Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

sexta-feira, novembro 05, 2010

Nick Hornby - Um Livro Por Dia

Corações ao alto, queda livre

Nick Hornby escreve de novo sobre música pop, fãs e relações interpessoais. Mas falha o alvo e resume-se às crises de meia-idade.

«Fã»: abreviatura do inglês fanatic, por sua vez derivado do latim fanaticu (fanático); aquele que tem e cultiva dedicação, admiração ou amor exaltados por alguém ou por alguma coisa. Para muitos, «fã» é sinónimo de Rob Fleming, o protagonista de Alta Fidelidade (1995), romance de estreia do britânico Nick Hornby (n. 1957) e hábil exploração das ressonâncias da música pop na vida de uma personagem, com a qual facilmente se identificaram uma legião de leitores-urbanitas. Com Fleming, Hornby chegou provavelmente o mais longe que lhe é possível na análise de uma certa psicologia masculina e do ponto em que o hobby se torna obsessão e disfunção (já em 1993 escalpelizara o fanatismo futebolístico em Febre no Estádio, a partir do seu culto pessoal pelo Arsenal). Juliet Nua, o sexto romance, recém-editado pela Teorema, regressa ao tema, mas torce-o até à perspectiva da personalidade objecto de culto, confrontando-a com o delírio das ligações emocionais alimentadas pelos fãs.
A acção passa-se em 2008. Duncan é um professor de Artes de Palco de meia-idade e dedica-se à procura de significados ocultos para a vida e obra de Tucker Crowe, um cantautor americano cuja carreira terminou abruptamente em 1986, quando ele decidiu retirar-se da vida pública após uma misteriosa ida à casa de banho num bar de Minneapolis e durante a digressão do seu álbum mais aclamado, Juliet, sobre a ruptura com uma mulher. Duncan vive há quinze anos com Annie, ex-professora, directora de um museu, numa pequena cidade inglesa. Sem filhos, o casal afunda-se na monotonia, a obsessão de Duncan a funcionar como terceiro elemento na ligação, intrusivo e hierarquizador. Tudo muda quando são divulgados pela editora de Tucker, com o título Juliet, Naked, os demos dos solos acústicos de todas as canções de Juliet. No site de fãs onde Duncan publica uma primeira crítica, entusiástica da versão, Annie assina uma opinião negativa. Em resposta, é contactada pelo próprio Tucker Crowe, com quem passa a corresponder-se. Estamos na página 66 das 343 do romance e a acção, promissora até ali, concentra-se em Tucker, na amarga revisão que fará dos últimos vinte anos de afastamento público e nos efeitos do seu aparecimento nas vidas de Annie e Duncan.
Hornby é um escritor acessível: muitos diálogos, pouca riqueza linguística, acção fluida ainda que, neste caso, com poucas peripécias. Falsamente despretensioso, Juliet Nua é, para o leitor que aprecie subtextos, pouco mais do que um romance curioso.  O tema central até pode ser o questionamento de como a arte — como prática ou consumo —pode funcionar como escape real ou delirante a uma existência prosaica. Contudo, sabe a pouco a desconstrução da figura do ídolo e é cansativo o relato pormenorizado da sua sucessão de falhanços emocionais, dependências e derivas existenciais vazias. Tucker Crowe é uma figura pobre e pobre é a súbita procura de uma verdade para a sua vida (ridículo o recurso à sugestão de que poderia morrer se fizesse sexo) que contraste ao mesmo tempo com o apogeu perdido, com os cinco filhos de quatro mulheres e com o «monte de tretas» que os fãs especularam sobre ele. O fanatismo de Duncan é monocromático, até na resistência ao confronto com Tucker. Não chega sequer a afirmar-se em pleno uma crítica implícita de Hornby à hegemonia da internet ou à derisão das relações humanas provocada pelas salas de chat. É chão e sem densidade o coming out de Annie de uma existência sensaborona e atávica («Era como se estivesse à procura de um sítio a que se agarrar no rochedo dos seus sentimentos e tivesse acabado somente com areia debaixo das unhas»!); pior ainda é a figura de Malcolm, o psicólogo. Juliet Nua, como Crowe na vida de Annie, poderia ser «uma metáfora, ou coisa assim», sobre como se tocam a criatividade e a mentira enquanto efabulações e fuga à realidade. «Só que não funciona» e, no final, não muda quase nada. Juliet Nua resume-se a ser um romance sobre três personagens na meia-idade, em confronto com a nudez do passado e de um olhar verdadeiro sobre si mesmos, um tema xaroposo na ausência do génio que Nick Hornby exibiu noutros tempos.

LER/Junho 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)