Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

segunda-feira, outubro 18, 2010

Richard Ford - Um Livro Por Dia

Pele e paisagem

Tente fazer este exercício antes de ler A Pele da Terra (Teorema), do norte-americano Richard Ford. Se não está na rua, saia ou olhe pela janela. Congele a paisagem em torno de si e descreva-a até ao mais ínfimo e subtil pormenor. Primeiro, passe em revista a paisagem física natural (caso haja alguma) e foque depois toda a atenção na paisagem modificada e nos sinais que, nela, possa relacionar com a paisagem humana. Camada atrás de camada, avance até conseguir descrever hipóteses de paisagem psicológica. Anote. Repare. No final, a tradução por palavras e o esboço interno que construiu estarão provavelmente próximo do que podemos chamar «a pele» (epiderme, derme e hipoderme) do que vê à sua frente. Agora, abra o romance e comece a ler. A experiência que o espera nestas mais de 600 páginas não anda muito longe do exercício que acabou de fazer.
A Pele da Terra é uma boa tradução para o título original The Lay [camada] of the Land. O romance, de 2006, é o terceiro da trilogia centrada no narrador Frank Bascombe, iniciada por Richard Ford em 1986, com O Jornalista Desportivo (Teorema) e prosseguida, em 1995, com Dia da Independência (Presença), que conquistou em simultâneo os prémios Pulitzer e Pen/Faulkner. O autor garante que este é o mesmo o último Bascombe e não há razões para duvidarmos dele.
Ford, hoje com 65 anos, sempre foi um autor sui generis, cada vez mais avesso à exposição pública, distante e imune à fogueira das vaidades do meio literário norte-americano. Aluno de E. L. Doctorow no curso de escrita criativa da Universidade da Califórnia, começou por se afirmar na linha do minimalismo e «realismo sujo» de Raymond Carver, com enredos duros («hard boiled») nos quais a acção servia uma visão sombria do homem médio americano. O insucesso dos dois primeiros livros (A Piece of My Heart, 1976, e A Última Oportunidade, 1981, Relógio D'Água) levou-o a empregar-se como redactor da revista nova-iorquina Inside Sports, experiência que transpôs para o enredo do primeiro Bascombe, o início do reconhecimento unânime por parte da crítica das suas grandes capacidades estilistas.
Ford garante que O Jornalista Desportivo respondeu ao pedido da sua mulher, Kristina, para que ele escrevesse sobre «uma personagem feliz». O desafio não foi totalmente conseguido (digamos que a postura de Frank Bascombe perante a impossibilidade de ser feliz é mais melancolia passiva do que outra coisa), mas Ford afastou-se da linha Carver e aproximou-se de um certo realismo suburbano ao jeito de John Cheever (ou Richard Yates) e das abordagens auto-reflexivas de Saul Bellow. O seu trabalho literário concentrou-se na linguagem, no poder evocativo de cada palavra, numa espécie de jogo de tensão e distensão em cada frase para descrever a paisagem interna e externa das personagens,  agora (talvez por isso) capazes de redenção.
Embora não tão brilhante como O Jornalista Desportivo ou Dia da Independência, e correspondendo mais a uma rememoração do que uma sequência conclusiva, A Pele da Terra é um grande romance e a narração de Frank Bascombe (como em Rabbit Angstrom, de John Upike) sobreviverá como um dos grandes retratos psicológicos da América contemporânea. A crítica dividiu-se na recepção e o mesmo acontece com certeza com os leitores. O ritmo do romance pode ser lento, longo e repetitivo e os conflitos esparsos, mas, por isso mesmo, este é um puro Ford. Destina-se a leitores que apreciem saborear um livro frase-a-frase, parágrafo-a-parágrafo, sem pressas nem desejos de enredos folhetinescos, de fim para a história ou, sequer, de perceberem o que a personagem quer exactamente. Aliás, segundo Ford: «Num romance a linguagem é acção. É onde residem os valores.»
Apresente-se, pois, Frank Bascombe. No primeiro volume, ele é um escritor falhado que se tornou jornalista desportivo e procura sobreviver, mal, à morte do filho Ralph, aos nove anos, com síndroma de Reye. Em Dia da Independência (uma excelente tradução de Fernanda Pinto Rodrigues) trabalha como mediador imobiliário e reside em Haddam, Nova Jérsia, na casa que pertenceu à ex-mulher (que entretanto se mudou para o Connecticut, com os dois filhos de ambos, Paul e Clarissa). Durante o fim-de-semana do 4 de Julho, Frank faz um périplo de visita a museus do desporto, uma tentativa de aproximação com o problemático filho adolescente Paul e, sobretudo, uma reflexão sobre o «Período Existencial» que vive naquele momento. A meia-idade traz-lhe uma certa harmonia de transição entre a nostalgia e as crises do passado e a ansiedade de um futuro que não consegue idealizar. Frank paga essa harmonia com a solidão, tornando-se independente, ou, como defendeu o autor, «colocando uma certa distância entre si mesmo e os outros, saindo da órbita deles».
Em A Pele da Terra, Richard Ford continua a fazer mexer a sua personagem como alguém que se limita a deixar que as coisas lhe aconteçam. Em 2000, a dois dias do feriado da Acção de Graça (um dia que ele quer «sem tema»), quando receberá os dois filhos na sua casa no Sea-Cliff, Frank prossegue o trabalho como mediador e rumina sobre a sua vida como se, câmara ao ombro, inventariasse um cenário imobiliário. Entretanto, teve um cancro na próstata e um (inconclusivo) segundo casamento. Está entre o «Período Permanente» e o «Nível Seguinte», quando o passado já não pesa e o futuro já não alterará nada de essencial, e o presente brilha com a sua «presentidade» (por vezes cómica de tão absurda, como quando é confrontado com o primeiro marido da sua segunda mulher, Sally, tem de enfrentar as opções lésbicas da filha Clarissa, se vê relacionado com um ataque bombista ou é alvejado no peito). Agora, já «não tornará a ser» e o seu sentido de «pertença e de ajuste, de reivindicação e estabilização é, na melhor das hipóteses, efémero». Aos 55 anos, desenraizado, só procura a sua «pele da terra», ou seja, preparar-se para responder a uma pergunta intrigante: «Está [pronto] a ir ao encontro do seu Criador?»
Desde pequeno que Richard Ford luta contra a dislexia e este é um dado importante para perceber os seus livros. Disse uma vez que a dislexia o forçou a uma aproximação lenta e reflexiva à leitura e o mesmo se deve passar também com o seu trabalho de bilros com a linguagem e a dissolução da acção nos diálogos, nos detalhes mais ínfimos, no ritmo distendido dos parágrafos, nos aforismos e epifanias da personagem. Natural do Mississipi, Ford possui uma matriz de irónico conservador sulista, para o qual conta a mesmice da paisagem à volta, por mais modificada que se encontre, e a impossibilidade de lutar contra o destino. Mas Ford nunca viveu muitos anos no mesmo sítio e gosta de afirmar que «escrever é a única coisa que fiz com persistência, à excepção de estar casado». O amor de décadas por Kristina (que trabalha com ele cada original) deu-lhe, como assegurou em entrevista recente, a possibilidade de mudança das raízes do seu temperamento. Como se a passividade imparcial que enriquece um observador produzisse afinal uma inevitável e fértil impermanência e estivesse no centro da revelação da tal «pele» que nos separa ou une à paisagem. A experiência, testada na auto-reflexão de Frank Bascombe, mostra-nos a textura palpável de uma vida quase estática na imensa paisagem em movimento da América contemporânea.

LER/Novembro 2009

© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)