008 e recém-editado pela Lua de Papel, é o ensaio autobiográfico no qual Rowlands narra esta insólita história de lealdade, superior até mesmo «ao sentido de justiça para com os outros».
Autor de vários títulos sobre o estatuto moral dos animais e a teoria do contrato social, Rowlands define a Filosofia como algo «desumano» no seu abstraccionismo e na sua adoração pela lógica. Aos 26 anos, a adopção de um lobo, «o representante tradicional do lado negro da humanidade», como melhor e único amigo, tornou-se um símbolo do exílio do filósofo dentro de si mesmo. O que se passou a seguir foi uma aventura de dilemas práticos, um questionamento profundo da «natureza existencial de um animal selvagem» e da singularidade humana. O Filósofo e o Lobo, com o subtítulo «O Que a Selva nos Pode Ensinar sobre o Amor, a Morte e a Felicidade», é um relato comovente, tão fascinante (e mais sucinto e divertido) como os escritos da primatologista Jane Goodall.
É de um modo inadvertido que apreendemos os cruzamentos entre a filosofia clássica e os episódios de convívio entre Mark e Brenin. Aproximando-se de um lobo, o autor procurou «aquilo que não queremos saber sobre nós», o lado sombrio da nossa suposta superioridade animal. Brenin, perito em inesperado, acompanha-o para toda a parte (até nas aulas, onde uiva nas partes mais entediantes). Destrói-lhe a casa e prova que «os lobos não têm lugar no mundo civilizado», não porque são perigosos, mas porque são solitários, fortes e impassíveis. Rowlands ensina-nos que os lobos falam com o corpo e, sobretudo, que não sabem «conspirar e enganar» e são alheios à «maldade moral» e a qualquer análise de custo-benefício. Isso é o que os distingue da inteligência social; uma qualidade humana que, assim posta, não abona muito a nosso favor e nos faz desejar que, talvez um dia, possamos correr o risco de acordar um lobo em nós.

O Filósofo e o Lobo, Mark Rowlands, Lua de Papel, 230 págs.

SOL/ 23-10-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Sidney Bechet (1958)

http://www.youtube.com/watch?v=7HTAur7eozI

Ethel Waters - Am I Blue (1929)

http://www.youtube.com/watch?v=FN8-Yy8Rl3s

Augie March - Um Livro Por Dia


Chicago tales

As Aventuras de Augie March é um monumento de ficção, destinado a corredores de fundo. Mostra o talento de Saul Bellow em estado puro.

Para entrar em As Aventuras de Augie March, é preciso saber entrar em Chicago, a cidade onde cresceu Saul Bellow (1915-2005, Nobel da Literatura em 1976), nascido em Lachine, no Canadá, filho de imigrantes russos. Em entrevista ao Le Monde, em 1982, o escritor norte-americano apresentou-a assim: «Nova Iorque não é uma cidade americana. É uma cidade internacional, mundial como São Francisco. Mas Chicago é a cidade americana por excelência. É uma mistura especial de indústrias pesadas, de imigrantes pouco qualificados, de acontecimentos brutais associados às lutas contra o capitalismo. As regras do jogo são a virilidade, a solidariedade, a lealdade para com a cidade. O seu código de honra? Não trair. Não denunciar os amigos. Banir as conversas irresponsáveis. Não entrar muito nas zonas protegidas. Se se tiver uma parcela de poder, manter a sua estrutura intacta. Abster-se, passar por entre os pingos da fealdade e do crime. É este o sistema de vida de Chicago.» Agora sim, caminhemos com Augie March por esta «cidade sombria», da maneira que ele diz ter aprendido a fazer sozinho, «em estilo livre». Temos setecentas páginas pela frente e este terceiro romance de Saul Bellow, datado de 1953 (National Book Award em 1954), um dos seus maiores legados ficcionais, presta-se a todas as dispersões.
As Aventuras de Augie March é um desafio portentoso porque corresponde a um Bellow sem restrições, em bruto na sua capacidade expressiva e no máximo da sua judeicidade, essa que ele mais tarde viria a enjeitar como principal marca distintiva da sua obra. Na célebre entrevista que concedeu à Paris Review em 1965, o escritor explicou que, após duas ficções (Dangling Man e The Victim) moldadas pelo desejo de afirmação junto do mundo WASP («branco, anglo-saxão, protestante»), deixou-se ir: «Julgo até que pus de lado demasiados [constrangimentos] e que fui longe demais mas estava a sentir o entusiasmo da descoberta.» Em nenhum dos romances seguintes encontraremos a mesma indomável liberdade de estilo, afinal a raiz de toda a sofisticação bellowiana até no que ela tem de manifesto anti-intelectual. A notável tradução de Salvato Telles de Menezes para a Quetzal faz juz à conjugação de musicalidade da frase, eloquência poética no detalhe e atenção à expressão idiomática característica da personagem (incluindo a extravagante mistura de referências iídiche ou da Chicago dos anos 20). O principal dinamismo dos romances de Saul Bellow é que eles falam-nos como alguém com quem nos cruzássemos na rua e nos relatasse o que acabou de fazer, sem nunca perdermos de vista que tal nos é dado a ver através do brilho da moldura de observação feita pelo autor.
A voz é a de Augie March, um miúdo pobre que cresce com a mãe, os dois irmãos (o empreendedor e ambicioso Simon e Charlie, deficiente mental) e uma avó emprestada (a protectora e castradora avó Lausch) na Chicago da Grande Depressão. O solilóquio estende-se até à idade adulta e uma deambulação sem rumo pela Europa do pós-Segunda Guerra, terminando afinal como começou, Augie como uma espécie de Colombo em terra incognita. Romance de formação (bildungsroman), As Aventuras de Augie March apresenta uma abordagem moderna ao anti-herói picaresco. Nele se resume o principal dilema bellowiano: a liberdade de escolha de cada ser humano entre integrar-se na sociedade (na família e na cidade), aceitando ser moldado por ela, ou alienar-se e, de algum modo, votar-se à revolta e à carência de amor («Há quem leve muito tempo a descobrir qual é o preço de estar na natureza e quais são os termos desse contrato de ocupação. O tempo que demora depende da velocidade com que os açúcares sociais se dissolvem»...).
Inspirado no cenário e nas gentes dos arredores do Humbolt Park da infância de Saul Bellow, As Aventuras de Augie March assemelha-se ao Mississipi de Twain e Huckleberry Finn. O «sistema de vida de Chicago» é um símbolo da América como uma jangada em torrencial movimento, entre margens e minorias, forjando redes e fidelidades. Com ecos do transcendentalismo e do individualismo como os teorizou Ralph Waldo Emerson, o subversivo, mas desajeitado Augie (que apenas tenta «fazer bem as coisas» e «vê afecto humano em tudo, como um selvagem») pode ser lido como uma homenagem à «infinitude do homem privado» (Emerson). Vêmo-lo na intimidade das suas aventuras, entre anseios e angústias sentimentais, as mais diversas ocupações  e os mais diversos mentores («ia ao encontro de quem quer que se dispusesse a oferecer-me abrigo contra este poderoso terror que corre à solta pelo mundo, contra o bárbaro frio do caos e, portanto, abraçava temporariamente várias causas»), à procura de independência e amor por conta própria.
Não se pode esquecer que o romance de Bellow marca a emergência do judaísmo como grande tema da cultura americana na década de 50. Estão lá o problema da pobreza e da aculturação, a reacção ao preconceito gentílico, o choque geracional do filho do imigrante, a herança da diáspora, a auto-depreciação e o orgulho de pertença, o humor tragicómico do deslocado que procura sobreviver, assimilar e ser assimilado. Sobressai e comove na personagem Augie o seu cambaleante e irónico meneio, ora optimista, ora pessimista, face ao destino. Precisamente aquilo que a torna universal e moderna.

As Aventuras de Augie March, Saul Bellow, tradução de Salvato Telles de Menezes. Quetzal, 709 págs.

LER/ Novembro 2010
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domingo, dezembro 05, 2010

Jorge Luis Borges - Um Livro Por Dia


Os outros Borges

Jorge Luis Borges previu-o pouco tempo antes do fim, quando disse que “muito poucos escritores contemporâneos não aprenderam com ele ou o imitaram”. E, na verdade, vinte anos sobre a sua morte, o universo borgeano continua em expansão. Tal como as suas ficções, o labirinto criado em torno delas multiplica-se como num confronto de espelhos, e dispara criativamente em todas as direcções. Desta vez, é Borges e a Matemática que pede atenção cuidada, a partir das lições proferidas pelo escritor e matemático Guillermo Martínez em 2003, em Buenos Aires.
Ame-se ou odeie-se, quase tudo está em Borges, mesmo que seja sob a forma de paradoxo. Testemunha-o também Com Borges, o livro de memórias do canadiano Alberto Manguel (autor do excelente Uma História da Leitura) que, entre 1964 e 1968, teve o privilégio de entrar em casa do escritor já cego e de ler para ele. Para Borges, “a realidade residia nos livros” e “os livros restauravam o passado”. Com assombrosa memória literária, o “seu mundo era totalmente verbal: a música, a cor e as formas mal tinham lugar nele”. Sabemos que também lhe eram indiferentes a pintura, a sociologia, a biologia, a psicanálise, a ficção russa e francesa do século XIX ou, genericamente, a política. E, no entanto, os seus sonhos, dizia-o ele, possuíam uma “esfera ilimitada”. Com infinita ambição, procurava ficcionar um universo sem centro, onde “o todo não é maior do que qualquer das partes”.
É a partir de noções como estas últimas que Guillermo Martínez propõe uma insólita abordagem a Borges. Em duas lições complementadas por dez ensaios, disseca estruturas e elementos de estilo presentes em obras como “O Aleph”, “O Livro de Areia” ou “A Biblioteca de Babel” e aproxima-os de abstracções lógico-matemáticas. Defende que “a matemática corre nos textos de Borges no interior de um contexto de referência filosóficas e literárias” e explica-o “para aqueles que só sabem contar até dez”. Percebemos então, por exemplo, a possível importância dos números fraccionários na ideia de “reunir todos os livros num só volume, com uma quantidade infinita de páginas”. Com Martínez e Manguel, redescobrimos a inteligência e invenção do microcosmos criado por Borges. E ficamos a aguardar a eventual tradução portuguesa de Borges y la Ciencia, editado na Argentina em 1999. Como mais uma parte que se juntará ao todo.

Com Borges, Alberto Manguel, Ambar, 80 págs.

Borges e a Matemática, Guillermo Martínez, Ambar, 152 págs.

SOL/ 04-11-2006
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História Vida Privada - Um Livro Por Dia

Nós, em privado

Portugal tem por fim uma História da Vida Privada. Um feito de José Mattoso. Quarenta colaboradores para cerca de duas mil páginas de texto, divididas por quatro períodos/volumes. Milhares de dados sobre a evolução das mentalidades dominantes quanto ao público e ao privado. Com direcção do historiador medievalista e antigo monge beneditino José Mattoso, aí está a primeira sistematização e síntese da História da Vida Privada em Portugal. Ao primeiro volume, A Idade Média, coordenado por Bernardo Vasconcelos e Sousa, seguir-se-ão A Idade Moderna (Nuno Gonçalo Monteiro), A Época Contemporânea (Irene Vaquinhas) e Os Nossos Dias (Ana Nunes de Almeida). Somos nós, portugueses, vistos pelo buraco da fechadura.
Como na História da Vida Privada (Afrontamento) dos franceses Georges Duby e Philippe Ariès, em foco estão as mentalidades (quadro social, padrões de comportamento, costumes), a vida privada das pessoas e das famílias (organização, valores e objectivos) como expressão prática das convenções de um grupo numa época. Explora-se o «oculto, o íntimo e o doméstico», matéria excitante para a curiosidade não científica. Os tabus e os interditos relativos à sexualidade são «talvez o capítulo mais revelador e de consequências mais complexas».
Um rei (D. Pedro I) condena uma mulher «que lhe poinha as cornas» a um mercador. Um cancioneiro revela que uma mulher «co dedo / havede'lo con'usado», forçada pela impotência do marido; outro, preocupa-se com a concorrência que lhe faz uma lésbica, «tam desejosa ch'és de cono com'eu». É sobretudo nas cantigas de escárnio e maldizer que se mostram os comportamentos quotidianos desviantes à moral sexual determinada pela legislação e discursos clericais e régios. O clero monopoliza a escrita, «dita as normas, expõe as crenças, legitima as práticas». Mas, «o que se passa na vida privada deve ser secreto», o que faz que, antes do séc. XII e nos três séculos seguintes, as informações sejam raras e «difíceis de interpretar». São, por isso, «incipientes» os artigos de vários especialistas  nas três secções do livro («Espaços e lugares»; «O corpo»; «... e a alma»). Esta é a primeira incursão possível num território ainda com muitos segredos velados.

História da Vida Privada em Portugal (vol. I)
José Mattoso (direcção)
Bernardo Vasconcelos e Sousa (coord.)
Temas e Debates/Círculo de Leitores(CL)
512 págs., 33.30 euros/26.64 euros (promoção CL)

SOL/ 26-11-2010
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quinta-feira, dezembro 02, 2010

Susan Sontag - Um Livro Por Dia


Ego e escrita

Renascer: Diários e Apontamentos 1947-1963 reúne as notas diarísticas de Susan Sontag (1933-2004) entre os 14 e os 30 anos. David Rieff, o filho da eminente escritora, pensadora e activista política norte-americana, decidiu editá-lo e torná-lo público em 2008, como primeiro de uma selecção de três volumes e «súmula da essência da mãe, a partir da infância». Neste registo ensimesmado, sobressai a tenacidade de uma busca voraz de erudição e estatuto intelectual na qual «a arte é vista como uma questão de vida e morte, a ironia é tida como um vício, não uma virtude, e a seriedade é o bem maior» (Rieff).
Aos 15 anos, Susan Sontag, nova-iorquina de ascendência judia criada no Arizona e em Los Angeles, está prestes a entrar para a Universidade da Califórnia. Comenta, após a leitura do diário do escritor francês: «Gide e eu alcançámos uma perfeita comunicação intelectual, de tal maneira que sinto as dores de parto apropriadas para cada pensamento que ele dá à luz! Por isso, não penso: "Que lucidez maravilhosa!" - mas sim: "Pára! Não consigo pensar tão depressa! Ou, melhor dizendo, não consigo crescer tão depressa!» A adolescente pratica já uma judiciosa auto-análise e é feroz na ambição por uma personalidade intelectual. Elabora metas e listas intermináveis de livros a ler, anota conceitos a aprofundar, palavras e expressões a fixar, citações e leituras precocíssimas, comentários e convicções de invejável profundidade. Até às primeiras experiências (homo)sexuais, aos 16 anos, quando escreve: «Tudo começa a partir de agora - Renasci», a sua vida é sobretudo mental. Sê-lo-à impetuosamente até ao fim, apesar de todas as experiências físicas e afectivas.
Renascer não é nunca uma leitura divertida. Há nestas páginas uma seriedade e uma integridade tão sinceras que podem provocar no leitor uma tensão constrangedora. Egotista, Sontag procura uma «aristocracia da sensibilidade [e do] intelecto». É explícita, até obsessiva, no registo do que vive, pensa e sente. Dos anos de formação em Berkeley e de imersão na subcultura gay de São Francisco, do casamento precoce ao nascimento do filho, ao divórcio e à estadia em Oxford, da época boémia e formativa em Paris até à integração na elite intelectual de Nova Iorque. Sontag cria-se a si mesma, e confidencia: «Porque é a escrita importante? Principalmente por egoísmo, suponho. […] Os bons escritores são egoístas vibrantes, até ao ponto da fatuidade.» Adivinhava-se já este retrato, mas não o contraponto: a revelação das mais importantes vivências amorosas e sexuais. Sontag, que sempre recusou falar sobre a vida privada, surge despida, dificilmente simpatética, mas coerente e interessante até nas contradições, fragilidades e obstinações.

Susan Sontag, Renascer: Diários e Apontamentos 1947-1963. Tradução de Nuno Guerreiro Josué, Quetzal, 357 págs.

LER/ Outubro 2010
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quarta-feira, dezembro 01, 2010

Voltaire - Um Livro Por Dia


O mundo tal como vai

Voltaire dá-nos lições de consciência social e moral. Com deliciosa ironia.

François-Marie Arouet (1694-1778), polemista satírico francês, de seu pseudónimo Voltaire. Defensor acérrimo das liberdades civis, do despotismo iluminado e do Deísmo, crítico feroz da intolerância e da religião organizada, por isso, alvo de censura e perseguição. Sempre independente, mesmo nas masmorras da Bastilha, nos exílios em Inglaterra, junto de Frederico II da Prússia ou na Suíça. Egocêntrico, previdente, acumulou uma fortuna considerável e tornou-se o mais respeitado escritor europeu do seu tempo. Na sua genialidade prolífica e profundo horror ao tédio, Voltaire fez a melhor defesa de si mesmo.
Voltaire, autor dos maiores Micrômegas, Cândido ou o Optimismo, Tratado sobre a Intolerância ou Dicionário Filosófico, deixou uma obra imensa (comportando romances, panfletos, contos, poemas, ensaios, artigos científicos, 56 peças de teatro e mais de 40 mil cartas). Entre ela, a editora Estrofes & Versos seleccionou uma boa porta de entrada. Nas duas excelentes colecções de clássicos que a editora (criada em Agosto de 2009) criteriosamente propõe, saíram A Aventura da Memória e Outros Contos (em Outubro, na colecção Resgatados) e o recente Diálogo do Frango e da Franga (na chancela Arbor Litterae). São catorze textos curtos de narrativa e tese. Neles fica clara a intenção de Voltaire de «esmagar a Infâmia».
Hoje, ler Voltaire significa divertir-se. A ironia agudíssima na situação e no diálogo e a simplicidade elegante da prosa impõem-se sobre o seu complexo instinto moral e enquadramento histórico. Voltaire mostra-se, por vezes, «desconcertante na forma, enigmático no conteúdo» (explica a tradutora Susana Pires). As lições estão lá, iluminadas por breves introduções e notas, arrumadas no final de cada livro. Mas, nestes dois volumes, há de tudo: peça de divertimento, parábola, «alegoria engenhosa», elogio histórico, improviso, crónica, diálogo, apólogo, «caso de consciência», sátira, «filosofia alegórica», «confidência mal transposta», narrativa de viagens, anedota filosófica. Delicie-se, por exemplo, com «Os ouvidos do Conde de Chesterfield e o capelão Goudman», «amálgama» de escatologia, Deus e Natureza, física newtoniana, noções de destino e alma. É Voltaire em máxima inventiva, intemporal.

Diálogo do Frango e da Franga, Voltaire, Estrofes & Versos, 152 págs.

SOL/ 25-06-2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)